sexta-feira, 29 de abril de 2011

Batista de Lima (O Demolidor de Mitos)


A poesia do Poeta de Meia-Tigela se alicerça sobre os escombros da mitologia que lhe incutiram ao longo dos anos, mas que ele preferiu escarafunchar nesse seu mais recente livro. O livro tem como título "Concerto nº 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema". Ainda tem um subtítulo "Combinação de realidades puramente imaginárias". Fica assim o leitor, logo de início, encafifado com essa volúpia verbal que parece não dizer nada mas termina por dizer tudo.

O primeiro mito que ele destrói é o seu próprio nome sacralizado na pia batismal e referendado no cartório de registro civil. Como não foi nome da sua escolha, ele então mudou para Poeta de Meia-Tigela. Só há um momento do livro em que aparece seu nome oficial: Alves de Aquino.

Mesmo assim, o primeiro não aparece. Após esse desfazimento da veste antiga, ele começa fustigando Shakespeare no seu "Sonho de uma noite de verão", e tange Dante das profundas dos infernos às delícias do paraíso no mesmo itinerário do poeta Virgílio no momento do seu resgate. Isso tudo levando a tiracolo Antônio Conselheiro e a procissão de seus beatos. E pode não ser nada disso, mas sugere.

Meia Tigela é um poeta semiótico. E quem não é? Mas no caso dele os signos verbais são transformados em não verbais através da desconstrução que opera sobre metáforas cansadas de tanto uso. Ele dilapida conteúdos, destrói fórmulas e endoida leitores.

Não é bobo, no entanto, esse poeta de tigela e meia. Chamou logo para prefaciar seu livro o professor Sânzio de Azevedo, maior conhecedor da Literatura Cearense e exímio desmontador de formas e fórmulas poéticas. Por isso que o professor Sânzio ficou "Antes dos Versos", diante da parafernália literária que Tigela derramou ao longo das 343 páginas do livro que a Expressão Gráfica Editora teve coragem de editar. Afinal, nem Osman Lins tanto ousou.

Para posfaciar esse seu libelo poético, ele conseguiu a adesão de Nilto Maciel, guru dessa mais recente geração de escritores cearenses. Nilto o classifica, acertadamente, logo no título, de "Vampiro". Depois verifica que para ler esse "Concerto" é preciso participar da brincadeira, do jogo que o poeta instaura. Para entrar nesse jogo é preciso entender de brinquedos verbais. Nesse comportamento lúdico, Nilto Maciel, diferentemente de Sânzio de Azevedo, deixou de lado a forma para mergulhar no conteúdo, fez muito mais uma análise no nível da metáfora. É aí que constatamos, como diz o crítico, que essa desconstrução tigeleana começa da mitologia grega e vem ao horóscopo dos jornais atuais.

Meia Tigela dilapida velhas construções à moda Alcides Pinto, Carlos Emílio Corrêa Lima e Gerardo Melo Mourão. Ao mesmo tempo reconstrói a seu modo a terra arrasada, inclusive fustigando a alienação ortográfica a que se submetem escritores tradicionalistas. Modifica a grafia dos vocábulos, dando-lhes uma forma mais convincente que aquela que eles oficialmente portam. Quando ele escreve "abissurdo" está bem mais próxima a grafia do seu som, do que na versão dicionarizada. O mesmo acontece com "iguinora" e com outras palavras dos poemas. Fica então patenteada sua vocação motivadora de signos. Desconstruir arbitrariedades verbais é dar uma função metalinguística inovadora às palavras.

A partir dessas desconstruções, pode-se pensar enganosamente que a função de sua poética é apenas deletéria daquilo que por aí está posto. Ledo engano de quem assim pensar. Meia Tigela tem o domínio dos versos nas suas feições mais tradicionais. No segundo movimento de seu "Concerto", quando ele trata de "Os prisioneiros", é impressionante o seu domínio do soneto clássico. "Achando pouco tal demolição", seu estro se volta para a confecção de sonetos clássicos de forma decassilábica até em rimas ABBA, ABBA CDC DCD como em "De virtude", um poema lapidado à beira da perfeição. É aí onde o leitor precisa parar e se extasiar com a eloquência do poeta.

Até sua depressão é eloquente. Afinal, é no seu momento de melancolia quando entra em cena o vampiro enfadado de dar conselhos. É então que todo um vocabulário é posto de oitiva para servir à tristeza: "merencório", "penseroso", "esquizofrênico", "misantropo", "anacoreta", "tartamudo", "macambúzio", "encabulado", "abirobado", "atarantado", "azarado", "songamonga", "mocorongo", "nefelibata", "rastaquera", "sotrancão", "estercorário" e por aí vem uma desvampiragem escorrendo pela eloquência de uma autoestimada zerada. Essa insônia constipada que vê a porta mas não vê a chave, se esvai pelas frechas e contamina o leitor, levando-o também a essa "vidinha solidã".

Esse livro do Poeta de Meia-Tigela é tão contaminador que o próprio autor a certa altura de sua trajetória criou um compartimento chamado de "Mantenha Distância". Depois ainda prega o aviso: "Este poema está temporariamente programado para não receber chamadas". Mais adiante ele chega a suplicar: "Leitor amigo, por que insistir em ler? Quando bastaria me olhasses adentrolhos?" Essa tentativa de afastar a aproximação do leitor da sua poesia é pura ciumeira. Depois da obra pronta, beirando a perfeição, o poeta se narcisa, se enamora do que fez, à sua imagem e semelhança, convence-se de que criou uma bela obra de arte e agora não quer dividir o prazer de possuí-la com seu concorrente leitor. Isso tudo mostra que esse Poeta de Meia-Tigela é poeta de muitas tigelas e meias.

Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

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