sábado, 14 de agosto de 2010

Rogério Salgado (Poemas Escolhidos)


CONCEITO
Para Otávio de Campos

Sou o que representa
a febre, a dor
a expressão exata
a corda que desata
todos os nós acorrentados
aos conceitos do que
querem que a poesia seja.

Canto a canção ferida
daquilo que é doído

tenho olhos de vidros partidos
e a imensidão de compor.

Não me estabeleço
amanheço, entardeço, anoiteço
na forma mais concreta.

PIVETE

Vivo
do cheiro dessa cola.

Ando
na cola desse cheiro.

QUARTO DE HOTEL

Na solidão dessa insônia
não conto carneirinhos:
conto estrelas
uma a uma
expostas feito um quadro
na moldura da janela.

CONCERTO PARA LÁ MAIOR
(entre as nuvens)

Meus amigos estão todos indo embora
e eu, por enquanto
vou ficando por aqui
com aquela sensação de vazio
preenchendo-me os poros
as artérias, a alma, os versos.

Revejo catedrais que outrora
pensei um dia, edificar
entanto, o tempo escorre pelas mãos
entra pelos ralos
sem que ao menos, possa segurá-lo.

Alguns recitam versos lá
outros cantam entre nuvens
e cá, ficamos nós, desatando nós
nessa insegurança tão imperfeita.

Meus amigos estão todos indo embora
embora seja verdade, devo aceitar
aguardando que um dia
numa viagem menor
eu possa ver estrelas, constelações
e desvendar enfim, os mistérios dessa vida.

A PALAVRA

É necessário cantar
quando a palavra nos soa
poética
triste e sem limitações
feito sussurros de um poeta

e na claridade do verso
habita o sol
que brilha e cega
quando a rima
machuca.

E além da vida
sobrevive a palavra
mas o poeta
acaba

QUESTÃO DE LINGUAGEM

Todos os dias buteco
(pretérito mais que perfeito
do verbo embebedar)
sento à mesa
e entre um substantivo e outro
o tampo passa
calmo sob as estrelas.

Entre os dedos bêbedos
o poema surge tonto
embriagado de palavras
mas, despercebida de outros bêbedos
que discutem futebol
na mesa ao lado.

O poema é isso:
descompromissado
por isso surge lúcido
ou alcoolizado
(depende das circunstâncias)
sendo impresso em papéis
e distribuído entre tantos
que nem atentos percebem
a fragilidade do poeta.

Por isso, todos os dias poeto
(presente do subjuntivo
do verbo sofrer)
e entre um copo e outro
faço versos livres
que germinarão sementes silábicas
e serão plantadas
em papéis comuns
para que poucos apreciem:
— Assim é a sensibilidade!

INFÂNCIA

Quando garoto
em todos os natais, Irene
— babá de minha infância —
presenteava-me com um cartão
bem bonito.

E os meses se passavam
um, dois, três... doze
e este menino aguardava ansioso
pelo melhor presente
que nada mais era
que meras palavras escritas
pela minha babá, Irene.

Havia o ano novo
dia de aniversário
dias das crianças
mas dia nenhum era assim
tão esperado
como o dia de Natal.

Irene não escrevera
naquele ano.
Dias depois soube
que Irene falecera
por causa d'uma diabete.
Bem que eu dissera:
Como era doce a minha Irene!

O PIANO QUE MAMÃE TOCAVA

Venderam o piano que mamãe tocava
a sala hoje, encontra-se vazia.

No tempo do tempo do tempo
havia no canto de nossa velha casa
da Rua Doutor Mattos
além do criado mudo e móveis mais
a canção e a vida, na viagem
do piano que mamãe tocava.

— Quase tudo tem seu preço.
O piano que mamãe tocava
Não tinha preço: tinha valor —

A tristeza e a alegria
na história dessa senhora
e o toque sutil de suas mãos
tão calejadas e sofridas
faziam todas as canções, belas.

Hoje, o canto encontra-se vazio
mas a nostalgia embala a criança
que amadureceu criança
nas lembranças daquele tempo.

Acordaram todos os sonhos
a velha senhora se foi
e a canção desencantou-se
no dia em que venderam
o piano que mamãe tocava.

Fonte:
http://www.germinaliteratura.com.br/

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