segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Clarisse Bandeira de Mello (O Colecionador de Tulipas)

Ramo de tulipas, em tinta oleo sobre tela,
de R. O. Peixoto.
1o. Concurso Verso e Prosa da Flórida
1º Lugar - Prosa
Clarisse Bandeira de Mello - Weston - FL - USA
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Naquele dia, como sempre, acordou muito cedo. Arrumou as tulipas em engradados, ajudou a acomodá-las carinhosamente no caminhão, assinou a guia do transportador e andou em direção à casa. Sem olhar para trás. Determinado a não olhar para trás. Abriu a porta da casa pensando que ‘se elas fossem gente, não esconderiam uma ou duas lágrimas’.

Sentou na varanda e começou a fazer planos para mais um dia. Desde que chegara, há doze anos, agarrara-se à rotina, como se ela o ajudasse a sobreviver. Trabalhava muito, até de madrugada - a atividade constante amortecia as lembranças; os poucos conhecidos, brasileiros como ele, também não tinham tempo para nada. O sentido da vida passara a ter a dimensão de um dia... um dia de cada vez.

Com o frio da manhã, o céu azul parecia ainda mais claro. No Brasil, o céu era de tonalidade mais viva, contrastando com a vegetação verde profundo. Acabou fechando os olhos. Na sua solidão habituara-se a sonhar acordado. Imagens do passado surgiam em seqüência, recorrentes, impregnadas de nostalgia. A saudade que dá nó na garganta há muito o abandonara.

Lembrou-se do dia em que resolveu partir. Tomou a decisão sentado na Rua da Praia, sem emprego, sem esperança, olhando o reflexo do sol apontando para o horizonte. Quem sabe para um lugar onde pudesse viver em paz...

Pôs na mala só o que faria falta. Roupas, tirou do armário as mais conservadas, escolheu dois livros que gostava de reler e o retrato da mãe. Tinha certeza de que com o passar do tempo a tristeza chegaria sem pedir licença, intrusa que não percebia sua inconveniência. Olhou em volta, querendo guardar na memória todos os detalhes do quarto. Tinha certeza de que nunca mais dormiria ali.

Ao entrar no avião, o medo do desconhecido o dominou. ‘Todos me olham como se soubessem meu segredo’, pensou. Acomodou-se ao lado de uma americana e sentiu-se um idiota por não saber responder em inglês. Pegou no sono após dois cálices de vinho e ao acordar avistou, lá embaixo, a cidade que mais parecia um tabuleiro de xadrez. As ruas perfeitamente traçadas, as casas construídas com simetria, todos os telhados da mesma cor. ‘Será que conseguirei viver num país desconhecido?’ O medo voltara...

Levantou-se e foi à cozinha fazer café. Ainda usava aquele coador de tecido, velho, marrom de tanto usar, sempre com um pouco de borra no fundo. O aroma bem brasileiro invadiu a casa. Pela janela, observou o empregado podando as folhas secas das tulipas.
Pousou a xícara, as imagens surgiam para além do vidro. As noites em casa de estranhos, seu corpo oferecido como cobaia de laboratório em troca de alguns dólares, as mãos ensangüentadas com o peso dos tijolos, os esconderijos para não ser deportado. Só começou a se sentir mais à vontade quando foi trabalhar como frentista num posto de gasolina. Dia feliz foi aquele em que uma senhora brasileira pediu-lhe para trocar o pneu do carro. Conversa vai, conversa vem, lá estava ele contando um pouco de seu passado. Os olhos dela quase saíram das órbitas quando ele revelou que tinha doutorado na Sorbonne. Em um minuto, já o observava como espécime raro. Sacudiu a cabeça, andou pra lá e pra cá: ‘Amanhã trago minha filha para conhecê-lo!’. Deu-lhe uma gorjeta generosa e foi-se embora com cara de espanto, os olhos ainda arregalados.

Olhando-a partir, pensou: ‘sou dono do meu passado e isso ninguém, mas ninguém mesmo, pode roubar’.

Naquela manhã, gelada, de vento pampeiro, como diziam em sua terra, avistou o carro de longe. Ao aproximar-se, tinha certeza de que sua vida nunca mais seria a mesma. Laura estava ali, ao lado da mãe, para conhecer ‘o rapaz que tinha doutorado na França’. Cumprimentou-a meio tímido, passando a mão na testa procurando evitar a neve que há dias não parava de cair. Laura segurava um vaso no colo. Dentro, uma tulipa vermelha, viçosa, cor de sangue, sedenta de carinho e alimento. Será que se apaixonara primeiro por Laura ou pela tulipa? Naquele momento descobriu que para ele as duas sempre seriam inseparáveis.

Laura invadiu abruptamente, sem cerimônia, sua vida solitária. Lembrava-se do dia em que foi morar com ele. Subiu as escadas com uma mala pequena, ar misterioso, e pediu a ele que tirasse do carro sete vasos pequenos, sua coleção de tulipas. Apossou-se de metade do armário, um cantinho na varanda, uma estante na sala. Entrou na cozinha e se sentiu dona da casa. A música de Caetano se misturava ao cheiro de comida brasileira, que invadia o apartamento depois de tantos anos. Laura despertou-lhe a memória, reprimida pelo sofrimento. Seu corpo respondia ao som da música, ao sabor da moqueca, ao cheiro do coentro, à cor do pudim de coco. Naquela noite amou Laura perdidamente.

O empregado tirou-o do devaneio. Precisavam comprar mais vasos para plantar os bulbos no outono. O seu ‘business’ - era assim que chamava o negócio - começara por idéia de Laura. Foi se envolvendo aos poucos, aprendendo, cultivando as flores e após algum tempo já forneciam para floristas do bairro. Passava noites estudando, experimentando, pesquisando. O negócio crescera; em poucos anos, já estaria exportando tulipas... Com exceção das mais preciosas, brancas com manchas vermelhas, sua paixão. Compartilhava seu entusiasmo com Laura, que o presenteava com um sorriso enigmático. Ela contemplava as flores com ternura e olhar meio distante.

Ainda tinha presente na lembrança o dia em que entrou no quarto e viu-a deitada. Notara que ultimamente ela já não cozinhava como antes, o entusiasmo pela vida ia fenecendo pouco a pouco. ‘Saudade do Brasil’, explicava. Um dia surpreendeu-a arrumando a mala. ‘Quero voltar, sentir o cheiro da mata, olhar as ondas batendo na pedra do Arpoador, o pôr do sol no final do Leblon’.

Laura partiu como as tulipas partiam. Com lágrimas disfarçadas em gotas de orvalho.

Um dia voltaria. E ele, herói anônimo em terra estrangeira, mais uma vez não olharia para trás.

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