quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Lúcia Constantino (Antologia Poética)


QUANDO UM POETA MORRE

Quando um poeta morre
o céu se cobre de sombras
e um raio tomba
a luz foge.

Quando um poeta morre
a seara dorme.
Alforra do dar.
Fica remido no tempo
o intento do pensamento.
Sonetos do ar.

Quando um poeta morre
o céu incorre em engano
porque deixa de abrir a boca
por muitos anos.

AMAR

(dedicado a todos aqueles que lutam em favor dos animais)

Todo o bem do mundo
cabe dentro de um segundo
num sorriso que nos enlaça.

Amar é receber do vento
um sorriso em pensamento.
E a alma, entontecida,
desprende-se
como folha de outono,
da árvore do seu sono
pra sonhar no chão da vida.

Amar
é deitar-se sob o lume santo
das estrelas e sem espanto
saber-se assim distante
mas também igual.

E numa irmandade celeste,
sempre apreender a luz
desses mestres
sem solidão lilás,
e sem se ferir pra trás.

Amar...
ser doador
como o sol,
pastor como o vento,
mestre como o tempo,
enquanto vida for.

NOITES

As noites sempre vão... vão mais além...
desse púlpito de lembranças que é o luar.
Mas essa esfera imanta nuvens que me vêm
derramar a infância pelo meu olhar.

Estou, nessa vida, encarcerada
pelo escriba da noite em minha fronte.
Às vezes me desperto nessa fonte d’água
quando sei que nada sou
- apenas uma serva do horizonte.

O que vejo além do tempo que deforma
o rosto, o corpo, o pensamento:
vejo minha alma como simples rocha
que abraça o mar e se revela nos ventos.

RE-ENCONTRO

Quero adivinhar a vida
e essa luz que se infiltra
nos meus passos.

Talvez esse novo jeito de ser
seja apenas a terra a tremer
dentro do meu abraço.

Sentindo o calor do meu corpo
florescem seus campos
no meu rosto
e minha noite é seu cansaço.

Tão leves são essas horas
em que a alma se demora
propondo à terra essa irmandade.

Olhos nos olhos do amanhecer
reverencio auroras pra viver
até meu pôr-de-eternidade.

SOB O OLHAR DE UMA AZALÉIA

Me olhas com estes teus botões nascendo,
tão pequeninos e já espiando
esse retiro dos meus olhos -
porque às vezes te olho sem te ver,
quando estou longe, arqueando
os meus sóis sob este peso
das minhas saudades.
E quando descem as sombras, venho a ti.
Venho tirar-te o corpo,
desnudar-te, para vestir a minha alma.
E entrego-o sobre a terra fria,
em nome de um sentimento que tem ainda
dentro do meu peito a cor do sol
e o brilho de todas as estrelas.
Te peço perdão por esse ato de covardia.
E de coragem. Vais murchar sobre o chão,
mas renascer no âmago de minha alma.
Vais adornar aquele átrio de esperança
do templo daquele que aqui dorme
para que essa minha linguagem de mudo amor
o acorde e ele te olhe, te sinta, te ame,
e me ame em ti,
serva fiel do que de belo
ainda conservo em mim:
essa saudade viva
e o respeito por ti.

ESPERANÇA

Nasci de um sonho da noite,
quando a luz tecelã perfurou
os vitrais da aurora
e o grito das esferas ecoou pelos vales.
Revolvi-me dentro da casca
sorvendo aquele raio de vida
como se fosse o primeiro e o último.
Era imperativo renascer
das crostas dolorosas do passado,
da bifurcação da realidade presente,
e do sono das folhas que transmutam
os traços das larvas e da poeira.
Os sentidos purificaram-se à passagem
do sangue pelas letras
e da alma pelas palavras.
O que é imensidão no papel
nada mais é do que um vagido.
Um único vagido para tentar respirar
num novo amanhecer.

EPÍGRAFE

Frágil infinito azul
sob os cílios dos abismos.
Doce poente no dorso do mar
teus olhos
imensidão de ter sido

Fontes:
http://asasonoras.blogspot.com/

SIQUEIRA, Maria Lúcia. Asas ao anoitecer. Curitiba, 2004.

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