sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Fim de Ano n. 439)

Uma Trova Nacional

Vai ano velho, de vez,
leve o mal e o duvidoso,
que o Ano Novo em rapidez,
há de ser mais generoso!
–VANIA ENNES/PR–

Uma Trova Potiguar

Este ano, já moribundo,
chora por não ser capaz
de ao menos puxar o mundo
para mais perto da paz!
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova de Ademar


Eu desejo aos Trovadores
com pompa e com muita pose
o pódio dos vencedores
agora em 2012!!!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


O Ano Novo sempre faz
renovar nossa vontade,
de ver a bendita Paz
reinando na humanidade.
–REINALDO AGUIAR/RN–

Simplesmente Poesia

Ano Novo
 –CAROLINA RAMOS/SP–
 

Os sinos sacodem a noite silente!
Apitos, sirenes, febris, a anunciar
que parte o Ano Velho, tristonho e doente,
e  nova esperança começa a brilhar!

Em meio à alegria, que explode em espuma,
transborda de taças e rola no chão,
rasteja a tristeza, fiapos de bruma,
estranha entre risos confete e rojão!

É a mesma tristeza que rima com prece
e aquele que a sente é  incapaz de a entender!
Tristeza que às vezes, receio parece,
receio de tudo que é inútil prever...

Mas, pulsam ao peito, no fundo... bem fundo,
reservas de Amor, e de Fé e Confiança
- um eco escapado aos gemidos do mundo –
e mesmo sofrida... renasce a Esperança!!!

Estrofe do Dia

O Ano Novo vem vindo
no grande trem das mudanças,
vem trazendo os seus vagões
lotados de esperanças,
mas eu só creio em conquista,
se Deus for o Maquinista
desta bem-aventurança!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Transitório.
 –VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR–


Trezentos e sessenta e cinco dias,
meu calendário, foi seu tempo exato.
Agora é estranho, quando então constato:
- É um bloco velho, já sem serventias.

Mas eu o estimo. As datas foram guias...
Cada lembrete compôs um retrato
do cotidiano que se fez, de fato,
de altos e baixos, sombras e alegrias.

Releio as notas... Dói-me concordar:
- Dever cumprido! Ceda o seu lugar
para o que chega e estreia no cenário.

Tão companheiro, em toda a minha lida
de um ano inteiro... Para mim, tem vida!
– Adeus, meu velho amigo Calendário...
Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Thaty Marcondes (Lembranças de Infância)

Sou de um tempo em que as mulheres não conversavam sobre política: isto era assunto exclusivamente de homens.

 Sou de um tempo em que as crianças iam pra cama quando começava o horário dos noticiários, que não eram considerados apropriados para crianças, devido aos temas “fortes” que abordavam.

 Lembro-me de minha avó - espanhola de traços mouros - cuidando para que tudo isso acontecesse de forma correta, pois não podia perder o controle da casa e da família, para que meu avô - espanhol de traços ibéricos - não perdesse a calma ou alguma palavra do apresentador do Repórter Esso.

 “Lugar de mulher é na cozinha, falando sobre amenidades e trocando receitas” – chavão da época da minha infância.

 Outro chavão: “Lugar de criança, depois das 9 h da noite, é na cama: criança limpa, de dentes escovados, após tomar um leite morno (leite de verdade, não esse leitágua de vaca quadrada de caixinha) e comer uns biscoitos (bolacha Maria ou de Maisena)”.

 E os homens na sala trocando idéias sobre as notícias anunciadas com estardalhaço, bebericavam uma “purinha” de reserva especial que era pra facilitar a digestão. Ficavam até tarde nos bebericos e falações, às vezes se exaltavam quando o assunto era política ou futebol. A avó na cozinha, se alguém precisasse de um café forte pra cortar o efeito do exagero nas doses.

 Se eu ainda fosse criança, naquele tempo novamente, eu não teria visto a CNN espanhola. Eu não teria marejado meus olhos ao ver o povo de meus avós sofrendo de forma parecida ao que seus antepassados um dia fizeram sofrer os antepassados dos assassinos. Afinal, quem matou quem? Caim matou Abel? David matou Golias? A inquisição matou os ímpios? As fogueiras queimaram bruxos? Resumo: gente matando gente, por que o nome de seu Deus é diferente!

 - Mãe, tem uma bolachinha Maria e um leitinho morno? Acho que tá na hora de eu dormir. Não entendo gente grande!

 “Tá na hora de dormir, não espere mamãe mandar;
 um bom sono pra você e um alegre despertar".

Fontes:
Garganta da Serpente. Contos do Coral.
Imagem = Cultura Livre

Quadrinhas para Crianças

Vamos lembrar neste dia
Mais um grande amor da vida,
Que é mãe duas vezes,
A vovozinha querida!

Filhos, meus lindos tesouros,
Pedacinhos do meu ser,
É em vocês que eu encontro
A alegria de viver!

Das coisas mais sublimes desta vida,
A mais sublime que se me afigura,
É minha mãe, a minha mãe querida
Que, das coisas mais puras,
É a mais pura!

Há cirandas de esperanças
Mesmo nas tristes favelas
Onde brincam as crianças,
Brincam os anjos com elas!
Trazendo a força divina
Do amor à luz da esperança,
Mesmo sendo pequenina,
Como é grande uma criança!

Não esbanje tanta água,
Já chega de brincadeira.
Use sempre o necessário
E depois feche a torneira!

Empine o seu papagaio,
Mas tenha muito cuidado.
Não solte perto dos fios,
Solte em lugar descampado!

Da frase “vá tomar banho!”
Tem quem goste ou se zangue.
No entanto o banho é tão bom
Pra circulação do sangue!

Oi, não sinta tanta inveja
Das coisas que os outros têm,
Com trabalho e com vontade
Você poderá ter também!

Higiene, água fervida,
Roupas leves no verão!
Você está se prevenindo
Contra a desidratação!

Comer com a boca fechada,
Faz parte da educação.
Cuidado para não deixar
Cair comida no chão!

Coma legumes verduras,
E muitas frutas também
Mas primeiro não se esqueça,
Lave tudo muito bem!

Ei, cuidado com a porta!
Abra e feche sem bater.
Se ela é tão importante
Pra que fazê-la sofrer?

Êta friozinho danado!
Mas não vou me preocupar,
As festas do mês de junho
Fazem a gente esquentar!

Não coma assim tão depressa,
Mastigue bem devagar,
Não se afobe, pois o prato
Não vai sair do lugar!

Se alguém confia em você,
Dê valor a esse gesto.
Faça tudo direitinho,
Não abuse, seja honesto!

Não faça mal a ninguém,
Reflita muito primeiro.
Não se esqueça que o feitiço
Vira contra o feiticeiro!

Não se esqueça, apague a luz
Quando sair de onde está.
Aprenda a ser responsável,
Começando já!

Coma um pouco de legumes,
Não precisa ser demais,
Se você não come agora,
Depois então, nunca mais!

Não importa se o seu banho
É de chuveiro ou de bacia,
O importante é que você
Tome banho todo dia!

Não entre em conversa alheia,
Porque isso é muito feio,
Deixe a conversa dos outros,
Não ponha a colher no meio!

Marchando bem direitinho,
Seguindo sempre pra frente,
Você fica em boa forma,
Saudável, forte e valente!

Não fique triste se a chuva
Não deixou você sair,
Lembre das flores, das frutas,
E deixe a chuva cair!

Ei, cuidado com o gato,
Não maltrate tanto assim,
Pode ser que os sete fôlegos
Já estejam chegando ao fim!

Não se aborreça se hoje
Você não teve alegria,
Lembre-se que tudo passa,
E amanhã é outro dia!

Você aí, que nas férias
Passeou, brincou demais.
Agora estude bastante,
No fim do ano tem mais!

Pessoa bem educada
Nunca fala palavrão,
Nem que leve martelada
Na pontinha do dedão!

Natal, sensação de paz
Que tão bem envolve a gente!
Oh deus, como eu gostaria
Que a paz fosse permanente!

Aproveite bem as festas,
Coma pipoca, pinhão,
Batata doce, canjica,
Mas nunca solte balão!

O verão já foi embora,
Com chuva raio e trovão.
E o outono já chegou,
A mais suave estação!

Carnaval, festa em que o povo
Não olha raça nem cor.
Todos cantam, pulam, dançam
Sentindo o mesmo calor!

Não deixe que eles perguntem
Se tem baile no salão.
Tire o dedo do nariz
E lave bem a sua mão!

Batatinha quando nasce,
Esparrama pelo chão
Mamãezinha quando deita,
Põe a mão no coração!

Fonte:
Caderno de Leitura.

Visconde de Taunay (Pobre Menino!)

I

Em dia fresco e de chuva miúda, viajava eu na estrada de ferro Central.

Vinha de S. Paulo para o Rio de Janeiro em trem que parecia, contra inveterados hábitos, dever chegar á hora regulamentar.

A locomotiva como que se aprazia a devorar o espaço - na frase consagrada - por tempo tão grato que dispensava calor, poeira e grandes atrasos, e o jornadear, calculado por tabela oficial de paradas certas, inflexíveis, sempre as mesmas, era relativamente agradável.

Na estação do Cruzeiro, onde desde largos anos -ia dizendo séculos - imperam o porte dominados, a alentada bengala, a enérgica gesticulação e as barbas medievais e enchumaçadas do major Novaes, entrou uma família, regressando de Caxambú. Pai, mãe, bastante moços, esta ainda vistosa, bonita, um filho de 12 para 13 anos, visivelmente doente, duas criadas, uma branca, outra preta, e um molecote, vestido de pagem, muitas malinhas de mão, chales, cobertores, travesseiros, garrafas de leite e aguas minerais, embrulhos com restos, sem duvida, da matolotagem, comida á descida da serra. Tudo aquilo ás carreiras se arrumou nos bancos vazios ao lado e ao redor de mim.

Afinal, apitou a máquina e partiu o barulhento comboio.

Cansado de ler, esgotados os jornais de S. Paulo, parcos de novidades, e um tanto aborrecido com um romance de Charles Merouvel comprado no Garraux, que não me interessava, nem merecia interesse, pus-me a observar os recem-chegados.

No rosto de todos, a inquietação, concentrada no menino que, apenas sentado, pedira para se deitar.

_ Sinto-me tão fraco! Exclamou dolente. Não tenho mais forças!...

E com muita solicitude, criadas e molecote, auxiliando apressados os amos e obedecendo-lhes ás indicações, arranjaram os meios de dar melhor cômodo ao doentinho, cujos pés iam além do banco e se contraiam de cada vez que passavam os empregados do trem.

Sim, doente, muito doente até. E tão simpático, tão meigo, uma expressão de tanta doçura na fisionomia, nos olhos bem rasgados, pestanudos, negros, cintilantes, mais do que há vida normal, uns olhos de sofrimento e febre!.... Os lábios como que reviam sangue, de tão rubros; em compensação, as orelhas, muito grandes, desgraciosamente apartadas, da cabeça, umas orelhas desmarcadas, como as do malogrado Napoleão IV, mostravam-se brancas, diáfanas, num grão de deplorável e significativo descoramento.

Impressionaram-me logo de princípio os modos e as observações do menino.

A cada momento, sorria para os pais com imensa ternura, repassada de melancolia, ainda que nessa continua e comovedora carícia transparecesse a vontade de lhes incutir coragem e esperanças.

_ Apesar de tudo, disse todo superexcitado, estou mais valente do que homem. Assim mesmo não posso ainda estar olhando pela janela. Que pena! Tinha tanto que ver! Apenas ficar bom havemos de viajar a valer, não é? Levarei os meus cadernos de estudos e lucrarei muito. Não deve haver melhor modo de aprender do que viajar. O livro vai sempre aberto diante dos olhos... E eu, que fazia outra idéia da Mantiqueira... mais sombria, mais cheia de buracões e pedras. Tão pequenina, que ela é!...

E buscando outra posição, gemeu surdamente.

_ Sentes muita febre, boy? Perguntou a mãe com angustia.

_ Muita, não... já disse á mamãe, menos do que ontem; assim mesmo tenho cá dentro em fogo!... Mas que bonita a serra desde o túnel até ao Perequê!...

_ Talvez a frialdade da agua te tivesse feito mal, observou o pai; dois copos cheios...

_ Que mal, papai? Nunca bebi com tanto gosto, nunca! Eram uns copinhos... parecia que aquela agua devia curar-me afinal...

E como que em subdelirio:

_ Que bonita a descida! Como o céu estava puro! Eu quisera poder, como um passarinho, atirar-me de cabeça para baixo, voando, voando, por cima de todas aquelas montanhas e dobras e matarias! E o sol como brilhava, com um calor tão bom, de saude; não como calor de febre!

Lorena, não é, papai? Já em baixo, na várzea, uns pontinhos brancos. Quanto é boa a vida, a vida... a gente sentir-se valente, robusto... sem necessidade de tanto remédio amargo!

_ Vamos pôr-lhe o termômetro? Propôs a mãe para o marido com uma lágrima a cair-lhe da pálpebra.

Recalcitrou um pouco o pobrezinho.

