quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Jorge Facury Ferreira (Lu)


Noite de Sexta-feira Santa, segundo o calendário católico.

Júnior saiu determinado em busca de um dos mais velhos prazeres conhecidos. Tinha uma direção a seguir, um alvo, embora não seja digno concebê-lo como tal. Não encontrou. Aliás, viu o que deveria ter previsto se pensasse um pouco: uma longa procissão descendo a principal rua central da cidade. A voz do Ministro religioso ao longe, seguida do som de centenas de passos. Não se pode negar, eles infundem uma sensação antiga, que nos remete aos primeiros anos ¾ foi o que sentiu. Passos, quando muitos, se não superados por outros ruídos, reportam às coisas sacras entre as quais inclui-se sem sombra de dívida o ritual do féretro, momento de extrema impotência para todo ser humano.

Observou com curiosidade que as pessoas portavam velas protegidas por invólucros improvisados, para que o vento não apagasse as chamas. Alguns levavam copos descartáveis que ficavam parecendo mini-abajures, e a maioria garrafas plásticas de refrigerante cortadas ao meio e seguras de modo invertido. A criatividade faz os subprodutos do consumismo se prestarem às coisas do espírito! - considerou. E Enquanto considerava tais impressões ia a procissão que demorou, mas passou. Atravessou então a rua agora livre, posto que só havia uma única direção para onde rumar seus passos, que afinal, tornaram-se absolutamente errantes frente àqueles tantos que presenciou. A julgar pelo ritmo lento e monótono das ruas principiou julgar que beirava o fracasso em atingir a meta estabelecida. Passou pela praça central onde se encenava o tema da Páscoa. No bar da chinesa, alheia aos nossos costumes e crenças, um sujeito vestido de palhaço jogava bilhar. Era um palhaço completo, com a bola vermelha no nariz e tudo. Não seria a cena mais presumível para uma noite daquelas ¾ mas, quem pode presumir algo hoje em dia?

Caminhando, com olhos atentos ao seu objeto de desejo, que poderia surgir de qualquer direção, passou por uma outra praça onde os garotos de sempre cheiravam a cola de sapateiro... de sempre, acompanhados de seus irritantes patinetes e seus bonés. Todos com esse acessório. Não são gente sem um boné? - inquiriu-se. Supremo tributo ao modo americano de vida... Um fazia sua necessidade fisiológica na grama, com a tranqüilidade das crianças (ou dos cães, como pareceu a Júnior). Depois, retornou à súcia para participar de um rasgo de risos fáceis e irresponsáveis.

O clima nas ruas estava mais familiar que de costume. Uma garotinha dizia aos pais com a importância do momento vivido - e isso transparecia em sua voz ¾ que nunca consegue ficar perto do Jesus na procissão. Mal sabendo a pequena, que dentre todos, é ela quem de fato está mais perto dEle.

Mais adiante, já em outra rua, após ter passado o ponto dos travestis e ter ganhado à distância um beijo estalado na mão de um deles, corria outra criança junto aos familiares. Pode ser uma base falsa ¾ pensou Júnior - mas estava uma noite bastante democrática, com grupos da sociedade muito diferentes convivendo em paz. A criança voltou-se correndo para o meio da rua. A mãe no afã de limitá-la, pelo perigo do trânsito, advertiu:

– Cuidado com o homem do saco! Ele vem aí da rua!...

Mau costume esse de assustar as crianças fomentando medos desnecessários por um comodismo pretensamente defensável. Esse tal homem do saco deve ser figura estereotipada na imagem do andarilho, sujo, maltrapilho e carregando um saco onde porventura guarda as criancinhas malcriadas. É um mito preconceituoso. Se não fosse sujo, quiçá nem negro, poderia ser o papai-noel? Já cheio de impressões com tão pouco tempo de caminhada, Júnior estava a ponto de fazer o caminho de volta.

Adentrou um bar.

