domingo, 12 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XVIII: Gente de Fora

— Pois é isso, meninada! — disse logo depois a velha. — Vocês já sabem como se formam as palavras da língua. Grande número veio diretamente do latim. Foi o começo, a primeira plantação. Depois começaram a reproduzir-se lá entre elas, ou a derivar-se umas das outras. Depois houve muita entrada de palavras exóticas, isto é, procedentes de países estrangeiros. Depois houve invenção de neologismos — e desses vários modos a língua foi crescendo.

Aqui na cidade nova as palavras vindas da cidade velha misturaram-se com inúmeras de origem local, ou palavras índias, que já existiam nas terras do Brasil quando os portugueses as descobriram. A maior parte dos nomes de cidades, rios e montanhas do Brasil são de origem índia, como Tremembé, Itu, Niterói, Itatiaia, Goiás, Piauí, Pirambóia, etc.

Ita é uma palavra da língua tupi que quer dizer Pedra, e tem servido de Prefixo para a formação de muitos Nomes. Temos em São Paulo a cidadezinha de Itápolis, formada de Ita, que é indígena, e Polis (cidade), que é grega.

Pira (peixe) é outra palavra tupi muito usada. Piracicaba, Piraquara, Guapira.

— Eu gosto muito das palavras tupis e lamento que o Brasil não tenha um nome tirado dessa língua — disse Pedrinho.

— Em compensação muitos Estados do Brasil possuem nomes indígenas, como Pará (rio grande), Pernambuco (quebra-mar), Paraná (rio enorme), Paraíba (rio ruivo), Maranhão (mar grande) e outros.

O tupi conseguiu encaixar na língua portuguesa grande número de palavras de uso diário, como Taba, Moranga, Jaguar, Araçá, Jabuticabal, Capim, Carioca, Marimbondo, Pipoca, Pereba, Cuia, Jararaca, Urutu, Tipiti, Embira, etc.

— E também muitos Nomes Próprios — advertiu Narizinho. — Conheço meninas chamadas Araci, Iracema, Lindóia, Inaiá, Jandira. . .

— E eu conheço um menino chamado Ubirajara Guaporé de Itapuã Guaratinguaçu, filho dum turco que mora perto do sítio do Tio Barnabé -— lembrou Pedrinho.

— Pois é isso — continuou a velha. — Todas as línguas vão dando palavras para a língua desta cidade. O grego deu muitas. O hebraico deu várias, como Messias, Rabino, Satanás, Maná, Aleluia.

O árabe deu, entre outras, Alfândega, Alambique, Alface, Alfaiate, Alqueire, Álcool, Algarismo, Arroba, Armazém, Fatia, Macio, Matraca, Xarope, Cifra, Zero, Assassino.

A língua francesa deu boa quantidade, como Paletó, Boné, Jornal, Bandido, Tambor, Vendaval, Comboio, Conhaque, Champanha.

A língua espanhola deu menos do que devia dar. Citarei Fandango, Frente, Muchacho, Castanhola, Trecho, Savana.

A língua italiana deu muito mais. Ágio, Bancarrota, Bússola, Gôndola, Cantata, Cascata, Charlatão, Macarrão, Tenor, Piano, Violino, Carnaval, Gazeta, Soneto, Ópera, Fiasco e Polenta são palavras italianas.

O inglês está dando muitas agora. Das antigas posso citar Cheque, Clube, Tilburi, Trole, Esporte, Rosbife, Sanduíche; e entre as modernas há várias trazidas pelo cinema e pelo futebol.

— Eu sei uma! — gritou Pedrinho levantando o dedo.

— Diga.

— Okey, que também se escreve com duas letras, OK. Quer dizer que está tudo muito bem.

— Eu sei outra! — disse a menina. — Conheço a palavra It, que quer dizer um "quezinho" especial.

— Isso mesmo — confirmou a velha. — Esse novo sentido do velho pronome inglês It foi inventado por uma escritora que o botou como título dum seu romance. Pessoa que tem It significa pessoa que exerce atração sobre as outras. Emília, por exemplo, é um pocinho de It...

A boneca fungou de gosto e Dona Etimologia prosseguiu:

— Também vieram muitas palavras da África, trazidas pelos negros escravizados, como Banze, Cacimba, Canjica, Inhame, Macaco, Mandinga, Moleque, Papagaio, Tanga, Zebra, Vatapá, Batuque, Mocotó, Gambá.

Da Rússia vieram Caleça, Cossaco, Soviete, Bolchevismo, etc.

Da Hungria vieram Coche, Cocheiro, Sutche, Hussardo.

Da China vieram Chá, Chávena, Mandarim, Leque.

Da Pérsia vieram Bazar, Caravana, Balcão, Diva, Turbante, Tabuleiro, Tafetá.

Da Turquia vieram Tulipa, Odalisca, Paxá, Bergamota, Quiosque.

A velha parou na Turquia, para tomar mais um gole de chá.

E assim se foi formando, e se vai formando, a língua. Uma língua não pára nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.