_ Não, mamãe; sempre esta maçada! Ficar parado um tempão... e para que, afinal? Esta febre não quer me deixar... bem feliz se puder ir vivendo com ela... me acostumando aos poucos.

Resignou-se, porém, com gracioso amuo e quedou-se imovel e silencioso, com o bracinho esquerdo bem encostado ao peito.

E os olhos negros, pestanudos, cintilantes, giravam de um lado para outro, enquanto a ponta da lingua em continua vaivém, molhava os lábios ressequidos e gretados pelo ardor da terrível consumação.

Cruzaram-se os seus olhares com os meus e tiveram como que um sorriso de simpatia e cordialidade, com uma pontinha de vexame por estar assim doente, aniquilado, n'aquella inferioridade da moléstia triunfadora, invicta.

Embora um tanto casmurro na viagem e nada propenso a entabolar relações com adventícios companheiros de caminho, não me contive e, inclinando-me para o lado em que estava a mãe, perguntei-lhe, abaixando a voz:

_ Desde muito enfermo este interessante menino?

Respondeu-me e senhora com verdadeiro açodamento de quem acha uma válvula de expansão a constante e incompreensível sobressalto.

_Muito não... uns quarenta dias. Nem o senhor imagina como boy era forte e são... dormia como um chumbinho... bom apetite sempre, ávido de movimento... Boy não parava..., travesso como um cabritinho, muito bonzinho porém, sempre...

E boy isto e boy aquilo. Chamava-o assim desde criancinha. A madrinha, muito dada a leituras inglesas, lhe pusera essa apelido familiar...

_ De que não gosto nada, interrompeu o menino com engraçada seriedade. Eu me chamo Alberto.

Mas a mãe continuava:

_ Haviam feito, no mes anterior, um passeio fatal á chácara de uns amigos para os lados do Jardim Botânico, ele se agitara de mais com os camaradas numas correrias sem fim, se resfriara...

_Brincaram perto de uma vala aberta de pouco, explicou o pai...

_ A' noite, perturbação de digestão, e desde ai uma febre tenaz, rebelde, que nada pudera atalhar. Tomara já quinino... um despropósito!... um horror!... Depois continuas mudança, Gávea, Engenho Novo, Cascadura, Barbacena, Caxambu, tudo sem resultado...

_ Não há tal, contradisse o pequeno, já estive pior... E não  desanimemos. Olhem, façam tudo para não me deixarem morrer... Tenho tanto que aprender e estudar!... Que atraso este tempo todo em pura perda! Como o Cardoso e o Souza devem ter-se adiantado nas aulas!... Quando é que hei de pega-los agora?...

Não pensava noutra coisa, ia-me dizendo a mãe, enquanto as lágrimas, como que já por hábito, lhe corriam a fio. Tão boa criança, tão estimada de todos, estudioso... tanto estimulo! Uma ambição insaciável de saber... Muitas vezes se levantara ela da cama para apagar-lhe a vela e faze-lo deitar-se... Ardendo em febre, pedia os livros, queria seguir as lições, ouvir os professores... Nunca se vira coisa igual... Tirara já bonitos prêmios... livros muito dourados, com gravuras...

_ Já mamãe está falando de mim, interrompeu Alberto com ligeiro tom de repreensão. Este senhor há de desculpar... é de toda a mãe. Não sou melhor do que tantos outros...

E o seu rosto ensombreceu-se.

_ Pelo contrario, valem mais do que eu, muito mais...

_ Porque, meu amiguinho? Perguntei comovido.

_Oh! Eles têm saude; eu nunca mais hei de tê-la, ainda que escape desta... Tambem, de agora em diante saberei arredar-me sempre de valas abertas... Verdade é que me diverti tanto!

E recomeçava o subdelirio:

Cada qual nascera com a sua sorte. O Carlinhos, que caíra dentro do fosso e se molhara dos pés á cabeça não tivera nada... e ele!... Quanto se rira, que boas gargalhadas dera, vendo o companheiro atolado... Saíra sujo de lama, que era uma miséria... E a borboleta azul que estavam perseguindo fugira, fugira; subindo muito alto... E as asas tinham-se aberto largas, imensas, como um manto... tomando de ali o pouco o céu todo, de ponta a ponta... Tambem, que lembrança, querermos pegar o céu... o céu!

Ai, fazendo um esforço sobre si, perguntou impaciente:

_ Papai, não é tempo de tirar o termômetro? Está me incomodando. Além da febre e sêde... esta caceteação!...

Era tempo.

_Quantos graus? Indagou a mãe com dolorosa sofreguidão.

_ 38º e 8, respondeu o pai. Hoje, bem melhor d o que ontem, pois a esta hora Alberto tinha 39 e 2.

Via-se porém, que encobrira a verdade, pois destoavam as aquietadoras palavras com o ar de desalento que simultaneamente se lhe estampava no rosto. Ao guardar o termômetro no estojo de metal, fez-me imperceptível sinal.

Levantei-me e fingi que ia refrescar o rosto no cubículo ao lado, poeirento e sujo toilette do vagão.

Daí a pouco, chegava o homem.

_ 39 e 8, foram as suas primeiras palavras, pontuadas de terror.

E, acabrunhado, pôs-me a contar o caso, banal, diário, tão comum, mas sempre pungitivo da sua imensa desgraça. Esse menino, a alegria da sua vida, a vida da sua mulher, ricos eles, sem mais objetivo algum na existência. Agora, aquela febre invencivel, que zombara de tudo e lhes estava matando a adorada criança, debaixo dos olhos, dia por dia. Mudem de ares, era o incessante conselho dos médicos; o recurso único que lhes restava. E não faziam outra coisa; de um lado para outro, semanas inteiras. Para onde mais ir? E os terrores em lugares distantes, ermos, sem recursos, sem para quem apelar, quando vinham acessos de estupenda violência!...

Ao tomar então nos braços o filho, parecia que o tirava de um braseiro... queimava... Como poderia por mais tempo resistir organismo tão delicado?... Que cruel expiação era essa? E expiação porque? Afinal, nem ele, nem a mulher tinham culpas ou crimes a pagar? Porque os esmagava, tão dura, a mão de Deus? De que o acusava a justiça eterna? Confessava Ter sido sempre bastante orgulhoso dos haveres herdados e sobretudo daquele filho tão perfeito... Mas quem o fizera assim? Não fora a própria natureza? Casara-se por amor com uma moça pobre, rejeitando propostas de enlaces ricos. Nunca se arrependera, porém... haviam, até pouco, sido tão venturosos! Parecia que a felicidade era um crime. A vida devia ser triste, agoniada, passada em lágrimas e travada de amargos desgostos...

E ao dizer tudo isso, apesar de violento esforço, tinha as pálpebras molhadas. Via-se que aquele homem sofria cruelmente, sobretudo na altivez inata, ao ter que abrir o peito, por irresistível impulso, a um desconhecido que arvorava, na conturbação da sua dor, em amigo e amigo intimo.

Pouco se importara, a principio, com a tal febre, não pelas afirmações, sempre tranquilizadoras, dos muitos médicos consultados, a mestrança, portanto, graças a Deus, podia paga-los generosamente; mas afigurava-se-lhe impossível, fora de toda a ordem, lei e justiça, que a vida do seu Alberto pudesse perigar. Nem de leve lhe passara isso pela mente... nunca!...

Um menino destinado a tanta coisa! Havia de ser, por força, homem excepcional, conquistar as mais altas posições no Brasil, dando prestigio á enorme fortuna que lhe era destinada... Herdeiro universal do avô riquíssimo, com duas tias solteironas, de que era o ai-Jesus, ambas com muitas posses, quem podia contar com futuro mais brilhante?... Eles, os pais, tinham de renda mensal nada menos de cinco contos e gastavam-na com regra e prudência, fazendo ás vezes apertadas economias, para que o Alberto na sua carreira política jamais se preocupasse com o dinheiro, encontrando-o sempre á mão... Tudo isso, tudo seria debalde? Arredava do espirito á possibilidade de irremediável desastre...mas...

E a custo lhe saiam as palavras... mas a morte a nada atende... a nada! É inexorável!

Prorrompendo então em soluçoso pranto, agarrou-se a mim, convulsivamente.

_ Ah! meu filho, Alberto! Quanto é castigada a minha soberba! Está perdido... perdido!... E por quanto tempo, por quantos dias ainda o hei de possuir?

Sacudi-o com certa energia:

_ Silencio! Sua senhora pôde ouvi-lo! Olhe, lave o rosto; esconda os sinais da sua comoção.

Naturalmente exagerava o perigo...

O desconsolado pai abanou a cabeça; mas obedeceu-me opresso e alquebrado.

II

Quando voltamos aos nossos bancos, parecia Alberto presa de agitado sono. Pelo menos, tinha as pálpebras caídas, como que prostradas por vontade alheia ao organismo.

Via-se que febre intensa lhe trabalhava nas veias - faces escarlates, beiços rubros, estremecimentos repetidos por todo o corpo, fulgurantes. Relâmpagos de frio - assim nos dissera - lhe ziguezagueavam pela espinha dorsal, contraindo-lhe, de cada vez, os bracinhos magros, descarnados.

_ Agua, agua, murmurou a custo, depois de algum tempo e abrindo com sofreguidão os lábios secos, ávidos.

O molecote, Apresentou-lhe rápido um copinho de leite, cortado com agua mineral.

_ Mió , nhonhô? Perguntou baixinho com expressão de tocante e inquieto interesse , miósinho .

Com um gesto de dedo, respondeu não o pobre do menino.

Em estática e inexcedivel desolação, o contemplava a mãi, aconchegando os cobertores, quando um movimento mais impaciente e vivo do doente os atirava ao chão, naquelas cruelíssimas alternativas de algidez e de inaturavel calor.

_ Apenas chegarmos ao Rio- disse ela para o marido, que, sorumbatico, olhava pela janela a fugitiva paisagem - devemos logo embarcar, fazer uma longa viagem de mar, talvez até á Europa...

Entreabriu Alberto os olhos e, em tom de ligeira malícia, objetou:

_ Ora, a malvada embarcará conosco... Está dentro de mim; não me largará mais...

E o trem corria, corria! Entre Mendes e Rodeio, engolfou-se no túnel grande, acordando barulhos ensurdecedores, de fantásticos ferros a se chocarem, sopros gigantescos, estalos enormes e sufocadora fumaça.

_ Mamãe... mamãe! Chamou o menino com indivisível angustia.

E ela, inclinando-se toda sobre o malsinado, como que a defende-lo de misterioso inimigo, a chorar, o acalentava, qual criancinha de berço.

Ia então desembocando em ofuscadora claridade a locomotiva, triunfante e a apitar estridente e galhofeira.

_ Como é boa a luz, como é boa! Exclamou Alberto erguendo nervosamente a cabeça e com ar de verdadeira exultação. Pensei que ia morrer. A morte deve ser assim; um túnel, do qual a gente não sai mais nunca, comprido, comprido e tão escuro, Santo Deus!... E onde a boa mamãe para animar o filhinho... só, abandonado!...

Não sei por que, julguei dever intervir, como que desvendar consoladora clareira ás negras idéias daquele menino tão combalido e ameaçado.

_Não, Alberto, repliquei com involuntária gravidade e imposição, na morte há tambem muita luz, muita esperança, muito céu, o verdadeiro céu, sempre azul e grandioso... Na morte, mil alegrias e gozos esperam a alma, como a vida não as pôde dar...O túnel acaba logo... começa depois sem demora a realidade, eterna, cheia de encantos e esplendores... Ilimitada é a bondade do imenso Criador!

E estaquei, vexado do que acabara de expender na vivacidade espontânea daquela espécie de preleção tão descabida. Mostrara Alberto certa surpresa ao ouvir essas palavras, e, encarando-me muito sério, respondeu com resignado desalento.

_ Pode ser, pôde bem ser... mas eu não quero ainda morrer!...

E retraiu-se ao silencio. De vez em quando tiritava, encolhendo-se todo e a bater os queixos.

Buscava, porém, cauteloso, dominar manifestações que impressionassem mais os pais, atentos ao menor sintoma de agravamento, tão atentos quanto impotentes e vencidos; pobres, pobres pais!

Passada a estação de Belém, já noite escura, observou a mãi, para dizer qualquer coisa, que o trem não parava mais senão no Rio, no campo da Aclamação.

Contrariou-a Alberto com inesperada alacridade e, nos olhos subitamente acesos, pareceu Ter singular prazer em assentar incontestável verdade:

_ Não, senhora; pára ainda em Cascadura.

E como suscitasse duvida o que afirmava, eu mesmo opinando contra ele, mostrou bastante resolução e jovialidade em sustentar a sua asseveração.

_ Você não se lembra, José, que o trem de São Paulo costuma parar em Cascadura?
Perguntou para o molecote, levantando-se a meio.

_ Iô , nhonhô? Respondeu o pajenzinho todo assarapantado , iô , não... ué!

E tal a figura atrapalhada do negrinho pela obrigação de interpôr juízo no debate, que não pudemos, todos nós, deixar de sorrir.

_ Que tolinho! Exclamou Alberto.

