quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XV: Uma Nova Interjeição

Houve um rebuliço de pânico lá dentro, e logo depois surgiram, a fugir pelas janelas, mais filólogos e gramáticos e dicionaristas do que fogem ratazanas duma despensa quando o gatão aparece. A casa da velha ficou completamente vazia.

— Sim, senhor! O seu berro, Quindim, é que nem Flit, e merece ir para a Casa das Interjeições com um letreiro novo: Interjeição espantativa de gramáticos. . .

Desimpedida que ficou a casa da velha, entraram todos, menos o rinoceronte, que não cabia na porta. Toparam a Etimologia intrigadíssima com aquele Muuu!. . . som jamais ouvido na zona.

— Não conheço essa interjeição — declarou ela, assim que os meninos a rodearam. — Só conheço o Mu! dos bois, mas este que ouvi não me parece nada bovino.

— Este é rinocerontino, minha senhora! — explicou

Emília, com toda a sapequice.— Veio da África. A senhora conhece a África?

A Etimologia não conhece as coisas; só conhece as palavras que designam as coisas. De modo que, ao ouvir aquela pergunta, julgou que a boneca se referisse à palavra África, e respondeu:

— Sim, é uma palavra de origem latina, ou melhor, puramente latina, porque não mudou. A propósito. . .

— Espere — interrompeu Emília. — A história da palavra África não nos interessa. Preferimos conhecer a história de outras palavras mais importantes, como, por exemplo, Boneca.

A velha riu-se da presunção da criaturinha e respondeu:

— Boneca, minha cara, é o feminino de Boneco, palavra que veio do holandês Manneken, homenzinho. Houve mudança do M para B — duas letras que o povo inculto costuma confundir. A palavra Manneken entrou em Portugal transformada em Banneken, ou Bonneken, e foi sendo desfigurada pelo povo até chegar à sua forma de hoje, Boneco. Dessa mesma palavra holandesa nasceu para o português uma outra — Manequim.

— Mas então o povo, isto é, os ignorantes ou incultos, influi assim na língua? — disse Pedrinho.

— Os incultos influíram e ainda influem muitíssimo na língua — respondeu a velha. — Os incultos formam a grande maioria, e as mudanças que a maioria faz na língua acabam ficando.

— Engraçado! Está aí uma coisa que nunca imaginei. . .

— É fácil de compreender isso — observou a velha. — As pessoas cultas aprendem com professores e, como aprendem, repetem certo as palavras. Mas os incultos aprendem o pouco que sabem com outros incultos, e só aprendem mais ou menos, de modo que não só repetem os erros aprendidos como perpetram erros novos, que por sua vez passam a ser repetidos adiante. Por fim há tanta gente a cometer o mesmo erro que o erro vira Uso e, portanto, deixa de ser erro. O que nós hoje chamamos certo, já foi erro em outros tempos. Assim é a vida, meus caros meninos.

Tomemos a palavra latina Speculum — continuou a velha. — Essa palavra emigrou para Portugal com os soldados romanos, e foi sendo gradativamente errada até ficar com a forma que tem hoje — Espelho.

— E os ignorantes de hoje continuam a mexer nela — observou Narizinho. — A gente da roça diz Espeio.

— Muito bem lembrado — concordou a velha. — Essa forma Espeio é hoje repelida com horror pelos cultos modernos, como a forma Espelho devia ter sido repelida com horror pelos cultos de dantes. Mas como os cultos de hoje aceitam como certo o que já foi erro, bem pode ser que os cultos do futuro aceitem como certo o erro de hoje. Eu, que sou muito velha e tenho visto muita coisa, de nada me admiro. O homem é um animal comodista. Daí a sua tendência a adotar os erros que exigem menor esforço para a pronúncia. Espelho exige menor esforço do que Speculum, e por isso venceu. Espeio exige menor esforço do que Espelho. Quem nos diz que não acabará vencendo nestes mil ou dois mil anos?

Hoje está mais difícil a ação dos ignorantes sobre a língua, por causa do grande número de livros e jornais que existem e fixam a forma atual das palavras. Mas antigamente quem fazia a língua era justamente o ignorante.

Dona Etimologia tomou fôlego e bebeu um golinho de chá. Emília foi cheirar a xícara para saber se era chá-da-índia ou de erva-cidreira. . .

— Mas qual a sua principal ocupação nesta cidade, minha senhora? — perguntou o menino.

— Eu ensino a origem e a formação de todas as palavras.

— Pois então nos conte a origem de algumas.

