quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Lígia Leivas (Um Gaúcho de Coração Calado)


Pelas bandas das coxilhas, na vasta estância a perderem-se de vista seus limites, vivia ele de viver os dias como ordenasse o destino ou quisesse o senhor lá de cima... sabe-se lá... Apenas o olhar fazia arabescos a mostrar que o velho gaúcho sentia coisas mais além do que o seu jeito sossegado aparentava. Sem mulher, sem filhos, sem família, servia o patrão estancieiro com lealdade e respeito. Viera parar ali ainda guri, à procura de trabalho. Todos os que o conheciam, tratavam-no com consideração e certa distância. Havia noites em que se ouvia ao longe o som de sua gaitinha de boca, tocada admiravelmente. De pouquíssimas palavras, era mesmo um homem estranho. Mas estimado. E ninguém o queria perder de vista, nem imaginavam que ele um dia pudesse ir embora dali.

E assim ia o tempo. Quando sobravam algumas horas, o gaúcho atendia as redondezas nas estâncias e fazendas e assim ganhava uns trocados que nem tinha em que gastar.

Um dia chegou da cidade grande um casal parente dos patrões. Ele, homem vistoso, de bom gosto, roupas elegantes e ainda um sorriso pronto, franco. Ela, jovem senhora, moça fina, pele morena, muito, muito bonita. Tudo mudou na estância.

O serviço aumentou. Mais almoços, mais arrumações e limpezas. Mais passeios, na tentativa de conhecerem toda a propriedade. Era preciso manter tudo sem qualquer sinal de desleixo.

O gaúcho sempre quieto e fazendo suas lides. Apenas observava o ambiente enquanto completava as tarefas. Tinha prazer em mostrar suas habilidades para assim também agradar os visitantes.

À noite, na roda do chimarrão, enquanto todos conversavam e ele organizava as atividades para o outro dia, ficava a olhar, encantado com a moça e sua beleza, sua simpatia. Até pensara em comprar para ela um colar de continhas que vira lá no armazém da vila. Enfim, sentia que o mundo por ali havia mudado. Um novo colorido e até uma vontade de andar mais garboso, com botas em vez de alpargatas; com bombachas mais alinhadas; com os apetrechos de gaúcho mais cuidados. Até o lenço vermelho voltara a usar no pescoço.

Passados mais de dois meses, cedinho ainda, manhã já com ares de primavera, o gaúcho surpreendeu-se ao ver a moça montar o baio e sair campo afora... Ficou matutando, pensando, enquanto enrolava seu cigarrinho de palha. Não demorou muito, meia hora depois, o marido, troteando um alazão, embretou-se campo adentro, levantando a poeira dos caminhos. Que teria acontecido?...

Passou o meio-dia, a tarde, a noite. Não voltaram naquele dia. Nem no outro, nem no seguinte. Começaram as buscas. Naquelas lonjuras, tudo muito difícil. Sabia-se que por aquelas terras havia lugares que nenhum homem ainda havia pisado.
Todos - ou os poucos - daquelas paragens diziam alguma coisa, davam opinião. Mas ninguém sabia nada mesmo e nem poderiam imaginar.

Quando chegou a próxima lua cheia, uns dez, doze dias depois, o casal finalmente foi encontrado lá pelas barrancas do rio Uruguai... o colar de continhas ainda enfeitava o esguio pescoço da mulher bonita. Nem o moço vistoso perdera seu jeito bonito.

Naquela noite, o gaúcho tocou por muito mais tempo sua gaitinha de boca. E a quietude parecia mais profunda...

No domingo seguinte, já com certo calor nas pradarias, o gaúcho não levantou na hora de costume. O cão, seu leal companheiro, também dormia sossegado no portal do rancho.

Era preciso fazer a ordenha. Por que o gaúcho ainda não se mexeu hoje, perguntou o patrão a um outro peão.

Encaminharam-se para o rancho.

No catre forrado de pelego de ovelha, no canto do quarto, o gaúcho, enrijecido, tinha apertada entre as mãos a fotografia do moço bonito que viera da cidade grande para distribuir sorrisos - coisa pouco comum naquelas plagas distantes.

Fontes:
Revista "Recanto da Prosa e do Verso" ano III Setembro de 2010 . Portal CEN.
Imagem = Pagina Aberta

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