E deu uma risadinha gostosa. Depois caiu novamente em comatoso abatimento. E, á luz vacilante, cheia de vaivéns, quasi sinistra das fumosas lâmpadas, o íamos observando, cada qual entregue a penosas meditações que se concentravam, em doloroso acordo, num ponto único.

Identificado, como se fosse velho amigo, ou, mais ainda, parente chegado dessa gente, que eu nem de longe conhecia, cujo nome ignorava e nem sequer procurava saber, sofria com eles numa contenção dura, cruciante, numa afinidade afetiva de maior intensidade e violência.

Que viagem interminável! Que hora aquela! Tudo tão sombrio em torno de nós! Cessara a chuva; mas as trevas úmidas, gotejantes, se condensavam carrancudas, caliginosas, como que palpáveis. E a cada estação eram apitos e assobios de perfurarem os ouvidos, ou então clamores angustiosos e um bater de sino melancólico, lúgubre, a dobrar finados.

_ Ainda por cima este agouro, murmurou uma das criadas num como muchôcho.

Em Cascadura parou, com efeito, o expresso , e um trem de subúrbios com ele cruzou num estrondear ensurdecedor de fragorosos gritos, uivos e sibilos, como que a anunciarem pavoroso e irremediável desastre, choques horríveis, encontro medonho.

_ Boy, boy , clamou a mãi simulando certo jubilo, você é que tinha razão! Olha...

_ Nhonhô, nhonhô, avisou por seu turno o molecote achegando-se e puxando de leve o doentinho por um braço, tá hi Cascadura.

Conservou-se Alberto inerte, indiferente, suspirou apenas com mais força.

_ O túnel... o túnel... Depois vem luz e céu... Bem me disse o homem...

_ Não será bom ver o termômetro? Propôs a mãi com respiração cortada, ofegante.

_ Não, mamãe, pelo amor de Deus, pôde ainda implorar o pequeno.

Já ai entráramos na zona dos subúrbios e os lampiões de gás, cada vez mais chegados, indicavam a proximidade da capital. As estações todas iluminadas, cheias de burburinho e animação populares. Numa delas tocava uma banda de música saltitante peça e o contraste desses alegres compassos mais me apertou o coração.

Revoltava-se, contudo, o meu egoísmo. Que necessidade essa de me associar a todo aquele drama intimo, que me trazia tão consternado enquanto me abalava o systema nervoso? Por que não mudava de lugar, não procurava outro qualquer vagão? Afinal, não era aquilo tão comesinho? Não assistira a tantos episódios de agonia e morte? Mais uma criança que desaparecia no  insondável... para dar razão ás estatísticas. Que importancia no desenrolar geral da existência? Gota d'agua pura e cristalina a cair no abismo... Não era, mesmo por isto, um afortunado da sorte? Saía da vida sem as misérias e desilusões que a vão assaltando... limpo de toda a poeira e lama...

Procurava distrair o espirito; mas ai se me prenderam as vistas insistentes, teimosas, hipnotizadas aos olhos então largamente abertos de Alberto, não mais desassossegados e em tresvario, mas num movimento lento de oscilação, como que destacados das órbitas a se mexerem um tanto ao acaso. De quando em quando parecia que se sumiam, caídos, sem mais apoio, dentro do crânio vazio, oco. E me diziam, assim mesmo, tanta coisa, me falavam de tantos mistérios, me interpelavam com tamanha ansiedade!...

Interrogavam súplices, meigos, quem, em boa hora, lhe dera do mundo de além idéia outra, que não de simples terror e aniquilamento para sempre, n'aquelle instante tão proximo da suprema partida.

Sim, deveras, lá, fora daqui, tambem sóis, tambem flores, esperanças, carinhos? Tambem o aconchego doce, protetor de entes bons, superiores, compassivos? Palavra?! Podia confiar?

Não o quisera enganar... A leva-lo d'alli a pouco, longe, longe, pela imensidade na desconhecida viagem, o regaço de algum anjo, faria vezes da estremecida mãi? Para que, porém, deixa-a? Para que despedaçar o coração daqueles fulminados pais? Amavam-no tanto, tanto!

Quem incutira, porém, a esse homem desconhecido o poder de saber quanto se passava da outra banda da vida? Talvez fosse um desses anjos destinados a carrega-lo, não era?... Ah! o disfarce mostrava-se bem claro! Por que, porém, não se deixava enternecer? Não via a pungente dor dos que o cercavam? Pedisse a Deus misericórdia... consentisse-lhe o viver... A ninguém, nunca fizera mal algum... Prometia tudo... não por ele, mas pelos pais... Passaria os anos a estudar, a dispensar o bem, o amor, a pagar a divida solene de interminável gratidão! Senta quieto, refletido, honesto, caridoso, a sacrificar-se pelos outros, por todos...amigo dos humildes, dos mendigos e desgraçados!... Mas tivesse pressa... do contrario não o acharia mais na terra... Bem sentia a morte...sim, a morte...

Passou mais um trem de subúrbios com assustador estampido:

Ouvisse, ouvisse!... Ai vinha ela... Que medo!... E já estava como que sozinho... via-se na cova estreita com um mundo de terra por cima do seu corpinho tão batido pela moléstia!

_ Não, não! Havia de Ter coragem... dominava o seu terror, embora bem justo, bem natural!...

Criança, saberia morrer como homem... Poderia estar chorando nos braços de pai e mãe, mas para que? Para tortura-los mais? Quem sabe se não haviam de morrer tambem ali! Viessem, viessem para cobrirem de flores o cantinho que eternamente o acolheria no cemitério, alvo, consolador com tantos cruzes e anjinho de mármore a rezarem.

Debalde buscava eu fugir à obsessão. Duas vezes me levantei; mas irresistivelmente voltava a conversar com aqueles olhos, cada vez mais resignados, penetrantes e de dolorosa eloquencia, cheios de surpresas, desconsolos e revoltas, com energia sopitados...

É preciso, é preciso; que fazer?

Bem quisera estar pensando, como menino, em coisas fúteis e risonhas e da sua idade, mas tinha por força que cuidar no que há de mais sério e triste, na morte... morte!

E já as pupilas negras, virando de vez em quando, se escondiam sob as arcadas orbiculares, buscando ver além, para dentro do pobre organismo combalido... E já se fixava, no bater lento das pálpebras pesadas, plúmbeas, impenetrável, o branco das escleróticas, como alvacento pano caído de cena finda, acabada...

E os bicos de gás iluminavam de fora, intermitentemente, o vagão, como que em fantasmagórica visita, dando repentina luz a todos os recantos ou deixando-o de súbito em completa escuridão...

Íamos chegando, e no rostinho de Alberto se desdobrava o palor dos ultimos instantes. Desbotava-se a rubidez das faces incendiadas e afilava-se, a mais e mais, o nariz correto, aquilino.

Já a luz elétrica chegava até nós.

E o trem estacou com o baque de definitiva parada, salteado pelos carregadores em grita:

"Malas, malas! Bagagens! N. 20, n. 53!"

_ Leve ao ombro o seu filho, disse eu para o pai, ele está...

E a palavra "expirando" ficou-me atravessada na garganta.

Parado, imovel, os vi partir, a todos. O pai, na frente, com o sagrado fardo, a mãe, trôpega, fora de si, no braço das criadas em soluços, atrás o molecote com cobertores e chales...

E no vagão vazio, como que continuei a fitar aqueles olhos ardentes, indagadores, tão suaves no ingente desespero, na duvida do problema eterno...

Poor boy, alas!

Fonte:
Visconde de Taunay. Ao Entardecer (contos). SP: Cia. Melhoramentos de São Paulo.

J. G. de Araújo Jorge (Trevos de Quatro Versos) Parte 2, final

"REALEJO..."

Coração – pobre realejo –
com canções velhas e novas...
Tudo o que sinto, e o que vejo,
vais tocando.. . em minhas trovas…

"QUEM CALCULA ?"

Ao ler uma bela trova
depois que pronta ficou,
- quem calcula a dura prova
por que o poeta passou ?

"O ETERNO TRIÂNGULO... "

Aos meus ciúmes doentios
Tu me disseste ainda nua:
- De olhos abertos sou dele!
De olhos fechados, sou tua!

Ciúme tolo, policial,
Tão pretensioso, irritante,
Se eras casada... e afinal
Eu era apenas... amante...

E eis a suprema ironia
Ao meu coração ferido:
- tu foste trair-me um dia,
Mas, com quem? - com teu marido...

(Ó Amor, como desandas!)
Ontem, ciúmes... mil espreitas...
Hoje, nem sei onde andas,
Nem em que cama te deitas…

"SER MÃE..."

Quando todos te condenem
quando ninguém te escutar,
ela te escuta e perdoa,
pois ser mãe – é perdoar!

Quando todos te abandonem
e ninguém te queira ver,
ela te segue e procura
pois ser mãe – é compreender!

Quando todos te negarem
um pão, um beijo, um olhar,
ela te ampara e acarinha
pois ser mãe – sempre é se dar!

"DIÁLOGO IMPOSSÍVEL"

Chama-me tu, por favor,
Se estamos juntos, e a sós...
- não ponhas este Senhor
tão importuno... entre nós...

Tu tão moça, eu tão vivido...
Tantos anos de permeio.
- Bem poderias ter sido
o grande amor que não veio...

Tu, moça, bela, tão calma...
Eu, inquieto, a alma ferida...
- O diabo leve a minha alma!
- Quero o amor de Margarida!

"PORTUGAL"

Portugal, que, num segundo
da História, - do "era uma vez"
fizeste do mar - um mundo!
E o mundo - um mar português !

Portugal de D. Diniz
que em seus pinhais, em Leiria,
plantava naus que, feliz
o Infante Henrique, colhia!

Araste o Mar – tuas velas
abriram caminhos novos...
Teus grãos – eram caravelas!
E as colheitas – eram povos!

"VOCÊ... E O NATAL..."

Festa na terra e no céu...
Só eu só... tão triste assim...
- Quem dera Papai Noel
trouxesse Você pra mim!

Quem dera Papai Noel
descendo pelos espaços
me desse um pouco de céu
pondo Você em meus braços...

Neste dia belo e doce
de festa, - sentimental,
- quem dera que Você fosse
meu presente de Natal !

"FILOSOFIA..."

Você quer mesmo saber
como a vida se levar ?
Pois é... primeiro viver...
e depois... filosofar...

Vou pisando folhas mortas
sem amanhã... Sigo a esmo...
Fecham-se todas as portas...
Sou o fantasma de mim mesmo...

Disse Jesus certo dia
com bondade e com saber
- há mais alegria em dar,
muito mais - que em receber !

Não tinha paz nem descanso...
O amor... a vida.... – Voragem !
Hoje, a saudade é um remanso
a refletir a folhagem...

Diz que é rico... Pode ser...
Mas pode ser que não seja...
Ser rico é apenas poder
fazer o que se deseja...

Nessa eterna e dura lida
renasço a cada momento
lavando as dores da vida
no rio do esquecimento...

Onde o sonhar de outra idade?
A fé que tive, e perdi?
Hoje chego a ter saudade
daquele... que já morri...

Tu queres mais, sempre mais...
Sê comedido, prudente...
Até o bem quando é demais
acaba enjoando a gente...

Livre da dor, do desgosto,
mais feliz o homem seria
se assim como lava o rosto
lavasse a alma todo o dia.

Paro, as vezes, num momento
feliz, que se vai embora,
e enquanto o vivo, a perde-lo,
sinto saudades... de agora.

- "Crê na Vida"- eis o conselho
da esperança ante a desgraça,
se a face do fria do espelho
de calor ainda se embaça...

Pobre alma triste a cativa !
E há quanta gente como eu
a pensar que ainda está viva
sem saber que já morreu

"UVAS..."

Teus seios - frutos maduros.
cachos de uva, de um pomar
guardado por altos muros,
que apenas vejo ao passar...

Alcançá-los, ninguém ousa,
penso, em angústia perene,
- a me sentir a raposa
da estória de La Fontaine…

"SORRIA..."

Esperava tanta luta
e tão pouco foi preciso:
ao invés da força bruta
ele empregou... um sorriso...

Eis a arte de viver
num conselho dos mais sábios:
às vezes, para vencer
basta um sorriso nos lábios...

Nem tanta coisa é preciso
para evitar-se um revés...
- Tão pouco... basta um sorriso
e eis todo mundo a teus pés…

"MÃOS..."

 Como aves desarvoradas
Depois de roteiros vãos
Tuas mãos vieram, cansadas,
Se aninhar em minhas mãos...

Há momentos... Acontece...
Puro, o amor pode ficar,
Como duas mãos em prece,
Esquecidas, a rezar...

Quando maior é o carinho
Às vezes, tenho a impressão
De que conversam baixinho...
Tua mão... em minha mão...
Fonte:
J.G. de Araujo Jorge . Trevo de Quatro Versos". 1. ed. Livraria São José, 1964.

António Botto (A Nuvem)

Certa noite, muitas nuvens pequeninas, dispersas no espaço, juntaram-se e formaram uma grande nuvem. Na manhã seguinte, os campónios exclamara, contentes:

- Até que enfim, vamos ter chuva!

Passaram dois dias; outros dois dias passaram, e a nuvem, agora maior, nem uma gota deitava.

- Que nuvem será esta?, diziam eles, que parece prometernos a bênção da chuva e não nos dá essa alegria? O dever de uma nuvem é desfazer-se em água, diziam os mais impacientes, a caminho da casa de um sábio.

Chegaram, bateram à porta e o sábio veio atendê-los.

- Tu que sabes tanto e que lês tantos livros, diz-nos o que devemos fazer para que o céu nos dê água.

- Não posso atendê-los, respondeu o sábio. Estou a ver se encontro a dedução de um alto pensamento e não posso, por agora, distrair-me com insignificâncias...

Fechou a porta, pôs os óculos e voltou a debruçar-se sobre os velhos alfarrábios.

Os campónios, desiludidos, diziam uns para os outros:

- Este sábio é como a nuvem; é como a nuvem, o maroto! Porque ter muito é o mesmo que não ter nada, se esse muito não servir para alguma coisa na vida.

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. RJ: Livraria Bertrand.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – I – O Irmão De Pinóquio

— Coitada de vovó! — disse um dia Narizinho. — De tanto contar histórias ficou que nem bagaço de caju; a gente espreme, espreme e não sai mais nem um pingo.

Era a pura verdade aquilo — tão verdade que a boa senhora teve de escrever a um livreiro de São Paulo, pedindo que lhe mandasse quanto livro fosse aparecendo. O livreiro assim fez. Mandou um e depois outro e depois outro e por fim mandou o Pinóquio.

— Viva! — exclamou Pedrinho quando o correio entregou o pacote.

— Vou lê-lo para mim só, debaixo da jabuticabeira.

— Alto lá! — interveio dona Benta. — Quem vai ler o Pinóquio para que todos ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos por dia, de modo que o livro dure e nosso prazer se prolongue. A sabedoria da vida é essa.

— Que pena! — murmurou o menino fazendo bico. — Não fosse a tal sabedoria da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje mesmo eu dava conta do livro e ficava sabendo toda a história do Pinóquio. Mas não! Temos de ir na toada de carro de boi em dia de sol quente — nhen, nhen, nhen...

Sua zanga, porém, não durou muito, e assim que chegou a noite e tia Nastácia acendeu o lampião e gritou o “É hora!”, ninguém se mostrava mais assanhado que ele.

— Leia da sua moda, vovó! — pediu Narizinho. — A moda de dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, “lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira” lia “varanda”. E sempre que dava com um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele”, “comeu ele” — e ficava o dobro mais interessante. Como naquele dia os personagens eram da Itália, dona Benta começou a arremedar a voz de um italiano galinheiro que às vezes aparecia pelo sítio em procura de frangos; e para o Pinóquio inventou uma vozinha de taquara rachada que era direitinho como o boneco devia falar. Os primeiros capítulos lidos não deram para fazer uma idéia da história. Mesmo assim Pedrinho declarou que se simpatizava com o herói.

— Pois eu não! — contraveio Narizinho. — Esse freguês não me está com cara de ser boa bisca. E você, Emília, que acha?

A boneca estava pensativa, de mãozinha no queixo.

— Eu acho — respondeu ela — que achei uma grande coisa.

— Diga!

— Não posso. Não é coisa de ir dizendo assim sem mais nem menos. Só direi se Pedrinho me der aquele cavalinho de pau sem rabo que está na gaveta dele.

Emília sempre fora interesseira, mas depois que encasquetou a idéia de tornar-se a boneca mais rica do mundo (rica de brinquedos), virou uma perfeita cigana, dessas que não fazem nada de graça.

— Pode ser que dê — disse o menino. — Se a idéia for aproveitável...

— Jura que dá?

— Não duvide de mim. Você bem sabe que sou menino de palavra.

— Pois minha idéia é esta: Se Pinóquio foi feito de um pedaço de pau vivente, bem pode ser que ainda haja mais pau dessa qualidade no mundo.

— E que tenho eu com isso?

— Tem que, se houver mais pau dessa qualidade, você poderá arranjar um pedaço e fazer um irmão do Pinóquio!

Todos se entreolharam, admirados da esperteza da boneca. Pedrinho chegou a entusiasmar-se com a idéia.

— É mesmo! — exclamou arregalando os olhos. — A idéia é tão boa que só admiro de ninguém ter pensado nisso antes. Pode ir lá ao meu quarto, Emília, e tirar o cavalinho da gaveta.
–––––––
Continua... O Irmão de Pinóquio – II – O pau vivente

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Trova 216 - Francisco Pessoa (CE)


Caderno de Leitura (Poesias para Crianças 1)

OU ISTO OU AQUILO
CECÍLIA MEIRELES


Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

AS BORBOLETAS
VINÍCIUS DE MORAES

Brancas
azuis
amarelas
e pretas
brincam
na luz
as belas borboletas.

Borboletas brancas
são alegres e francas.

Borboletas azuis
gostam muito de luz.

As amarelinhas
são tão bonitinhas!

E as pretas, então...
oh, que escuridão!

LEILÃO DE JARDIM
CECÍLIA MEIRELES


Quem me compra um jardim com flores?
Borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a era,
uma estátua da primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?
(este é o meu leilão!)

A MINHOCA
ELIAS JOSÉ


A minhoca sai da toca
e se estica e se enrosca.

O pescador quer pegar
a pobre da minhoca.

A galinha quer comer
a saborosa minhoca.

O moleque quer espremer
pra separar terra e minhoca.

A minhoca, que não é tonta,
logo se estica e se enrosca.

A terra enterra a minhoca
e ninguém viu a sua toca.

Lá de sua toca, toda torta,
torce de rir a levada minhoca.

TOLAS PERGUNTAS
ELIAS JOSÉ


Onde estará o rato
que se escondeu no meu sapato?

Onde estará o meu sapato
que escondi perto do gato?

Onde estará o gato
que miava chamando o pato?

Onde estará o pato
que nadava feito um peixe?

Onde estará o peixe
que nadou no fundo do rio?

Onde estará o rio
que caminhava para o mar?

O rio virou mar
que deixou encantados
o rato, o gato, o pato e o peixe.

CRIANÇAS LINDAS
RUTH ROCHA


São duas crianças lindas
mas são muito diferentes!
Uma é toda desdentada,
a outra é cheia de dentes...
Uma anda descabelada,
a outra é cheia de pentes!
Uma delas usa óculos,
e a outra só usa lentes.
Uma gosta de gelados,
a outra gosta de quentes.
Uma tem cabelos longos,
a outra só corta rentes.
Não queiras que sejam iguais,
aliás, nem mesmo tentes!
São duas crianças lindas,
mas são muito diferentes!

VALSA DAS PULGAS
RUTH ROCHA


As pulgas dançando
no meio da rua
dão pulos e pulos
sob a luz da lua.

No baile das pulgas
o passo é assim:
Três passos pra um lado
e entra o cupim.

Cupim dá três passos
pra lá e pra cá
e a pulga contente
toma guaraná.

Quem toca a valsinha
é o sabiá
e as pulgas pulando
pra lá e pra cá.

O GATO
MARINA COLASANTI

No alto do muro
Pulando no escuro
Miando no mato
Entrando em apuro
É o gato, seguro.

De antigo passado
E jeito futuro
Movimento puro
Ar sofisticado
É o gato, de fato.

Só pode ser gato
Esse bicho exato
Acrobata nato
Que só cai de quatro.

GALINHA D’ANGOLA
ROSEANA MURRAY


A galinha d’angola acaricia
o dia com a sua cantoria:
Tô fraco’ tô fraco’ tô fraco’
O menino tira o milho da sacola
e dá de comer à galinha d’angola
Come tudo a angolinha,
mas continua a ladainha:
Tô fraco’ tô fraco’ tô fraco’
Na beira do lago suspiro o sapo:
Que galinha mais fominha!

BEIJA-FLOR
ROSEANA MURRAY


Beija-flor pequenininho
que beija a flor com carinho
me dá um pouco de amor,
que hoje estou tão sozinho...

Beija-flor pequenininho,
é certo que não sou flor,
mas eu quero um beijinho
que hoje estou tão sozinho...

BARCA BELA
ALMEIDA GARRET


Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador!

Pescador da barca bela,
Ainda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!

A BAILARINA
CECÍLIA MEIRELES


Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé
não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.
Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.
Roda, roda, roda com os bracinhos no ar,
e não fica tonta nem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Mas depois esquece todas as danças
e também quer dormir
como as outras crianças.

TANTA TINTA
CECÍLIA MEIRELES


Ah! Menina tonta,
toda suja de tinta
mal o sol desponta!

(Sentou-se na ponte,
muito desatenta...
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
com tanta tinta?...)

A ponte aponta
e se desaponta.
A tontinha tenta
limpar a tinta,
ponto por ponto
e pinta por pinta.

Ah! Menina tonta!
Não viu a tinta da ponte!

A FOCA
VINÍCIUS DE MORAES


Quer ver a foca
ficar feliz
é por uma bola
no seu nariz.

Quer ver a foca
bater palminha
é dar a ela
uma sardinha.

Quer ver a foca
fazer uma briga
é espetar ela
bem na barriga.
Fonte:
Caderno de Leitura: textos e poesias.

Hiroko Hatada Nishiyama (As Borboletas)

Nesta sala vazia, relembro os momentos alegres e descontraídos das nossas risadas e piadas, nem parece que faz um ano que estou sozinha.

Aproxima-se um novo ano, e é impossível não fazer uma retrospectiva para avaliar nossos sonhos e realizações.

Quando soube que você estava esperando nenê, depois de cinco anos de tentativas, chorei de alegria! Você voltaria dia 30, e não voltou…

No mesmo dia, soube que o nosso amigo Alemão, tinha quebrado a perna, jogando futebol! Ele sempre foi fraquinho…

Não sei explicar como me senti, duas surpresas no mesmo dia, não é brincadeira.
Agora estou aqui sozinha. Parece que o desejo seu e do Alemão foram atendidos, pois não é que ele ganhou na loteria? vai passear com a esposa na Alemanha.

Neste ano, choveu demais, fez calor demais.

E as borboletas acabaram de invadir minha sala novamente. Algumas pequenas, outras maiores mas todas azuis com asas transparentes, iridescentes!

Mas este ano, as campanhas anti-fumo e anti-álcool continuaram, sem muito impacto, tudo muito devagar.

Uma borboleta pousou agora na minha cadeira, linda.

No dia da Padroeira Nossa Senhora da Aparecida, em outubro, aconteceu a maior demonstração de fé, está todo mundo precisando do auxílio lá do Alto. As orações diárias não estão atendidas. Assim como meu pedido!

Mas a Semana da Criança, foi um sucesso. Até na mais longínqua cidadezinha, houve uma grande distribuição de doces e brinquedos e muito, muito carinho!
Uma borboleta acabou de pousar no meu ombro, maravilhosa. Daqui a pouco irá embora, como meu sonho!

Pois então, o meu pedido não foi atendido: não encontrei ninguém para morar no meu coração. Continua vazio à espera de um príncipe que me leve num cavalo branco para um castelo encantado, como nos contos de fada!

Mas numa análise mundial, este ano foi definitivamente positivo: os nascimentos superaram os óbitos. Isso é muito bom: quem sabe já está entre nós o gênio que salvará o mundo do caos ecológico, a cada dia mais e mais evidente.
As borboletas estão cada vez mais pousando na minha mesa, na cadeira e até no meu lápis. Daqui a pouco desaparecerão na fresta do papel de parede que adorna minha sala!

Estou ouvindo passos de alguém aproximando-se, a fim de me levar a um passeio pelo jardim maravilhoso que circunda esta casa!

Mas, no Ano que se aproxima, tenho certeza que será um Ano de Renovação Espiritual, trazendo o Princípio da Paz, da Amizade e do Amor Universal.

Estes não são apenas votos e desejos, mas uma Oração para que o Ano Entrante seja pleno de Luz nos corações de todos os viventes!

Adeus Ano Velho!

Feliz Ano Novo!

Fonte:
Texto enviado por Carlos Leite Ribeiro

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Ano Novo n. 438)

Uma Trova Nacional

Que se alegre este meu povo
sempre lutador e audaz;
que o meu BRASIL no ano novo
alcance o progresso, em paz!
–LARISSA LORETTI/RJ–

Uma Trova Potiguar

Mensageiro do evangelho
o Ano Novo, eu suponho
seja o próprio ano velho
vestido de um novo sonho!
–HELIODORO MORAIS/RN–

Uma Trova de Ademar


Ao Trovador meu irmão,
mando um abraço apertado;
pra vocês, de coração...
Um Ano Novo “Arretado!”
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Que o Ano Novo nos dê,
à maneira que puder,
o Bem que eu quero a você
e o Bem que você me quer!
–ALCY RIBEIRO S. MAIOR/MG–

Simplesmente Poesia

Mais um Ano...
–DELCY CANALLES/RS–


Mais um ano que se vai,
carregando os sonhos meus,
e eu fico, só esperança,
buscando o sonho sonhado,
nessa busca que me cansa,
querendo encontrar-te, enfim,
pra vivermos , lado a lado,
eu e tu, tu junto a mim!
Mas ano, após ano, passa,
e este sonho, qual fumaça,
se desfaz na amplidão...
E eu continuo sozinha,
a teimar com a sorte minha,
a  viver  em  solidão!