Dona Etimologia bebeu mais um golinho de chá (enquanto Emília cochichava para Narizinho: "É de cidreira!") e começou:

— As palavras desta cidade nova, onde estamos, vieram quase todas da cidade velha, que fica do outro lado do mar. Lá na cidade velha, porém, essas palavras levaram uns dois mil anos para se formarem.

— Como foi isso? Explique.

— Nos começos, as terras em redor dessa cidade haviam sido ocupadas pelos soldados romanos, que só falavam latim.

Esses soldados moravam em acampamento (ou Castra, como se dizia em latim), de modo que foi em redor dos acampamentos que a língua nova começou a surgir.

— Que língua nova?

— A portuguesa. Os moradores das terras ocupadas pelos romanos, ou Aborígines, eram bárbaros incultíssimos, que foram aprendendo o latim lá à moda deles — isto é, estropiadamente, todo errado e com muita mistura de termos e modos de falar locais. Tanto estropiaram o pobre latim, que ele virou um Dialeto ou uma variante do latim puro. Depois os romanos se retiraram, mas o dialeto ficou vivendo a sua vidinha, e foi evoluindo, ou mudando, até tornar-se o que chamamos hoje língua portuguesa.

— Então a língua portuguesa não passa dum dialeto do latim?

— Perfeitamente. E também a língua francesa, a espanhola e a italiana não passam de outros tantos dialetos do mesmo latim. No começo, esses dialetos eram muito pobres em palavras e modos de dizer. Com o tempo, entretanto, as palavras foram aumentando enormemente e também foram aparecendo novos jeitos de combinar entre si as palavras. E desse modo essas línguas enriqueceram-se.

— Mas as palavras foram aumentando como? Donde vinham? Quem era o fabricante? — quis saber a menina.

— Umas nasciam lá mesmo, inventadas pelo povo; outras eram criadas pelos eruditos, que são os sabidões; outras eram importadas dos países estrangeiros.

— Mas o povo? Como é que o povo forma palavras?

— Muito simplesmente. O povo combina entre si palavras já existentes e forma novas.

— Isso lá no sítio se chama "tirar cria" — lembrou Pedrinho.

— Em Gramática se chama DERIVAÇÃO, querendo dizer que uma palavra sai de outra, ou deriva de outra. Neste processo de Derivação há umas certas palavrinhas, sem sentido próprio, que possuem uma função muito importante. São os PREFIXOS e SUFIXOS. Os prefixos grudam-se no começo da palavra, e os sufixos grudam-se no fim. Estes constituem verdadeiros rabinhos, que por si nada dizem, mas que, pregados a outras palavras, servem para dar-lhes uma forma nova e um sentido novo.

— Espere! — gritou Emília. — Conheço um rabinho desses muito usado na fabricação de Advérbios — o tal Mente. Basta pregá-lo no traseiro dum Adjetivo para aparecer um lindo Advérbio novo. É Sufixo o tal Mente?

— Sim, bonequinha — respondeu a velha, admirada da esperteza da Emília. — Mente é um sufixo só de uso para fazer Advérbios. Existem inúmeros outros, como Ária, Ado, Agem, Ume, etc. Este Ária, por exemplo, é um Sufixo precioso, que permitiu a formação de grande número de Substantivos novos. Ária em si não quer dizer coisa nenhuma, não passa dum simples rabinho. Mas, ligado a uma palavra, cria outra nova, com idéia de quantidade. Ligado ao Substantivo Cavalo, por exemplo, dá Cavalaria, que quer dizer muitos cavalos.

— Não, senhora — protestou Emília. — Cavalo com o Ária atrás vira Cavaloaria, e não Cavalaria.

A velha riu-se da exigência daquele espirro de criatura.

— Bom, minha filha — respondeu ela pachorrentamente —, confesso que errei. Eu devia ter explicado que, antes de colocar um desses rabinhos, é necessário primeiro cortar a DESINÊNCIA da palavra. Senão o Sufixo não pega, ou não solda. Cada palavra se divide em duas partes — a RAIZ e a DESINÊNCIA. Raiz é a parte fixa da palavra; Desinência é a parte final, mudável. Reparem que, em todas as palavras formadas de Cavalo, a Raiz é Cavai, e notem que essa Raiz nunca muda. Cavaleiro, Cava-laria, Caval-gadura, Caval-hada. . .

— Caval-ência — ajuntou Emília.

— Essa palavra eu não conheço — disse a velha, com expressão de surpresa nos olhos.

— É minha! — berrou a boneca. — Foi inventada por mim com a invençãozinha que Deus me deu. Faz parte dos meus "neologismos".

A velha fez uma careta igual à de Tia Nastácia lá no sítio, quando pendurava o beiço e dizia — Credo!. . .

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Continua ... Capítulo XVI: Emília Forma Palavras
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

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