— Que vem a ser clássicos? — perguntou a menina.

— Os entendidos chamaram clássicos aos escritores antigos, como o Padre Antônio Vieira, Frei Luís de Sousa, o Padre Manuel Bernardes e outros. Para os Carrancas, quem não escreve como eles está errado.

Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer uma coisa aqui dizem outra. Borracho, por exemplo, quer dizer bêbado; lá quer dizer filhote de pombo — vejam que diferença! Arrear, aqui é selar um animal; lá, é enfeitar, adornar.

— Então lá há moças bem arreadas? — perguntou Emília.

— Sim — respondeu a velha. — Uma dama bem arreada não espanta a ninguém lá do outro lado. Aqui, Moço significa jovem; lá, significa serviçal, criado.

Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui, todos dizem Peito; lá, todos dizem Paito, embora escrevam a palavra da mesma maneira. Aqui se diz Tenho e lá se diz Tanho. Aqui se diz Verão; lá se diz V'rao.

— Também eles dizem por lá Vatata, Vacalhau, Baca, Vesouro — lembrou Pedrinho.

— Sim, o povo de lá troca muito o V pelo B e vice-versa.

— Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha — concluiu Narizinho.

— Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra — as necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria.

A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha. Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver.

— Nós vamos ver? — exclamou Narizinho, dando uma risada. — Então pensa que somos como a senhora, que vive toda a vida e mais séculos e séculos?

— Vocês também viverão séculos e séculos por meio de seus futuros filhinhos e netos e bisnetos — replicou a velha.

— Menos eu! — gritou Emília. — Já me casei e me arrependi bastante. Felizmente, não tive filhos — e como não pretendo casar-me de novo, não deixarei "descendência" neste mundo...

— E se aparecer um grande pirata, como aquele Capitão Gancho da história de Peter Pan? — cochichou Narizinho no ouvido dela.

— Isso é outro caso. . . — respondeu Emília, cujo sonho sempre fora ser esposa dum grande pirata — para "mandar num navio". . .

— Por falar em pirata. . . Onde andará o Visconde? — indagou Pedrinho. — Depois que tirou Quindim da sala não o vi mais.

— O Visconde está armando alguma — disse a boneca, que andava desconfiada de qualquer coisa. — Vamos procurá-lo, já, já, antes que lhe aconteça alguma.

E como tinham de procurar o Visconde, despediram-se de Dona Etimologia, que prometeu aparecer no sítio de Dona Benta.

Logo que se viram na rua, Pedrinho perguntou à primeira palavra que ia passando se não vira um Visconde assim, assim.

— Um de palhinha de milho no pescoço? Vi, pois não. Passou por aqui inda agora, com um Ditongo debaixo do capote. Ia esperneando, o coitadinho.

— Eu não disse? — berrou Emília. — Eu não disse que o Visconde andava tramando alguma? Mas que quererá ele com um Ditongo, Santo Deus? . . .

Puseram-se em marcha, com o rinoceronte atrás. Logo adiante viram um ajuntamento na frente de certa casa.

— Será alto-falante com resultado de futebol?

Não era isso. Era uma curiosidade de museu que ali estava em exibição pública. Um grande letreiro dizia: A palavra mais comprida da língua. Entrada franca.

Os meninos precipitaram-se para ver o fenômeno e de fato viram, num cercado de arame, espichada no chão que nem jibóia, a palavra Anticonstitucionalissimamente.

— Irra! — berrou a boneca. — Uma, duas, três, quatro. . . Vinte e nove letras tem este formidável Advérbio!. . .

— Treze sílabas! Cáspite!... — acrescentou Pedrinho.

Um guarda ali presente deu informações a respeito daquela sucuri verbal. Era uma pobre palavra que não tinha outra ocupação na língua senão exibir-se como curiosidade. Vivia do seu tamanho, como certos gigantes de circo. Uma coitada que nem andar podia, de tanta letra a pesar-lhe nas costas. Mais que o alfabeto inteiro. . .

— Inda agora esteve aqui conversando com ela um grande fidalgo de fora, que a escreveu direitinho no seu caderno de notas.

— Como era esse fidalgo? Não reparou se usava umas palhinhas no pescoço?

— Isso mesmo.

— Sem cartolinha na cabeça?

— Sem nada na cabeça.

— Um ar de. . . de sabugo de milho?

— Isso mesmo.

— Um tanto embolorado?

— Isso mesmo. Verdinho de bolor.

— Pois é o grande Visconde de Sabugosa, que andamos catando como se cata agulha em palheiro. E para onde se dirigiu ele?

— Depois que acabou de tomar as suas notas, disse-me: "Passe bem!" e sumiu-se. Percebi que levava um Ditongo debaixo do capote. Ia esperneando, o pobrezinho. . .

Emília ficou seriamente apreensiva com a história daquele Ditongo esperneante.

______________________
Continua ... Capítulo XIX: Nos Domínios da Sintaxe
____________________________
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

Nenhum comentário: