terça-feira, 9 de novembro de 2010

Luiz Antonio Aguiar (O Que Vale a Literatura?)



Só para começar, não é por acaso que o título que dou a este texto não é “Quanto vale a Literatura?”.

Acontece que aqui não se trata mesmo de um valor quantificável. Mas, de um valor subjetivo. Íntimo. Pessoal. Algo registrado (ou contabilizado) no espírito de cada um.
Mas, também na identidade de uma população com seus... valores.

No seu recente A literatura em perigo, Todorov escreve:

Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver(...) Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo(...) Ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano(...)O leitor(...) lê essas obras(...)para nelas encontrar um sentido que lhe permita compreender melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo.

O que vale a Literatura para alguém que escreve algo assim? Ora, vale uma vida. A vida dele. Literatura aqui se torna algo tão essencial que não se poderia sobreviver neste mundo, ainda mais neste mundo contemporâneo ─ e no nosso caso, neste mundo brasileiro ─ sem o consolo e a iluminação da Literatura.

Já, segundo a lenda sobre a destruição do acervo da Biblioteca de Alexandria, que está num livro doloroso de se ler, A biblioteca desaparecida, de Luciano Canfora, quando perguntado o que se deveria fazer com os volumes da maior biblioteca da Antiguidade, o dignitário fundamentalista islâmico, cioso da nova ordem que queria impor à cidade que seu exército acabara de invadir, ordenou: Se o que está esses livros não se pode encontrar no Corão, queime-os, pois eles não dizem a verdade. Se o que está neles está no Corão, queimei-os, pois são dispensáveis. Preciosas obras da cultura grega, entre outras, exemplares únicos, viraram combustível das saunas de Alexandria.

O que valeria a Literatura para esse dignatário?

Para muitos indivíduos que estão engajados na Educação, de diversas maneiras, a Literatura vale pelo que ensina. Ou melhor, pelo que se pode agregar a uma obra Literária em termos de uma utilidade didática, que ela não tem, em sua origem, mas que se pode “trabalhar” a partir dela. Tanto que há um termo que significa a literatura na escola: paradidático. Acessório do didádico.
É uma tendência que vem sofrendo abalos, séria e forte contestação, mas ainda subsiste.

Para Graciliano Ramos, ou melhor, para seu autobiográfico personagem, o menino, em Infância, o que vale a Literatura? E para a igualmente autobiográfica menina de Felicidade clandestina, de Clarice Lispector? Para o primeiro, salvação, desembrutecimento, humanização; para a segunda, o título diz tudo.

É então desse valor tão etéreo, mas em alguns tão presente, que estou falando.

Creio que é nesse Reino, o desse valor, que finalmente esta articulação ─ o Movimento por um Brasil Literário ─ de entidades e indivíduos, mobilizada pelo valor da Literatura, pode trabalhar. E isso torna o Movimento por um Brasil Literário bastante especial.

Há muitas pessoas para quem a Literatura não está presente em suas vidas. Para estes, a Literatura vale quase nada. Há quem mesmo quando fala em Literatura, pensa em leitura; e chega a trocar os termos, sem sentir; mas aí é outra coisa, e neste caso a especificidade do Movimento, sua peculiaridade, é essencial. Porque não estamos neste Movimento ─ pelo menos segundo entendo ─ falando daquela capacidade que confere cidadania, autonomia, acesso à contemporaneidade, defesas contra logros e estelionatos políticos etc... Estamos falando dessa capacidade aplicada a uma instância humana ─ o ser humano cria e o ser humano usufrui da Literatura ─ em que se exige um tanto além da capacidade de leitura. Na qual a capacidade de leitura é meio para abrir ao ser humano a percepção e a vivência da Terceira Margem do Rio.

Trata-se de aceitar a senha do Era uma vez.
Do Abre-te Sésamo.
Do Alf-Laila, wa-Laila (Mil noites mais uma noite).
Do Faz-de-Conta e do Pirlimpimpim.

De acreditar na possibilidade de tomar o caminho para a Terra do Nunca, assim como a capacidade de enxergar, dentro de si, um Peter Pan. Ou talvez um Gancho. Ou um Drácula.

De compartilhar sem pejo da loucura bela que tomou D. Quixote, Madame Bovary, Tom Sawyer.
E isso é muito mais difícil.

Há muita gente neste país que se devota à disseminação da leitura, convicta e resolutamente, sabendo exatamente o que está defendendo e por quê. São pessoas preciosas. Só que...