Uma cerveja poderia ser a derradeira companhia da noite. Por azar, um sujeito embriagado a seu lado atazanava o dono do estabelecimento, tanto que temeu por um conflito. O homem do lado de dentro do balcão fez um grande esforço para não chutar para fora o inconveniente freguês, que vez por outra gritava que sua mulher estava em casa, não se sabendo que importância havia em se lembrar isso. Talvez ¾ considerou Júnior ao tomar o primeiro gole da bebida que de tão gelada parecia ter sido trazida do pólo sul ¾ para reforçar seu perfil de homem macho, padrão da sociedade que ele porventura vê com ótica de simplório. Importunou tanto, que o dono do bar resolveu baixar as portas. Júnior pediu então uma cerveja em lata e saiu determinado a manter o rumo de volta à casa. Não andou muito, foi abordado por duas meninas de programa que queriam a lata. Sim, a lata, para angariar uns trocados nos centros de reciclagens.

= Mas, eu não terminei de beber! - protestou.

- A gente espera - disse a mais gordinha.

Sentaram-se num canto de esquina. Ele sorvia os últimos goles e elas trocavam idéias sobre suas mazelas. Depois, foram-se, sem nem dizer tchau. Elas com a lata e Júnior sem Lucélia, seu objetivo, a quem observava havia dias, como o gato pardo que na noite se esgueira vendo tudo à distância, no aguardo do momento certo para buscar o que lhe atrai.
Foi-se.

No caminho, acabou descobrindo a razão daquele palhaço que jogava bilhar. Havia um circo na cidade, instalado próximo dali.

O outro dia amanheceu e fez-se noite, convidando-o à nova tentativa. Andou, deu voltas. Encontrou umas tábuas boas jogadas no lixo pelo dono de uma loja em reforma. Se a noite nada trouxesse de novo, ao menos levaria as tábuas, poderia usá-las em alguma maquinação. Na mochila, levava um litro de vinho, para o ritual impagável do brinde. O litro e mais alguns dropes.

Parecia mais uma noite perdida.

Mas não era.

Lú apareceu. Linda, atraente. A uma distância de duas quadras Júnior flagrou o exato momento de sua chegada. Feitas às vezes do primeiro contato, tudo se encaminhou. Serviram-se de um teto que se presta ao trabalho daquelas que, como Lu, extraem ganhos nesse ofício milenar.

Tolheu o ímpeto da moça em lançar-se tecnicamente à lida.

= Bebamos, conversemos!...- propôs ele. E assim, só depois disso abraçaram aquele que é o carro-chefe de todos os grandes prazeres da humanidade. Findo o momento tão esperado, cada um seguiu numa direção.

Ela levou os dropes.

Encantado, Júnior tomou os derradeiros goles do vinho na rua, no gargalo, e não dispensou as tabuinhas que continuavam lá. Escolheu as melhores. Tomou o ônibus com as mesmas arrumadas em feixe. Entre os passageiros, um homem que parecia embriagado, com um pote de doces nas mãos, dizia:

- Mataram minha mulher e filhos! Depois mostrava marcas no corpo. - Hoje vendo doces! - completava. Sua história triste, ainda que corroborada pelas marcas de balas quase perdia em autenticidade pelo movimento trôpego, resultado de seu desafogo

Ninguém pediu seus doces. Acabou sentando-se, não sem antes retirar de seu lugar uma moça que conversava animadamente. Exibiu sua carteira de passageiro idoso e invocou lei federal para a exigência do lugar. Tinha razão, só não fora elegante nem educado. Um religioso levantou-se para entregar uma moeda. Usava um terno que não combinava paletó e calça nem com a mais pura das intenções. Deu a moeda mas não quis o doce. Chorou ao fundo uma criança. O homem levantou-se determinado e levou à mãe uma guloseima lembrando:

- Tá pago, pode pegar, não vai fazer falta, pegue senão fico bravo!

Voltou ao seu assento e foi a vez de invocar com o feixe de tábuas de Júnior. Queria saber se as vendia. Explicou em parte (porque não adiantava explicar tudo). Queria saber de Júnior se ele não lhe faria um banquinho. Respondeu pacientemente que não era marceneiro, aliás, sentiu uma vontadezinha de dizer que naquela noite não passava de um libertino, mas, também isso só ia complicar. Por fim ia se aproximando o ponto onde deveria apear. Despediu-se do vendedor que entabulara enrolada conversação, não sem antes comprar um doce para ajudar, mesmo detestando sidra.

Chegou o ponto.

Ali desceu. Ali acabava a noite.

Uma deliciosa e lasciva noite.

E ponto.

Fontes:
http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=7124&cat=Contos&vinda=S
Imagem =
http://www.legal.adv.br/category/martelando-o-teclado/

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