segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XIX: Nos Domínios da Sintaxe

O tráfego naquela cidade não era bem regulado. Nada de flechas indicativas das direções, nem "grilos" poliglotas que guiassem os viajantes. De modo que os meninos, em vez de darem no bairro das Sílabas, para onde pretendiam ir a fim de saber que história era aquela do Ditongo, foram parar num bairro desconhecido.

— Onde estamos? — quis saber Pedrinho.

— No bairro da SINTAXE — respondeu Quindim. — Esta cidade divide-se em duas zonas. A primeira é a zona da LEXIOLOGIA, onde todas as palavras vivem soltas, como vocês já viram. A segunda (esta aqui) é a zona da Sintaxe, onde as palavras só saem em família, casadinhas, com filhos e parentaIha. Uma família de palavras chama-se uma ORAÇÃO.

Os meninos viram que realmente não passeavam por ali palavras soltas. Apareciam sempre aos magotes, formando frases completas.

Passou um grupo que formava esta frase: O Visconde raptou um ditonguinho. Quindim explicou:

— Esta frase é uma Oração que leva na frente o chefe da família, ou o SUJEITO; depois dele vem um PREDICADO.

— Quer dizer — indagou Narizinho — que em cada Oração há sempre um chefe, que é o tal Sujeito, seguido por um Predicado?

— Sim. Eles são chamados os TERMOS ESSENCIAIS DA ORAÇÃO. O sujeito dirige tudo, faz e desfaz, manda e desmanda. Quando você diz: Tia Nastácia faz bolinhos muito gostosos, o Sujeito é Tia Nastácia — e está claro que sem esse Sujeito, adeus bolinhos! O Sujeito é sempre um Substantivo, ou frase que corresponda a um Substantivo.

— Alto lá! — exclamou Emília. — Se eu digo: Tu és um paquiderme gramatical, o Sujeito é Tu — e Tu não passa de muito bom Pronome.

— Sim, Tu é Pronome, mas está na frase representando a mim, rinoceronte, que sou um Substantivo.

Emília viu que era assim mesmo e calou-se.

— Muito bem — continuou Quindim, satisfeito de haver pregado um quinau na boneca. — Sujeito é isso. Vamos ver agora quem sabe o que é Predicada.

Ninguém sabia.

— Predicado — explicou ele — é o que se diz do Sujeito.

— Mas o que se diz do Sujeito está no Verbo, lembrou o menino. Na frase: O gato comeu o rato, o que se diz do Sujeito Gato é que Comeu o rato.

— Pois é isso mesmo — confirmou Quindim. — O Predicado está dentro do Verbo. Depois aparecem os TERMOS INTEGRANTES DA ORAÇÃO, que completam o sentido da oração e são por isso indispensáveis.

— Já ouvi falar num tal COMPLEMENTO VERBAL — disse o menino.

— Sim, e é muito importante. Como alguns Verbos não completam sozinhos o sentido da Oração, eles estão sempre exigindo outras palavras para que a Oração tenha sentido. Essas palavras que completam o sentido do Verbo são chamadas Complemento Verbal. Na Oração: O Gilson matou o tico-tico, o Complemento Verbal é Tico-Tico, e nesse caso é chamado OBJETO DIRETO, porque vem diretamente ligado ao Verbo.

— Já sei — disse Emília —, o Verbo Matar é dos tais Verbos Transitivos, que exigem Complemento.

— Isso mesmo — respondeu Quindim, admirado com a sabedoria da boneca. — Mas nesta outra Oração: O Visconde gosta de ditongos, o Complemento Verbal, De Ditongos, é chamado OBJETO INDIRETO, porque o Verbo Gostar não se liga a ele diretamente, mas precisa ainda intercalar essa Preposição De. Quem diz Gosta tem de completar a idéia dizendo Do que gosta.

— E que mais há numa Oração?

— Há os chamados TERMOS ACESSÓRIOS, que desempenham uma função secundária, limitando o sentido dos substantivos, ou exprimindo alguma circunstância. Nesta Oração: Emília está aprendendo gramática sem o perceber, este Sem O Perceber é um ADJUNTO ADVERBIAL, que exprime uma circunstância — o modo pelo qual Emília está aprendendo. Na Oração: O pica-pau pica o pau no terreiro, o No Terreiro é um ADJUNTO ADVERBIAL que explica em que lugar o pica-pau está picando o pau.

— E fora esse Adjunto Adverbial, que outro Acessório existe? — perguntou Emília, torcendo o nariz para as palavras difíceis.

— Há o ADJUNTO ADNOMINAL, que determina ou qualifica o Substantivo que ele complementa. Na expressão: Narizinho arrebitado; este Adjetivo Arrebitado é o Adjunto Adnominal do Sujeito Narizinho.

Estavam nesse ponto quando ouviram um rebuliço na praça. Era uma senhora de maneiras distintas, com lornhão de cabo de madrepérola, que vinha vindo, seguida de um cortejo de frases.

— Quem será aquela grande dama? — indagou Narizinho.

— Oh, é a Senhora Sintaxe, a dona de tudo isto por aqui. Quem governa e dirige a concordância das palavras nas frases é sempre ela. Uma senhora exigentíssima.

Os meninos foram ao encontro da grande dama, à qual Narizinho fez as necessárias apresentações. Ela gostou muito da carinha da Emília, mas achou que o chifre de Quindim podia ser menos pontudo. Depois de alguns instantes de prosa, disse Dona Sintaxe:

— Pois é isso, meus meninos. Sou eu quem faz estas palavrinhas comportarem-se como é preciso dentro das Orações. Obrigo-as a terem boas maneiras, a seguirem as regras do bom-tom. Forço o Verbo a concordar sempre com o Sujeito, e o Adjetivo a concordar com o Substantivo. Também não deixo que o Pronome discorde do Substantivo. Se não fossem as minhas exigências, as frases virariam verdadeiras bagunças. Passo a vida fiscalizando a concordância das Senhoras Palavras.

