quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Vicência Jaguaribe (Por uma Nota de Dez Reais)


Quando a menina chega do colégio, a mãe manda-a trocar a roupa: tire a farda e vista o vestido mais novo que encontrar. Quer levá-la à casa de um amigo, que deseja conhecê-la. A menina ainda objeta: tem que ir para a casa da dona Railda, ajudá-la, como faz toda tarde. A mãe grita com ela e diz que, a partir daquele dia, ela não precisa mais ajudar aquela exploradora de menores. A menina assusta-se com o grito e tem medo do que a mãe está planejando. Só pode ter alguma coisa em mente para querer sair com ela naquele horário.

Ela tem nove anos, no entanto parece bem mais nova. Seu corpinho raquítico e seu rostinho de feições miúdas não permitem que lhe deem mais de seis anos. Mora com a mãe em um barraco perto da linha do trem e estuda na escola pública do bairro. Logo que foi morar ali, acordava todas as vezes que o trem passava e tinha medo que ele descarrilhasse e caísse sobre o barraco. Com o tempo, porém, acostumou-se, e nem o apito da locomotiva nem o barulho que ela provoca ao deslocar-se a perturbam mais. Agora, em vez de ter medo, ela fantasia em torno do trem. Aquele é um trem mágico, que vai levá-la a uma terra distante, onde não existe bebida, nem droga, nem mãe violenta, com namorado asqueroso.

Acorda cedo, come alguma coisa, quando há o que comer em casa. Sai na ponta dos pés para não acordar a mãe, que chegou de madrugada, com cara de quem andara usando aquelas porcarias, que a menina bem sabe o que são, mas evita dizer o nome. Ainda bem que há o colégio onde ela passa a manhã inteira, e lá ela pode contar com a merenda escolar. Enquanto está na escola, esquece-se da mãe, do barraco, da fome e do namorado da mãe, que de vez em quando tentava agarrá-la.

Mas nem sempre fora assim. Ela se lembra, ainda que vagamente, do tempo em que moravam em uma casa de verdade e sua mãe saía para trabalhar, deixando-a na creche. Passava para pegá-la à tardinha e iam as duas para casa. Ela não tinha aquela cara que tem hoje, nem aquelas crises de violência que a aterrorizam. Era divertida e carinhosa. E a menina adorava ouvi-la cantar e contar histórias. A mudança começou quando ela arranjou um namorado com cara de marginal. Levava-o para dormir em casa e o que ganhava acabava na mão dele. Aí começou a faltar tudo, e a mãe passou a agir de maneira esquisita.

Às vezes, o namorado nojento chamava-a e queria abraçá-la, beijá-la, fazê-la sentar-se em seu colo. Mas a menina fugia dele, corria para os barracos dos vizinhos e só voltava quando, já bêbados ou drogados, os dois adormeciam. Até que a mãe perdeu o emprego e não mais pôde dar dinheiro a ele. Um dia, o maldito simplesmente desapareceu. Foi quando sua mãe resolveu vender a pequena casa onde moravam. Ela precisava de dinheiro para comprar comida e... aquelas porcarias, cujo nome a menina evitava pronunciar.

Ultimamente, quando volta da escola, vai para a casa de uma senhora que mora perto e tem um filhinho pequeno. Ela passa a tarde ajudando com a criança, em troca do jantar. Mas gosta de ficar ali, de brincar com o menino. O ruim era que, agora, só pode preparar os deveres do colégio à noite. Mas, naquela tarde, a dona Railda ia pensar o que dela? Que era uma irresponsável. E não iria mais querer que ela trabalhasse na sua casa.

A mãe arranca-a do barraco puxando-a pelo braço e, sem explicar nada, vai caminhando apressada, entrando em umas ruas que ela não conhece. Até que para em frente a uma casa de muro alto e bate no portão. Um latido de cachorro responde à batida. Logo em seguida, um homem não muito jovem, segurando o cachorro pela coleira, abre o portão e manda-a entrar. Ela puxa-o para um lado e conversa com ele, apontando de vez em quando para a filha. Ele mete a mão no bolso e lhe entrega uma cédula, que ela amassa e depois mete no bolso do vestido.

Despede-se do homem e dirige-se ao portão, seguida pela menina. Sem olhar para trás, grita para a filha: ela deve ficar naquela casa, por uns dias. Aquele senhor cuidará dela. Empurra-a para longe do portão e sai quase correndo. O homem tranca o portão, pega na mão da menina, que chora gritando pela mãe, leva-a para dentro de casa e fecha a porta.

A mulher, caminhando apressadamente, só deixa de ouvir os gritos da filha, quando dobra a esquina. Aí, então, tira de dentro do bolso a nota amassada: dez reais. Dá para comprar somente duas pedras de crack, o suficiente para aquela noite. Na manhã do dia seguinte, arranjará outra coisa para vender.

Fonte:
A Autora

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