Estrofe do Dia

Quero desejar ao povo
de todas as regiões,
que tenham nesse Ano Novo
muitas realizações;
e que os nossos corações
se superlotem de paz,
pra não ter guerra jamais
peça a Deus que nos ajude,
com paz, amor e saúde
que o resto... Vamos atrás.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Crença
 –DIVENEI BOSELI/SP–


No mar revolto a lua jorra o brilho
e a luz que tremeluz em cada barco
ajuda clarear o estreito trilho
que leva a multidão no espaço parco.

Vindos da praia, onde se fez rastilho,
fumaça e estrondos; descrevendo um arco,
uma após outra, em confuso estribilho,
profusas cores festejando o marco.

Eu levo antúrios, vou descalça e crente,
só com amigos, sem nenhum parente,
pular as bravas ondas dessas águas.

O mar se agita mais, a lua espreita,
e a voz da Janaína, desta feita,
promete um ano só de amor. Sem mágoas!
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Lima Barreto (Os Enterros de Inhaúma)

Certamente há de ser impressão particular minha não encontrar no cemitério municipal de Inhaúma aquele ar de recolhimento, de resignada tristeza, de imponderável poesia do Além, que encontro nos outros. Acho-o feio, sem compunção com um ar momo de repartição pública; mas se o cemitério me parece assim, e não me interessa, os enterros que lá vão ter, todos eles, aguçam sempre a minha atenção quando os vejo passar, pobres ou não, a pé ou em coche-automóvel.

A pobreza da maioria dos habitantes dos subúrbios ainda mantém neles esse costume rural de levar a pé, carregados a braços, os mortos queridos.

É um sacrifício que redunda num penhor de amizade em uma homenagem das mais sinceras e piedosas que um vivo pode prestar a um morto.

Vejo-os passar e calculo que os condutores daquele viajante para tão longínquas paragens, já andaram alguns quilômetros e vão carregar o amigo morto, ainda durante cerca de uma légua. Em geral assisto a passagem desses cortejos fúnebres na rua José Bonifácio canto da Estrada Real. Pela manhã gosto de ler os jornais num botequim que há por lá. Vejo os órgãos, quando as manhãs estão límpidas, tintos com a sua tinta especial de um profundo azul-ferrete e vejo uma velha casa de fazenda que se ergue bem próximo, no alto de uma meia laranja, passam carros de bois, tropas de mulas com sacas de carvão- nas cangalhas, carros de bananas, pequenas manadas de bois, cujo campeiro cavalga atrás sempre com o pé direito embaralhado em panos.

Em certos instantes, suspendo mais demoradamente a leitura do jornal, e espreguiço o olhar por sobre o macio tapete verde do capinzal intérmino que se estende na minha frente.

Sonhos de vida roceira me vêm; suposições do que aquilo havia sido, ponho-me a fazer. Índios, canaviais, escravos, troncos, reis, rainhas, imperadores - tudo isso me acode à vista daquelas coisas mudas que em nada falam do passado.

De repente, tilinta um elétrico, buzina um- automóvel chega um caminhão carregado de caixas de garrafas de cerveja; então, todo o bucolismo do local se desfaz, a emoção das priscas eras em que os coches de Dom João VI transitavam por ali, esvai-se e ponho-me a ouvir o retinir de ferro malhado, uma fábrica que se constrói bem perto.

Vem porém o enterro de uma criança; e volto a sonhar.

São moças que carregam o caixão minúsculo; mas assim mesmo, pesa. Percebo-o bem, no esforço que fazem.

Vestem-se de branco e calçam sapatos de salto alto. Sopesando o esquife, pisando o mau calçamento da rua, é com dificuldade que cumprem a sua piedosa missão. E eu me lembro que ainda têm de andar tanto! Contudo, elas vão ficar livres de um suplício; é o do calçamento da rua do Senador José Bonifácio. É que vão entrar na Estrada Real; e, naquele trecho, a prefeitura só tem feito amontoar pedregulhos, mas tem deixado a vetusta via pública no estado de nudez virginal em que nasceu. Isto há anos que se verifica.

Logo que as portadoras do defunto pisam o barro unido do velho trilho, adivinho que elas sentem um grande alívio dos pés à cabeça. As fisionomias denunciam. Atrás, seguem outras moças que as auxiliarão bem depressa, na sua tocante missão de levar um mortal à sua última morada neste mundo; e, logo após, graves cavalheiros de preto, com o chapéu na mão, carregando palmas de flores naturais, algumas com aspecto silvestre, e baratas e humildes coroas artificiais fecham o cortejo.

Este calçamento da rua Senador José Bonifácio, que deve datar de uns cinqüenta anos é feito de pedacinhos de seixos mal ajustados e está cheio de depressões e elevações imprevistas. É mau para os defuntos; e até já fez um ressuscitar.

Conto-lhes. O enterro era feito em coche puxado por muares. Vinha das bandas do Engenho Novo, e tudo corria bem. O carro mortuário ia na frente, ao trote igual das bestas. Acompanhavam-no seis ou oito caleças, ou meias caleças, com os amigos do defunto. Na altura da estação de Todos os Santos, o cortejo deixa a rua Arquias Cordeiro e toma perpendicularmente, à direita, a de José Bonifácio. Coche e caleças põem-se logo a jogar como navios em alto-mar tempestuoso. Tudo dança dentro deles. O cocheiro do carro fúnebre mal se equilibra na boléia alta. Oscila da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, que nem um mastro de galera debaixo de tempestade braba. Subitamente, antes de chegar aos "Dois Irmãos", o coche cai num caldeirão, pende violentamente para um lado; o cocheiro é cuspido ao solo, as correias que prendem o caixão ao carro, partem-se, escorregando a jeito e vindo espatifar-se de encontro às pedras; e - oh! terrível surpresa! do interior do esquife, surge de pé - lépido, vivo, vivinho, o defunto que ia sendo levado ao cemitério a enterrar. Quando ele atinou e coordenou os fatos não pôde conter a sua indignação e soltou uma maldição: "Desgraçada municipalidade de minha terra que deixas este calçamento em tão mal estado! Eu que ia afinal descansar, devido ao teu relaxamento volto ao mundo, para ouvir as queixas da minha mulher por causa da carestia da vida, de que não tenho culpa alguma; e sofrer as impertinências do meu chefe Selrão, por causa das suas hemorróidas, pelas quais não me cabe responsabilidade qualquer! Ah! Prefeitura de uma figa, se tivesses uma só cabeça havias de ver as forças das minhas munhecas! Eu te esganava, maldita, que me trazes de novo à vida!"

A este fato, eu não assisti, nem ao menos morava naquelas paragens, quando aconteceu; mas pessoas dignas de toda a confiança me garantem a autenticidade dele. Porém, um outro muito interessante aconteceu com um enterro quando eu já morava por elas, e dele tive notícias frescas, logo após o sucedido, por pessoas que nele tomaram parte.

Tinha morrido o Felisberto Catarino, operário, lustrador e empalhador numa oficina de móveis de Cascadura. Ele morava no Engenho de Dentro, em casa própria, com razoável quintal, onde havia, além de alguns pés de laranjeiras, uma umbrosa mangueira, debaixo da qual, aos domingos, reunia colegas e amigos para bebericar e jogar a bisca.

Catarino gozava de muita estima, tanto na oficina como na vizinhança.

Como era de esperar, o seu enterro foi muito concorrido e feito a pé, com um denso acompanhamento. De onde ele morava, até ao cemitério de Inhaúma, era um bom pedaço; mas os seus amigos a nada quiseram atender: Resolveram levá-lo mesmo a pé. Lá fora, e no trajeto, por tudo que era botequim e taverna por que passavam, bebiam o seu trago. Quando o caminho se tornou mais deserto até os condutores do esquife deixavam-no na borda da estrada e iam à taverna "desalterar". Numa das últimas etapas do itinerário, os que carregavam, resolveram de mútuo acordo deixar o pesado fardo para os outros e encaminharam-se sub-repticiamente para a porta do cemitério. Tanto estes como os demais - é de toda a conveniência dizer - já estavam bem transtornados pelo álcool. Outro grupo concordou fazer o mesmo que tinham feito os carregadores dos despojos mortais de Catarino; um outro, idem; e, assim, todo o acompanhamento dividido em grupos, tomou o rumo do portão do campo-santo, deixando o caixão fúnebre com o cadáver de Catarino dentro abandonado à margem da estrada.

Na porta do cemitério, cada um esperava ver chegar o esquife pelas mãos de outros que não as deles; mas nada de chegar. Um, mais audaz, após algum tempo de espera, dirigindo-se a todos os companheiros, disse bem alto:

- Querem ver que perdemos o defunto?

- Como? perguntaram os outros, a uma voz.

- Ele não aprece e estamos todos aqui, refletiu o da iniciativa.

- É verdade, fez outro.

Alguém então aventou:

- Vamos procurá-lo. Não seria melhor?

E todos voltaram sobre os seus passos, para procurar aquela agulha em palheiro...

Tristes enterros de Inhaúma! Não fossem essas tintas pinturescas e pitorescas de que vos revestis de quando em quando de quanta reflexão acabrunhadora não havíeis de sugerir aos que vos vêem passar; e como não convenceríeis também a eles que a maior dor desta vida não é morrer...

Fonte:
Lima Barreto. Contos completos. Companhia das Letras.

António Botto (Egoísmo)

Chove. A velha está no seu esconderijo. Mas não está só; rodeiam-na suas três filhas que querem sair mesmo a chover. E a velha raposa, de um lado para o outro, trabalhadora, inquieta, vigiando as maldades das filhas, acabou por se cansar e sentou-se molengona a abrir a boca e a fechar os olhos.

     - Mãe, conta-nos uma história; mas não uma história moral; está a chover, e quando há chuva a moral não sai muito limpa...

     - Disparates, respondeu a mãe. Uma história sem moral é como uma capoeira sem galinhas. Vou, pois, contar uma história, mas é preciso que as meninas estejam com atenção:
Era uma vez uma nossa parenta que possuia a mania de colecionar só objetos brilhantes: pedaços de cristal, metais, botões, jóias, esmaltes, e em poucos meses a casa dela era um verdadeiro museu variado e valioso. E quando alguém lhe passava ao pé da porta, só de pálpebras cerradas poderia resistir a tanto brilho ali concentrado. A colecionadora mal comia. Alimentava-se a olhar para os diamantes brancos e azuis que eram os que mais distinguia na sua paixão pelos brilhos. Mas uma noite de Inverno choveu tanto, tanto, tanto que o mundo quase se desfazia alagado em tanta chuva. Uma noite, não enganei-me: foram três dias e três noites - fechada, sozinha, sem alimentos, e sem poder consegui-los...

     - Morreu de fome, já se vê, disse a filha mais novinha.

     - Não, respondeu a raposa. Pôs-se a gritar e ouviram-na.

Ao cabo de algum trabalho, lá conseguiram chegar ao famoso esconderijo e socorreram-na como foi possível: dois frangos por sete lascas de brilhantes, e outras trocas assim. Mas salvou-se, e era o importante.

     - É perto daqui, minha mãe?, perguntou a do meio.

     - Ainda que esteja perto, ainda que lhe toquemos com o dedo, tudo quanto não é nosso está na lua, entendeste?

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. RJ: Livraria Bertrand.

J. G. de Araújo Jorge (Trevos de Quatro Versos) 1

SOBRE A TROVA

Tudo é trova: a flor, a onda,
A nuvem que passa ao léu
E a lua, trova redonda
Que a noite canta no céu!

Ah, trova com quem me enleio...
- Tens um gingado qualquer
Que lembra esse bamboleio
Do corpo de uma mulher...

A todos prende e cativa,
E não se rende a qualquer...
- É pequena, mas esquiva...
... Não fosse a trova, mulher...

TROVAS

Sejam felizes ou não
Cantando instantes diversos,
As trovas do coração,
são trevos de quatro versos.

Rico eu sou, mesmo sem ouro
E da riqueza, dou provas,
- eis aqui o meu tesouro:
Minha sacola de trovas.

Tão simples, as trovas são
Cantigas com que a alma expande
Tudo o que há no coração
Do poeta - um menino Grande.

Meu terço feito de trovas
Que em versos fico a compor,
Com ele rezo, e dou provas
Do meu culto ao teu amor!

EU FAÇO VERSOS

 Eu faço versos assim
Como quem respira ou canta,
A poesia nasce em mim
Como do chão nasce a planta...

E como que por encanto
Minha dor se vai embora
Pois estas trovas que eu canto
São feitas... como quem chora...

De mãos dadas com as lembranças
Com o mar, com a noite, com a lua
Faço versos, como as crianças
Fazem ciranda na rua…

TUAS MÃOS...

Ternura de cinco pontas
Viva, estranha, inquieta flor...
Tuas mãos são duas contas
Do meu rosário de amor.