Nesse momento passou a certa distância, muito envergonhada de si própria, uma frase que dizia assim: Os gatos comeu os ratos. Dona Sintaxe ficou vermelha de cólera e chamou-a com um gesto enérgico.

— Venha cá! Então não sabe que o Verbo tem de concordar sempre com o Sujeito? Lambona! Vivo dizendo isto. . .

— A culpa é do Verbo — fungou o Sujeito. — Eu bem que o avisei. . .

Dona Sintaxe tocou dali o Comeu e pôs no lugar um Comeram.

— Agora sim — disse ela sorrindo. — Agora a frase está certíssima. Os gatos comeram os ratos. Pode ir, e nunca mais me apareça de Verbo torto, ouviu?

Dona Sintaxe encontrou mais adiante outra aleijadinha — uma Oração que rezava assim: Nós vai brincar, e consertou-a, pondo o Verbo no plural — Vamos. -

Depois, voltando-se para Emília, que estava de mãozinhas na cintura gozando a cena, explicou:

— Minha vida aqui é o que se vê. Tenho de estar fiscalizando todas estas senhoritas para que a cidade não vire salada de batatas. As frases que andam com a concordância na regra tornam-se claras como água da fonte — e a clareza é a maior qualidade que existe. Tenho também de cuidar da COLOCAÇÃO ou da ordem das palavras na frase.

— Então elas não podem arrumar-se como querem? — perguntou Emília.

— Absolutamente não. Têm de seguir certas regras para que o pensamento fique bem claro e bem vestido. A minha preocupação é sempre a mesma — clareza. As frases formam-se para exprimir o pensamento dos homens, e a boa ordem das palavras na frase ajuda a expressão do pensamento.

— A senhora tem toda a razão — concordou a boneca.

— Lá no sítio de Dona Benta o Substantivo Nastácia também gosta de dar ordem a tudo, porque a ordem facilita a vida, diz ela.

— Eu uso aqui várias regras — continuou Dona Sintaxe — umas para a ORDEM DIRETA e outras para a ORDEM INVERSA. Na Ordem Direta ponho sempre os Sujeitos antes do Verbo; ponho os Complementos logo depois das palavras que eles complementam; ponho os Adjetivos logo depois dos Substantivos que eles modificam; e ponho as palavrinhas de ligação entre os termos que elas ligam. Fica tudo uma beleza, de tão claro e simples. Mas há também a Ordem Inversa, na qual estas regras não são seguidas.

— Nesse caso a clareza deve sofrer muito — observou a menina.

— Há limites. Se o sentido da frase fica bem claro, eu deixo que a frase se afaste da Ordem Direta; mas se o sentido fica obscuro ou duvidoso, ah, não admito! O que quero saber nesta cidade é de clareza e mais clareza, porque a clareza é o sol da língua.

— E quais as regras para a Ordem Inversa? — perguntou Pedrinho.

— Uma delas é que o Verbo deve vir antes do Sujeito, se a frase está na forma interrogativa. Eu não deixo dizer, por exemplo: Ele é quem? Obrigo a dizer: Quem é ele? Nas chamadas frases OPTATIVAS e IMPERATIVAS também mando pôr o Sujeito em seguida ao Verbo, como neste exemplo: Vaze tu o que ordeno, que é frase Imperativa. Ou nesta: Seja você muito feliz, que é frase Optativa.

— E que mais?

— Os Pronomes Demonstrativos eu os ponho antes dos Substantivos por eles determinados. Digo, pois: Aquele pica-pau, e não pica-pau aquele. Este rinoceronte, e não Rinoceronte este.

Também os Numerais são escritos antes dos Substantivos por eles determinados. Assim: Três meninos, e não Meninos três.

— E os Pronomes Oblíquos, que é que a senhora faz com eles?

— Esses eu mando colocar de três modos diferentes — antes do Verbo, no meio do Verbo e depois do Verbo.

— No meio do Verbo? — indagou Emília com cara de espanto. — Como? Então a senhora corta o Verbo com uma faca para enfiar o Pronome dentro?

— Exatamente. Abro o Verbo e ponho o Pronome dentro. Nesta frase: O gato se fartará de ratos, eu posso fazer essa operação cirúrgica. Abro o Verbo Fartará e ponho o Pronome dentro, assim: Fartar-se-á. E a frase fica esta: O gato fartar-se-á de ratos — muito mais elegante que a outra.

— Tal qual Tia Nastácia costuma fazer com os pimentões. Abre os coitados pelo meio, tira as sementes e enfia dentro uma carne oblíqua.

Dona Sintaxe aprovou os pimentões de Tia Nastácia. Depois disse:

— Os gramáticos chamam PRONOME PROCLÍTICO ao que vem antes do Verbo, como em: O menino SE queimou. Chamam PRONOME ENCLÍTICO ao que vem depois do Verbo, como em: O menino queimou-SE. E chamam PRONOME MESOCLÍTICO ao que vem no meio do Verbo, como em: O menino queimar-SE-á.

— Quanta complicação para dar dor de cabeça nas crianças! — comentou Narizinho. — Eu, se apanhasse um gramático por aqui, atiçava Quindim em cima dele. . .
Nisto Emília deu uma vastíssima gargalhada.

— Que é isso, bonequinha? — perguntou a Sintaxe. — Viu o passarinho verde?

— Estou me lembrando dos pimentões mesoclíticos que Tia Nastácia faz sem saber. . . — respondeu a diabinha.
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Continua ... Capítulo XX: As Figuras de Sintaxe
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

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