Faz pouco, nos jornais, Luciana Villas Boas, diretora editorial da Record, declarou: O povo brasileiro descobriu a importância da leitura antes do hábito de leitura. E essa sacada foi ótima, muito perspicaz, captando no pulo uma sutileza que explica muita coisa no Brasil, inclusive o crescimento recente do mercado editorial.

Ora! O problema que nos propomos a resolver é complexo... Mesmo quem não lê afirma que é importante ler. Mesmo sem dizer nem se preocupar em dizer o que está defendendo: é importante... ler o quê?

Mas, afirma-se, de todo jeito, a importância da leitura.

Há muito menos gente ─ talvez somente os iniciados, os infectados, os amorudos da Literatura ─ defendendo o direito de ler Literatura. A Democratização da Literatura.

Seria mais ou menos o direito de cada um de se aventurar no Reino da Verossimilhança, escapando da imposição da Verdade. De se submeter à relação alquímica na qual o leitor se transforma ao transformar a obra que lê.

Então, temos certeza de que queremos insistir nisso?

É nisso mesmo que queremos nos meter?

Não que eu pessoalmente tenha dúvidas, mas é justo perguntar: não seria mais fácil parar de chatear os outros afirmando nossa especificidade? Não seria mais fácil engrossarmos uma corrente que já tem reconhecimento público? Um valor já estabelecido?

Eu acredito que não se pode vivenciar o intangível da vida, das pessoas, do mundo, sem a Literatura (ou alguma outra expressão artística que nos anime, insufle). Eu acredito que não se pode conviver em paz, sem medo, sem ansiedade, com essa parte da existência, que abrange inclusive a cessação de existir, além de uma infinidade de outros enigmas e mistérios, sem a Literatura. Além disso, amo a Literatura em si, seu modo de expressão e o que ela pode expressar, sua arte, esta porção de beleza que ela pode gerar, essa materialização do espírito, de seus enigmas e segredos, em objeto (artístico) e vivência. Essa coisa de a gente ser possuído por uma obra literária, enquanto se lê e quando a relembra.

É uma questão de amor.

Hábito se transmite, se ensina, se condiciona, se corrige, se domestica. É sempre em mão única.
Amor é mútuo.

(O que uma obra faz com um indivíduo que a lê com amor é amá-lo.)

Mas, como passar amor aos que não o sentem? Aos não-iniciados?

Não, não sei precisar como. Mas, talvez haja pistas a serem seguidas.

Ruth Rocha certa vez, numa palestra, disse que há pessoas condenadas a ler ─ que vão buscar uma obra Literária sob as mais adversas condições (lembram da Costureirinha, personagem do filme Balzac e a Costureirinha Chinesa, de 2002?).

Como se dá isso, trata-se também de um mistério. Creio que estes já tem a Literatura dentro de si, antes de conhecer qualquer obra. E vão perseguir esse chamado, para saciar uma lacuna, uma agonia, uma fome... “um não sei que, que nasce não sei onde,// vem não sei como, e dói não sei porque”.

Com estes, temos somente de facilitar o seu acesso aos livros – bibliotecas com acervos fartos, mediadores de leitura ─, e o resto que tiver de acontecer acontecerá. Mas, o amor pela Literatura, eles já estão fadados a contrair.

Há aqueles, do tipo o dignitário que ordenou a cremação da Biblioteca de Alexandria ou os que somente podem conceber a Literatura como um recurso de transmissão de mensagens pragmáticas, seja didáticas, religiosas ou político-partidárias, ou qualquer proselitismo. São poucos, tão poucos quanto os condenados a ler. E não adianta nos ocuparmos destes.

No entanto, gloriosamente, há todo um meio-termo, a maioria, o mais numeroso contingente da população, que pode, quem sabe, ser sensibilizado/contaminado pelo valor que a Literatura tem para os iniciados. Paixão contagia. Amor cativa. Os que amam a Literatura (como Todorov) tem o poder de passar esse amor. E isso acontece ao falarem dos livros que leram, que foram importantes em suas vidas, que mudaram suas vidas, dos quais sentem saudades, dos seus livros e autores e personagens mais queridos, mais amigos, companheiros de longa data e para toda a vida...

É colocar Bartolomeu olhando da tela da TV para cada pessoa da família, com seu jeito meigo, sincero, contando o causo de como é que foi seu encontro com a leitura, dos livros que se tornaram seus livros, de suas lembranças dos livros que leu. Resistir, quem há de?
Se for este o caminho (?), será que podemos fazer isso? Somos capazes de resistir à tentação de convidar os não iniciados/futuros portadores em potencial da Literatura em seus espíritos e vida e cotidiano a abrir uma obra em função de algum sentido pragmático, mais palatável? Para aprender alguma coisa, por exemplo...? Isso deve ou não ser evitado?

Creio que sim. Que a pragmatização rouba da obra sua relação maior com o indivíduo. Uma relação não mensurável, às vezes oculta nas entranhas espirituais de cada um, uma reação ao que se lê que não pode ser pré-determinada pela exigência de se decifrar e decorar uma mensagem prevista e fechada: certo ou errado.

Literatura é algo que se planta, num coração e num espírito, digamos, com sementes de tomate; só que o resultado pode ser brotarem esfinges.

Já imaginaram uma prova, seja de múltipla escolha ou de texto corrido, em que se cobre do aluno uma definição (segundo o gabarito ou o texto-base) do que ele acha que é e onde é O Sítio do Picapau Amarelo?

Não me admiraria se a resposta certa fosse: “Nenhuma das respostas anteriores porque o Sítio do Picapau Amarelo não existe”.

Mas e se houvesse um rebelde, um gauche na vida que, tocado pelo anjo torto, riscasse todas as opções, de “A” a “E”, recusando-as, e escrevesse, à guisa de resposta, na margem da folha: “Fica em Taubaté, ou pode ser logo ali, junto ao Labirinto do Minotauro, à Toca do Coelho de Alice, a uma região da Terra da Mancha cujo nome agora não quero lembrar, bem no universal hipermercado de impossíveis possibilíssimos. Aliás, nada existe em termos absolutos. Tudo é uma suposta existência. Tudo é conjectura, como escreveu Machado, que segundo o poeta que até hoje, sentado de costas para o mar, sendo mineiro de nascença, nos observa lá do seu bronze passou à imortalidade por fazer bruxarias” ... ? E se daí seguisse o candidato, se animando, mandando ver e deixando rolar, usando o verso da folha entronizada, compondo um texto inusitado, espantoso... Magnífico. Literário.

Que nota ele estaria arriscado a levar, se fosse uma questão do ENEM?

Creio que o Movimento pelo Brasil Literário pode interferir no tecido cultural como um todo, ter uma ação abrangente, não-fragmentada, não localizada. E isso, creio também, é o que tem capacidade de infundir este valor de que falamos, ou de mudar este valor da Literatura em nossa sociedade ─ que é um valor cultural, que não reside num segmento isolado, mas está no ar. É o que pode ter esse alcance geral, escapando de nichos com fins (pragmáticos) fragmentados/fragmentadores.

(e uma ação para ter impacto num tal âmbito, mesmo que nosso produto seja tão diferenciado, precisa incluir mídia e marketing ─ sortilégios diabólicos que são a corrente sanguínea das idéias e hábitos em nossa contemporaneidade; até porque, desde Umberto Eco, sabemos que não precisamos ter medo de despertar, como um Gregor Samsa, metamorfoseados em apocalípticos, nem em integrados... Ou seja: podemos fazer uma mídia/marketing do Bem)

O Movimento por um Brasil Literário pode ser o elemento que faltava, um catalisador, o toque final para gerar a massa crítica, diante das tantas e dispersas iniciativas da sociedade civil para democratizar a Literatura. Pode ser a sinergia desses movimentos todos, sua integração num espírito, numa idéia transformadora. Numa utopia; e utopias são impossibilidades férteis, como argumenta Otávio Paes.

Pode ser uma inspiração para se mudar o que vale a Literatura para nosso povo. Para surgir essa nova mentalidade, a da Literatura como um valor inalienável e fundamental no tecido social. Ou para se inserir para sempre a Literatura entre nossos valores básicos.

Finalmente, sobre o foco da Campanha sugerida pelo Instituto C&A ao Movimento, na Mídia, a Família... Para mim, um achado: se estamos falando de valor, nada como reunir Literatura ao que vale, ao que tem valor, no imaginário do nosso público-alvo. Até porque não se trata de um golpe de publicidade. É sincero: amor, esperança no futuro, família e Literatura tem tudo a ver, reciprocamente. São valores que se fortalecem ao interagirem.

Nada como, no colo da mãe e do pai, da avó e do avô, junto com o netinho amado esteja abraçado, também, um livro de histórias encantadas que se lê para a criança. Enfim, sem poder ainda concluir essa linha de pensamento...

Literatura faz parte da Família.
Literatura é da Casa.

Fonte:
http://www.luizantonioaguiar.com.br/

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