Delicados diademas
Trabalhadas obras-primas...
...Tuas mão sãos dois poemas
Rimando, em vermelhas rimas...

Ah, mãos tão frágeis, parecem
Pedir arrimo e guarida...
E entretanto, se quisessem
Guiariam minha vida…

GLÓRIA ?

Minha maior alegria
minha glória humilde e nua
é ver a minha poesia
fazer ciranda na rua...

 Por certo que me comovo,
nem glória existe maior :
ouvir um poeta o seu povo
dizer seus versos de cor !

A POESIA

Poesia, flor de mistério
que brota do coração
e abre as pétalas de etéreo
no céu da imaginação.

Vivo a vida cada dia,
vida comum, sem engodos,
por isto a minha poesia
reflete a vida de todos

A poesia que desejo
tiro de mim como aquela
cantiga do realejo
se alguém roda a manivela…

SOLIDÃO

Por certo a pior solidão
É aquela que a gente sente
Sem ninguém no coração...
No meio de muita gente...

Praias longe, em solidão
Fora de todas as rotas,
Tal como o meu coração
Só como o sonho... das gaivotas…

A VIDA

Gota d'água transparente
que brilha, cresce...e que cai!
Assim a vida da gente
que num instante se vai!

A Vida, - mistério vão
sombra agora, depois luz,
- estranho traço de união
ligando um berço... a uma cuz!

A Vida - uma onda que avança
e volta, vai-vem do mar...
Quando vai, quanta esperança!
Quanta amargura, ao voltar!

A Vida - visão fugaz,
praia chã, mar que alteia,
onda que faz e desfaz
os seus cabelos de areia...

A Vida - ansiosa escalada
sobre a paisagem do mundo
Tanto esforço para nada
se há sempre abismo no fundo!

Às vezes penso que a vida
que há tanta gente a querer
só existe, - indefinida -
pra gente poder morrer...

Ó pobre vida suicida!
Teu destino é uma ironia
se o que chamamos de vida
é um morrer de cada dia!

Numa amizade perdida,
num amor que se desgraça,
a morte desconta a vida
a cada dia que passa!

Há uma ironia, contida
nas contigências da sorte:
- quanto mais se vive a vida
mais se avança para a morte.

Vive a vida bem vivida
e ao mais, esquece e revela,
que a gente leva da vida
a vida que a gente leva…
Fonte:
J.G. de Araujo Jorge . Trevos de Quatro Versos". 1. ed. Livraria São José, 1964

Carlos de Oliveira (Uma Abelha na Chuva)

Análise da obra

 Obra de imaginação eficaz e rigorosa, o romance Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira observa o mundo real através de tenso trabalho verbal iluminador do grande símbolo de tragédia e das referências simbólicas defluentes que alguma crítica encontra nas palavras tão autorais como são “paisagem” e “povoamento”.

 Da sintaxe simbólica da tragédia com a luta gandarense (paisagem e povoamento, afinal), segue o livro o seu trajeto tenso de símbolos, como o afirmam os pares opositivos fogo / água, mel / cinzas, mel / tabaco, abelha / água, mel / chuva, fonte / rio ou mar / poço, com variações de significação de acordo com as representações e os momentos textuais.

 O signo trágico assenta na utilização articulada de palavras-símbolo, assumindo cada uma as metamorfoses decorrentes da narrativa. A tragédia resulta da interação dos elementos que transformam o mel em fel, tudo arrastando para a corrosão e para as cinzas. Em paisagem cinérea, armadilhado o povoamento pelo destino trágico, a morte de Clara é decidida pela paixão e pela impossibilidade de ser fecunda num espaço dominado pela secura e pelo incontato. O mel cede ao fel e à "moeda de ouro", com a perfeição do círculo e o valor da perenidade, é também Jacinto, assim designado por onomástica significativa que convoca a perfeição, a beleza e a preciosidade. A morte anunciava-se desde há muito: o pisar das folhas caídas e a devoração desse “oiro” pelos vermes diziam já a morte de Jacinto, corpo jovem que foi bode expiatório de uma comunidade improdutiva e viciosa.

 Afinal, o tempo dos senhores, numa narratividade cíclica feita da vacuidade dos serões e das crises conjugais de Álvaro e Maria dos Prazeres, esmaga o tempo dos dominados que progride para o aniquilamento. E nem assim cessa a esperança, a luta.

 O código temporal do romance caracteriza-se pela linearidade da história e pelo ordenamento. A par, a conflitualidade e a frustração relacional propiciam o recurso à analepse (volta ao passado), que afirma através da imagem da água o primado da ancestralidade face a um tempo doloroso do presente de que conhecemos cerca de quatro dias. A constância dos fluxos aquáticos ao longo da obra, afinal, símbolo claro do fluir do tempo, traz consigo a imagem da irreversibilidade.

 Portanto, o código temporal e o repertório simbólico de Uma abelha na chuva contribuem decisivamente para a unidade de uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX.

 Este romance representa a assimilação sincrética da maioria dos temas versados antes, sem se desviar do humanitarismo socialista orientador de todas as obras de ficção do autor e do neo-realismo português em geral.

 Como nos três romances anteriores, Uma abelha na chuva localiza-se na região da Gândara, nos arredores de Coimbra.

 O romance tem como foco as trágicas conseqüências psico-sociais resultantes da união forçada entre a doente aristocracia da província e a burguesia rural.

 Temos uma obra depurada de excessivo localismo, o que Carlos de Oliveira não conseguiu em nenhum outro romance.

 A união de Maria e Silvestre representa o choque de duas classes integradas no contexto sócio-econômico da Gândara. Porém, a problemática interna destas personagens e as repercursões dessa problemática nas outras personagens da obra transcendem o pequeno mundo gandarês, sem por isso deixar de refleti-lo.

 A opressão do pobre pelo rico, uma constante do neo-realismo português, ainda está presente neste livro. No entanto, agora é tratada com incomum maestria mediante o recurso a um apto simbolismo que se patenteia no título e percorre toda a obra, não só lhe conferindo um caráter transcendente, mas, como no caso do símbolo da chuva, contribuindo para a sua estrutura orgânica.

 O romance quer demonstrar que não existe significativa mudança social que não produza sofrimento; e o pobre, devido à sua condição de subserviente e a certa ironia do destino, acaba sempre por ser a verdadeira vítima dos ódios e tragédias dos poderosos: um bode expiatório no verdadeiro sentido da frase. Nota-se que o motivo do sacrifício de vítimas inocentes percorre todo o romance. Mas até mesmo os próprios opressores são vitimados por desígnios de outrem ou por circunstâncias para além do seu próprio controle, embora a simpatia do narrador poucas vezes esteja com eles. É o caso de Maria dos Prazeres e até certo ponto de Álvaro. No fundo, e aqui se começa antever o caráter universalista do romance, não se trata de "uma", mas sim de um microcosmo de "abelhas" humanas na chuva.

 Apesar de seus momentos de tragédia, Uma abelha na chuva deixa transparecer um tom de zombaria, principalmente na crítica à sociedade provinciana retratada no romance: o burguês abastado, proprietário de uma casa em que não tem onde dormir porque a mulher trancou a porta do quarto; dois assassinos trapalhões que têm medo de trovoadas e carregam para longe o corpo da vítima no meio de uma tempestade, quando poderiam tê-lo escondido em qualquer lugar; o aprendiz que, no momento de maior tensão, abandona o mestre para correr atrás de um burro; uma beata encarregada de vestir os anjos e a outra que lhe fornece asas, túnicas, sandálias e resplendores.

Simbologia

A abelha - o casal Álvaro / D. Maria dos Prazeres são identificados como “abelhas cegas obcecadas", tal como o são os seus amigos íntimos. Deste modo, encontra-se explicitamente posto em causa, pela via da simbolização, o equilíbrio de um estrato da sociedade (o dominante no microcosmos social deste romance) corrompido por força de uma aliança de interesses inconciliáveis, o que explica a amarga conclusão do Dr. Neto, de que, tendo ajudado, "anos e anos aquela obra de pintar e repintar, a colméia dos Silvestres" não atendera "a que lá dentro o enxame apodrecia". Portanto o símbolo da abelha serve, numa primeira utilização, para salientar, pela negativa, o que, de degradado e imperfeito existe num determinado nível social.

O mel - evoca a idéia de perfeição e de doçura e também o da transformação. Ao nível de Álvaro e D. Maria dos Prazeres "todos eles fabricam fel", é junto do par Jacinto / Clara que o mel (isto é, a doçura, a perfeição apoiada no tempo) é suscetível de ser encontrado: tanto a gravidez de Clara como os projetos de ambos e até o envolvimento espacial em que estes últimos são considerados apontam para um futuro de otimismo (ou seja, de doçura idêntica a do mel) que o decorrer do tempo social e histórico propiciará.

A água e a chuva - esta evoca globalmente o sentido da agressividade (relacionada com o tema da opressão). Agressividade, porque com a sua presença gera o desconforto das personagens e acentua os seus conflitos. A água é também fonte e rio. A fonte, enquanto imagem da água que jorra e corre da terra, evoca o passado recôndito que flui da memória de certas personagens. A fonte é imagem próxima da infância e quando se transforma em rio passa a evocar, com toda a nitidez, o escoar de um tempo que quanto mais afastado da infância mais conspurcado se apresenta. Mas quando está em causa o desfecho das relações Jacinto / Clara, a água é também mar e poço, cenários particulares, de morte que a ambos atinge. Quando Jacinto é lançado às águas do mar, a personagem acaba por penetrar no elemento que ao seu comportamento habitual convém: no mar, símbolo da dinâmica da vida, do seu movimento e constantes mutações, exatamente na linha do pensamento de Jacinto, enquanto personagem norteada pelo desejo de transformar o mundo pela medida dos seus projetos. E, para além de Clara, Jacinto fecunda sobretudo o movimento de revolta popular que estilhaça os vidros do casal marcado pelo estigma da infertilidade. A morte de Jacinto, encerrando um ciclo de vida individual abre (fecunda) um ciclo de vida coletivamente assumida.

Álvaro Silvestre / D. Maria dos Prazeres - passado; presente perdido; classe social ameaçada; morte do grupo improdutivo; destruição; opressão; vingança; solidão.

Jacinto / Clara - presente destruído; futuro alcançado; vitória do grupo produtivo; comunhão; semente promissora.

 Aparentemente, o romance encerra com uma mensagem de pessimismo traduzida na eliminação daquela (Clara) que com o símbolo da abelha mais explicitamente se identifica; porque, com efeito, é ela que integra os sentidos da produtividade laboriosa e da fertilidade.

 Os episódios finais do romance e a sua leitura simbólica clarificam o sentido do pessimismo. Abre-se a possibilidade de uma inversão de juízos, quando se conclui que entre a aparência (a colmeia repintada, isto é, a organização e compromissos sociais que sustentam, os Silvestres) e a realidade (o enxame apodrecido, ou seja, a existência social e psicológica degradada) a relação é de oposição. Por outro lado, aquilo que à primeira vista inculca destruição e morte pode finalmente não o significar:

 "A abelha foi apanhada pela chuva..." A destruição da abelha não implica necessariamente a do enxame. Existe uma relação simbólica evidente entre abelha / Clara, atingida pela força destruidora da água, mas a morte de uma abelha isoladamente não só não compromete a sobrevivência e coesão social do enxame que a perdeu, como sobretudo faz dessa abelha semente de um processo de transformação da vida que evitará a existência de futuras abelhas na chuva.

 Clara = abelha.

 Uma abelha morre = ficam as outras.

 Clara morre = ficam as outras pessoas.

 A chuva = a classe opressora, a força da opressão.

 Colmeia apodrecida = colmeia morta = classe social a desaparecer.

 Colmeia verde = cidade verde = esperança na vitória = a consciência do povo desperta preparada para a luta.

As Abelhas - simbolizam as "trabalhadoras disciplinadas e incansáveis". Asseguram a continuidade da espécie ao trabalharem para a colmeia fazendo o mel. A colméia remete para o lar, para a casa que simboliza a concha, o bem-estar a proteção.

 Em oposição às abelhas temos o casal Álvaro Silvestre e Maria dos Prazeres (esta referência é feita por Dr. Neto), que diz "todos eles fabricam fel; abelhas cegas, obcecadas". As abelhas cegas remetem para o único objetivo deste casal que são os interesses econômicos que os levam "a roubar ao balcão, nas feiras, nas soldadas dos trabalhadores e na legítima de meu irmão", confissão. A abelha obcecada serve para vincar o que de negativo e imperfeito existe porque uma abelha cega não é útil para a colméia. Este casal também não é útil à sociedade porque para além de todos estes defeitos não asseguram a perenidade, a continuidade do nome e da riqueza pois é um casal infértil. Ainda, através de Dr. Neto, este diz que ajudou "anos e anos, aquela obra de pintar e repintar, a colméia dos Silvestres, sem atender a que lá dentro o enxame apodrecia".

 A colméia remete para o lar, para a casa que simboliza a concha, o bem-estar a proteção que são sensações que não existem na casa dos Silvestres porque se vive num ambiente degradado, corrompido perverso, sendo que este último se afigura na personagem de Álvaro quando veio avisar o mestre Antônio. O ambiente da casa dos Silvestres é tão viciado que não pode produzir nada de bom. Por tudo isto são o oposto das abelhas pois não há equilíbrio na sua casa e só produzem fel.

Comparação as abelhas - Clara que juntamente com Jacinto forma um casal equilibrado onde reina a harmonia, tal como na colméia. Jacinto tem o nome da flor da qual Clara se alimenta para produzir mel, o filho. O zangão é Jacinto que após a cópula com a abelha, morre. No último capítulo, a referência é a de que a abelha foi apanhada por uma chuva forte, da qual não consegue sair ou abrigar-se pelo que tentou debater-se, mas acabou por morrer. Tudo estava contra ela, por isso não conseguiu defender, era uma luta injusta.

 Dr. Neto também tem todas as qualidades da abelha, além de ser ele próprio apicultor.

A água - A chuva é o sinônimo de agressividade no ambiente social e está presente nos conflitos pessoais e nos momentos mais importantes da ação. Nos momentos de grande desconforto, de grande tensão, a chuva está patente, aumenta a sua densidade consoante o conflito está acentuado.

 A fonte quando a água jorra e corre da terra simboliza a evocação de memórias do passado: quando Álvaro Silvestre recorda a sua infância como refúgio; um tempo de bem-estar por oposição ao desconforto do presente. Para Maria dos Prazeres a fonte é também a imagem do passado, mas depois torna-se num rio.

 O mar é o espaço para onde o corpo de jacinto é atirado. Simboliza a dinâmica da vida, pelos seus movimentos de ondas, e Jacinto acaba por ter um fim que se enquadra na dinâmica que era a sua vida, repleta de projetos por concretizar.

 Do poço se recolhe a água que é vida, sendo por isso um espaço de origem da vida. No entanto, Clara atira-se ao poço, acabando por provocar-lhe a morte, como se fosse castigada pela ousadia de projetar uma outra vida sem o apoio do seu pai.

Os Nomes

Álvaro Silvestre: pelo fato de ser curto revela que não tem linhagem. Álvaro vem de "alvo" que significa branco, puro, honesto e virtuoso. Silvestre significa que é próprio da selva, que é selvagem, bravio, agreste e inculto.

Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho... Silvestre: o seu nome extenso representa a sua linhagem. Prazeres só mentais.

Tempo

 A cronologia da ação concentra-se em cerca de três dias. Este fato, porém, não deve induzir-nos ao erro, já que, se materialmente o tempo da ação é reduzido, em dois outros aspectos ele apresenta-se mais dilatado. Em termos históricos, na medida em que a analepse projeta muitas vezes as ações do passado sobre as do presente. Em termos psicológicos, porque a focalização interna sujeita os eventos às vivências das personagens cuja óptica comanda a representação narrativa. Este tempo revela-se, pois, muito mais extenso devido às inúmeras evocações do passado.

1º Período: entre as cinco horas de uma quinta-feira do mês de Outubro (cap. I) e a manhã do dia seguinte (cap. XVI).

2° Período: duração de 24 horas do dia de sexta-feira (cap. XVI - XXVI)

3° Período: o dia de sábado até o amanhecer de domingo (cap. XXVII - XXXV)

 A cena dialogada instaura um tempo discursivo isocrônico e surge quando se apresentam ações ligadas aos momentos de confronto entre as personagens, às reflexões que originam monólogos, aos serões e à preparação e consumação do assassínio de Jacinto. A cena dialogada põe a nu, muitas vezes, a incomunicabilidade entre as personagens.

 O tempo psicológico diz respeito ao modo como as personagens do romance vivem o passar do tempo. As analepses traduzem uma vivência interior por parte das personagens que refugiando-se no passado, fogem a um presente insuportável.

Espaço

 Geograficamente, a ação é localizada com alguma precisão. As localidades referidas no romance, como Montouro, S. Caetano e Fonterrada localiza-se na região de Cantanhede, na zona litoral do distrito de Coimbra.

 O espaço interior é o quarto do casal Álvaro Silvestre / D. Maria dos Prazeres e o palheiro onde se passam os amores de Jacinto e Clara.

 A tese do romance pode sintetizar-se assim: não existe uma significativa mudança social que não produza sofrimento; e o pobre, devido à sua condição de subserviente, acaba por ser a verdadeira vítima dos ódios e tragédias dos poderosos.

 O espaço psicológico manifesta-se através do monólogo interior de algumas personagens, revelando-se, assim, os conflitos vividos pelos protagonistas na sua consciência.

Narração

 A representação da história é conduzida por um narrador onisciente, capaz de penetrar no universo psicológico, social e cultural que determina o comportamento das personagens, e principalmente pela utilização da focalização interna, isto é, concedendo um papel dominante à perspectiva subjetiva e parcial que as personagens têm da própria história.

 A focalização interna (ou seja, a representação da história através do ponto de vista de uma ou mais personagens), aquela que o narrador utiliza de modo mais insistente; a focalização onisciente, como processo de vigência de uma visão (a do narrador) transcendente à história, é concedida uma função meramente acessória; a focalização externa, na condição de modo de apresentação do exterior de personagens e eventos, apenas esporadicamente surge atualizada como signo da representação.

 Quando abre a narrativa, é em focalização externa que é apresentada a personagem em ação: "Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois de árdua jornada...". Para além desta referência outra surge no capítulo XIII que serve para apresentar uma outra personagem: "...saltou da boleia para receber as ordens da dona da charrete, uma senhora pálida, de meia idade, agasalhada num xaile de lã e com manta de viagem enrolada nas pernas: — Perguntem no café se o viram."

 Além destas duas ocorrências, pode dizer-se que não mais se repete o recurso à focalização externa, como processo representativo autônomo.

Ação

 A ação principal está intimamente ligada à ação secundária, sendo esta emocional e evidentemente trágica, ao passo que aquela é física, surdamente dramática.

 A ação principal apresenta as relações impossíveis e altamente conflituosas de D. Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre; a ação secundária é constituída pelo amor de Jacinto e Clara, violentamente truncado. Por esta razão, é na ação secundária que surpreendemos uma intriga com uma série de acontecimentos encadeados de forma casual e com um desfecho sem retorno: diremos, então, que estamos perante uma ação fechada.

 Quanto à ação principal, é aberta, porquanto, retratando retalhos de vida, não nos aponta solução nenhuma para as personagens.

 Neste aspecto, Uma abelha na chuva integra-se perfeitamente na tradição geral do romance neo-realista português, refletindo cenários sociais e históricos que não apresentam uma ação completa, mas «fatias» de vidas acidentadas.

 Na ação principal marcada por momentos arrastados, se encontra de forma bem evidente uma caracterização social e psicológica; com efeito, se nos detivermos nos capítulos VII - X e XXXII - XXXIV, verificaremos que estes dois serões se seguem, respectivamente, ao denso episódio na redação do jornal e subseqüente viagem e à morte do Jacinto e subseqüente manifestação popular. E verificaremos que é durante esses serões que há um esboço de convívio social onde se discutem acontecimentos e aspectos "lá de fora", assim como se revelam características das personagens secundárias. Mesmo assim, essa espécie de conforto momentâneo "a quebreira do lume, o rumor insistente da chuva pela noite, a comodidade das cadeiras de braços bem almofadas" não são suficientes para amenizar sequer as tensões que dominam os donos da casa. Mesmo no desenrolar desses serões saltam fagulhas de revolta ou de fúria, reflexo do sofrimento contido no peito dos protagonistas, como quando Álvaro Silvestre reflete sobre a morte:

...os outros regressam a casa e eu para ali fico, sufocado, sozinho, a morrer outra vez, porque via tudo isso como se as coisas se passassem e ele com consciência, como se ouvisse o rumor da noite em que o velavam o latim do padre Abel no cemitério, as pazadas de terra a cair no caixão, o fervilhar irreparável dos vermes.
 Atirou-se ao brandy para não gritar.

 Ou quando se dá de conta, finalmente, que na sua vida chegou a um beco sem saída:

Caminhou para a porta, oscilando tanto que parecia aluir a cada passo, e desatou aos gritos, sem ninguém saber se pedia ou protestava: Onde é que há brandy nesta casa? Onde é que há brandy nesta casa?

 É a estes momentos de prolongamento da ação, em que tudo parece parado no tempo, que chamamos catálises, onde há ao mesmo tempo uma caracterização social e psicológica.

 Pelo contrário, há todo um conjunto de seqüências onde impera o movimento, isto é, a dinâmica dos acontecimentos. Observando atentamente esta extensa parte de Uma abelha na Chuva, podemos verificar que elas constituem unidades estruturais bem equilibradas, uma vez que a sua extensão é relativamente idêntica; vejamos então que as três etapas que determinam a constituição da ação secundária se encontram distribuídas de forma harmoniosa, como se pode ver nos capítulos XVII - XX (correspondem aos indícios), nos capítulos XXI - XVI (correspondem as conseqüências).

 Na ação desta obra podemos também analisar o sentido genérico que as seqüências manifestam, sendo este sentido o da violência, revelado, contudo, de forma variadas. É assim que, em várias seqüências, essa violência se revela eminentemente física: a "agressão" de que são objeto os quadros da família Alva por parte de Álvaro Silvestre (Cap. XIII), tendo uma dimensão simbólica, não deixa de pertencer a mesma linha que o assassinato de Jacinto ou o suicídio de Clara, assumindo sempre essa violência o sinal do deflagrar de irreprimíveis conflitos de raiz psicológica e social. Por outro lado, há outras sequências que se integram também, embora de forma indireta, em situações violentas, como é o caso da seqüência inicial em que a aversão contida nos sentimentos dos protagonistas "estala" no estranho diálogo entre ambos e o diretor do jornal.

O jornalista aproveitou para mudar de conversa:
 — Forte aguaceiro. Estala.
 Álvaro Silvestre anuiu logo:
 — Boa bátega, sim senhor.
 Só ela preferiu continuar a bater no mesmo prego:
 — A boa bátega que te podia ter apanhado no caminho. Já pensaste nisso?
 Fechou os olhos de puro desalento: cala-te, Maria, cala-te.

 Podemos compreender finalmente que a violência de sentimentos entre o casal é transferida para a chuvarada que se abate sobre Corgos, do mesmo modo que, no capítulo VI, quando D. Maria dos Prazeres chicoteia a égua, esta não é o seu verdadeiro destinatário, mas o marido, que cochila a seu lado. Essa mesma violência revolve-se no interior dos protagonistas, sem se revelar exteriormente, quando Silvestre surpreende o diálogo entre Jacinto e Clara ou quando é atormentado pelo sentimento de culpa que resulta da denúncia feita ao pai da rapariga.

Personagens

 Certas personagens de Uma abelha na chuva parecem ter sido inspiradas por pequenos fidalgos, padres, sacristães, beatas, lavradores, barbeiros, camponeses, criados, cegos, em que não é difícil reconhecer traços de Maria dos Prazeres, Padre Abel, do sacristão Antunes, do lavrador Álvaro Silvestre, do cocheiro Jacinto e de mestre António, o santeiro cego, entre outros.

 Na tensa atmosfera do romance, predominam as relações de opressão que muitas vezes se manifestam através dos "expedientes, espertezas, graças, truculências" de que o ser humano lança mão a fim de garantir seu domínio sobre os demais: "A alma humana posta a nu e meio mundo a enganar o outro meio", como observou o autor, Carlos de Oliveira.

Personagens da ação principal

D. Maria dos Prazeres

 Álvaro Silvestre

 Dr. Neto

 D. Violante


 Nesta ação destaca-se as relações de antagonismos entre D. Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre, enquadradas pelos dois pares de personagens que com estas coexistem: Dr. Neto e D. Violante.

 O Dr. Neto é apresentado pelo narrador, caracterizando-o de modo direto, isto é, dando sobre ele informações mesmo antes de ele aparecer (cap. IX). Ficamos sabendo então que o Dr. Neto "amava a realidade e só daí é que partia para as abstrações"; era um observador materialista, até para explicar a sua atitude virtualmente amorosa em relação à D. Cláudia, de que afirmava: "Sou um heredo-sifilítico; a D. Cláudia, uma constituição linfática, fragilíssima; pois bem, casamo-nos, e depois que filhos deitaremos ao mundo?".

 Mas o Dr. Neto não se fixava apenas no concreto. De acordo com a tradicional e universal leitura simbólica dos povos, o médico via no mel o simbolismo da perfeição suprema, o símbolo daquilo que a vida pode produzir de belo e saboroso. Mas ele não é só o apaixonado pelas abelhas e o seu trabalho, é também médico "atascado até ao pescoço na vida de Montouro", o agricultor que "sabia bem o que custava uma espiga de milho, aos homens e à terra". Esta é, incontestavelmente, uma descrição de personagem na linha neo-realista: o narrador que tudo sabe informa sobre a dureza do trabalho da terra, do trabalho da própria terra no seu processo de germinação e o trabalho intenso das abelhas na fabricação do mel. Embora no romance não se fale das relações de trabalho numa análise um pouco mais profunda, essas relações são nítidas quando colocamos a obra no tempo da sua produção (1953), fazendo-a assim desempenhar uma função social que não deixou, na época, de despertar a censura política.

 Quanto a D. Claudia, pouco há a dizer que o narrador não tenha dito já:

Pálida e medrosa... a D. Cláudia temia a natureza, a chuva, o sol, o mar, o vento, ignorava as flores... E a própria vida humana, as relações sociais, os pequenos equívocos da convivência, as conversas mais acaloradas assustavam-na.

 Pode-se dizer que ela pedia desculpa à vida por estar viva e tudo nela era fantasia e irrealidade. Por isso, "ia protelando o casamento e o Dr. Neto concordava". Também as relações entre o padre Abel e D. Violante se traduziam em termos de incompatibilidade não evidente. No aspecto físico, como se fosse um indício de algo que não pretende ser conhecido, estes "dois irmãos" não têm qualquer semelhança, como nos diz o narrador no capítulo VII.

A criada abriu a porta que dava para o pátio por uma escadaria lateral de pedra e a D. Violante e o padre Abel entraram. Parecidos como um ovo com um aspecto. Sempre os via juntos, ela maciça e baixa, o padre esgrouviado, D. Maria dos Prazeres tinha um sorriso de dúvida: realmente... ninguém dirá que são irmãos.

 Para além da diferença física, também temos que levar em conta o murmurar da sociedade em que estas personagens se inserem e que sobre elas exerce a suspeita de que vivem em como amantes:

As beatas de Montouro garantiam... e embora lhe tivessem perdoado a ele há muito, reservavam ainda a D. Violante um ódio velho... chamavam-lhe a irmã do padre, num sublinhar irônico do parentesco que deixava em aberto as suposições mais escabrosas.

 Vemos então que é real o antagonismo interpretado pelos dois pares que envolvem Álvaro Silvestre e D. Maria dos Prazeres, embora ele se expresse apenas em termos estáticos, uma vez que surge formulado quase sempre de modo descritivo, revelado apenas como enquadramento dos conflitos vividos pelos protagonistas, a estas personagens não pode caber obviamente uma função tão atuante como a que é própria do casal Álvaro Silvestre e D. Maria dos Prazeres:

...hei-de aturar-te até ao fim da vida, até que Deus me leve deste inferno que é a tua casa. Tenho nojo de ti, nojo, entendeste bem?

 "Até ao fim da vida" é uma eternidade, a eternidade do tempo quando a vida transporta essa marca indelével de inferno que é o casamento para uma católica como Maria dos Prazeres, efetivamente, a casa de Álvaro é o inferno, ao contrário de uma verdadeira casa, tranqüilizadora, protetora, local de refúgio, reconfortante, nada que se assemelhe à descrição do inferno.

 O espaço onde vivem estes dois seres não tem qualquer semelhança com uma casa. Sabemos bem por meio da analepse que surge logo no início, numa gradação sugestiva, o processo interior em que ela recorda a entrada no inferno da casa de Álvaro Silvestre:

Primeiro. A fonte brotou ténuamente, muito ao longe, na infância, depois, a agua mansa turvou-se ao longo do caminho, do tempo, com o lixo que lhe forma atirando das margens, agora é cachoante, escura, desesperada.

 Nesse recordar, os bens da família Alva foram "levados pela voragem". Para a personagem contam somente os fatos que a afetam; o que subjaz ou simplesmente ultrapassa os fatos não lhe interessa. É aí que o narrador assume um papel atuante, tentando veicular idéias, à maneira neo-realista. Por isso, ao longo do tempo, a transformação realizou-se: uma classe deu lugar a outra e a sua compatibilização é impossível. A luta, no casal Silvestre, mantém-se, a nível pessoal e social: é a luta entre a aristocracia e a burguesia.

 Para Maria dos Prazeres, o próprio calor físico é importante; mas também não tem mais esse calor físico e afetivo. Tem agora o quarto frio, o do inferno, da casa de Álvaro, pois que:

A casa, toda ela, gelava... No escritório do marido, na sala de jantar, fora possível conseguir um mínimo de aconchego.. No quarto não...

 Dr. Neto, o médico "conhecia bem o inferno que era a vida dos Silvestres. É visível esse inferno logo no primeiro serão, em que Álvaro Silvestre afundou-se nos almofadões da cadeira de verga, ao pé do lume. Tinha o brandy à mão" (cap. VIII).

 À medida que o tempo do serão vai passando, Álvaro bebe cada vez mais sob o olhar de desprezo da mulher "até ao brusco despejar do brandy na garganta". Com a chegada o Dr. Neto (cap. X), revela-se outro aspecto do caráter de Álvaro, pela pena onisciente do narrador: "a morte é perder as terras, a loja, o dinheiro, para sempre; e apodrecer, devorado pelos vermes... atirou-se ao brandy para não gritar." E até ao fim do romance a aguardente está presente como o próprio Silvestre, tornando-o cada vez mais alheio ao que o rodeia, mas, ao mesmo tempo, mortificado por todos os fantasmas que o habitam e o destroem. Por isso, é "uma concha de silêncio" (cap. III) perante a mulher, quando ela o apanha no escritório do jornal, prestes a acusá-la do roubo dos pinhais de Leopoldino; mas é também um obcecado quando (cap. XI), terminado o serão, "poisou o castiçal na secretária e... preparava-se para os dois problemas que tinha a resolver": a construção de um jazigo que o impedisse de ficar solitário na terra e a desculpa que teria que dar ao irmão pela venda fraudulenta dos pinhais.

 No capítulo XXX, esse silêncio faz-se voz quando Maria dos Prazeres chega perto dele com um frasco de amoníaco ao nariz para o tirar do torpor em que o álcool o deixou. Irritaram-se, insultaram-se, tentando Álvaro subestimar a origem aristocrática da mulher. "Quem é que está bêbado, sua fidalga de trampa?... Muito Conde, muita léria, mas há vinte anos que me comes as sopas", enquanto esta o reduz à categoria de cocheiro merecedor de levar chicotadas: "Os cocheiros conhecem-se bem pelas palavras."

 Há momentos em que um relâmpago de luz desperta em Álvaro, quando perante o insulto da mulher, ele pensa: "Como é possível... Ela está a insultar-me, mas eu amo-a, apesar de tudo, amo-a tanto... que..." E, quanto a Maria, há momentos em que uns laivos de remorso parecem lamentar que tudo seja desta forma: "Nunca lhe estendi a mão para um pouco de compreensão recíproca" (cap. VIII).

 Afinal, que ódio terrível os une que não deixou vir á superfície um sentimento que poderia nunca os ter separado?

No consultório quando o último doente saiu, o Dr. Neto encostou-se á janela e enrolou o cigarro. Também ele tinha ajudado, anos e anos, aquela obra de pintar, repintar, a colmeia dos Silvestres, sem atender a que lá dentro o enxame apodrecia.

Personagens da ação secundária

Clara

 Jacinto


 Clara, filha de mestre Antônio, é uma jovem saudável, bonita, apaixonada por Jacinto, o cocheiro dos Silvestre, aquele que D. Maria dos Prazeres vê como "uma moeda de oiro, rebrilhando à luz do sol".

 É num dos encontros entre ambos que se ficamos sabendo que a jovem espera um filho do namorado, que, no entanto, parece sinceramente apaixonado e quer casar com ela. Esse casamento também não é fácil realizar-se uma vez que o pai da moça vê na filha a sua única possibilidade de sair da miséria em que tem vivido, casando-a, (vendendo-a), a um lavrador abastado que a "compre" pela sua beleza.

 No cap. XV ficamos sabendo que Álvaro Silvestre ouve o diálogo entre os dois jovens e que, subitamente, um raio fere de morte os seus ouvidos: o nome de sua mulher é pronunciado com ironia e resquícios de ciúme, respectivamente por Jacinto, que refere o olhar cobiçoso com que a patroa o olha, e por Clara, que vê na "outra" uma potencial inimiga...

 Mas o jovem par, desconhecedor do que se passa fora do palheiro, continua suas promessas de amor, aprontando uma fuga que impeça as ameaças do velho pai e que, ao mesmo tempo, revela a força que o amor e otimismo pode imprimir em quem o sente.

 Os dois jovens representam, pois, a coragem de lutar por aquilo em que acreditam e a confiança total na sua capacidade de realização.

António

 Marcelo


 O capítulo XVIII é uma espécie de separação entre as personagens. É neste capítulo que Álvaro Silvestre, envolto no nevoeiro dos seus remorsos, dos seus fantasmas, das suas fraquezas, parece recobrar ainda forças para tentar libertar-se delas através de um sentimento finamente centralizado em alguém que está à sua mercê: a vingança.

 Não é a primeira vez que o assalta tal sentimento, que, contudo nunca é posto em prática pelo medo, medo quase irracional que sente de D. Maria dos Prazeres, contra quem não ousa frontalmente levantar-se, a não ser pontualmente, pela injúria do álcool.

 É possível ferir de morte a mulher, destruindo-lhe o encanto dos seus olhos: destruir Jacinto é um meio de dar algum sossego à sua alma, libertando de vez os demônios que o enlouquecem. O retrato do pai parece até acicatá-lo com o seu sorriso, meio irônico, meio repreensivo, e voltam à memória saturada do lavrador farrapos de conversas, sobras de bofetadas que o pai lhe dava para o fazer agir, lutar pela vida. Pois está decidido: "Concentrou no ruivo toda a força do seu pensamento... Nem mais, Álvaro Silvestre".

 A partir do capítulo XVIII toda a tragédia se precipita rapidamente: pôs em prática o seu plano, pela primeira vez na vida com decisão, chamou o cego António, contou-lhe da "sangria desatada" pôs-lhe a "pulga atrás da orelha", e a sua filha e o meu cocheiro estavam deitados na palha do curral onde vossemecê recolhe o gado.

 Agitando agora o velho Antônio, ensimesmado nos seus pensamentos, durante o dia, propondo sem quê nem porquê a filha ao seu ajudante Marcelo, a troca de ajuda num plano que o rapaz não entende, ainda... mas que, só de sonhar a recompensa, lhe parece milagre, sabendo como sabe quais os desejos do mestre em casar a filha com um lavrador abastado, Marcelo porém saberá o preço que terá de pagar para ter Clara e mesmo quando, num momento bem curto, pensa que "é uma sobra quase indistinta", logo se decide porque "custa menos a ferir que um homem verdadeira à luz do dia". Em última análise, o que toma verdadeiros significado no fim do capítulo XXIV é o diálogo:

E a rapariga? Ainda é minha?
 Arreia-lhe e veremos.
 [...]
 Acertaste-lhe?
 Agora tem de ma dar.
 Acertaste-lhe ou não?
 Tem de ma dar, mestre António...

 Aqui pode notar-se a insistência, preocupada de Marcelo que revela um objetivo bem definido dos dois homens, levando-os no entanto a caminhos diferentes. O capítulo XXV é terrível, pela sua condensação: terminado o crime, quando Marcelo julga alcançar a mulher amada, mestre Antônio, embora sem mais explicações, diz uma frase lapidar: "Julgo que a perdeste." (será que o velho tem a percepção do destino imediato da filha, face à tragédia que acaba de cair sobre ela?...)

O povo de Montouro

 Este povo, com o regedor à frente "como demônios irritados", revela a exaltação, "vozes desmedidas embatiam nas paredes". Perante esta nova situação, a fragilidade de Álvaro Silvestre revela-se em toda a sua natureza: apavorado, descontrolado, vê-se confrontado com a cólera popular em quem ele vê o carrasco do seu crime: a denúncia a mestre Antônio. E, uma vez mais, Maria dos Prazeres se agiganta na sua inquebrantável altivez, falando tão duramente à população que esta se acovarda e vai saindo, aos poucos, "às golfadas" (cap. XXX). Os capítulos finais dão-nos conta da ação secundária no seu fechamento (assassínio de Jacinto e suicídio de Clara) e da ação principal na sua continuidade: tudo vai servir para perseguir alguns dos populares como o regedor "uma autoridade que permite tais desmandos não é autoridade não é nada" e Antunes "...e o sangue do Antunes é ruim" e considerar o povo como um atentado permanente ao bem-estar da "gente de bem", à moral, à família... consignado na frase "Mancebia, arruaças, assassínio" proferida por uma das personagens das relações de Maria dos Prazeres. A conversa retoma os aspectos habituais, como se tudo se cumprisse num círculo, e a apatia de Álvaro Silvestre é, de súbito, perturbada pela revolta que se vaza no desejo louco de beber; "onde é que há brandy nesta casa? Onde é que há brandy nesta casa?" (cap. XXXIV).

 Só o Dr. Neto se sensibiliza perante a sorte de Clara, que salvara em pequena e que agora nada pode impedir da desdita total. E quando, perante a afogada, reconhece a sua impotência perante a injustiça dos homens e de Deus, não é capaz de desistir, "mas continuou até o suor lhe correr pela cara. E as lágrimas também, apesar da sua velha convivência com a morte".

Fonte:
Texto parcial proveniente de apontamentos do Prof. António Melo
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/u/uma_abelha_na_chuva