segunda-feira, 25 de abril de 2011

João de Deus (Antologia Poética)


FOLHA CAÍDA

Árida palma
Tem seu licor;
Tem, como a alma
Tem seu amor;
Tem, como a hera
Tem seu Abril;
Tem, como a fera
Tem seu covil.

Tem toda a planta,
Que o sol crestou,
Lágrima santa
Que a orvalhou;
E o passarinho,
Que ontem nasceu,
Lá tem seu ninho
Que a mãe lhe deu.

Só eu na mágoa
Do meu penar
Sou como a água
Que anda no mar;
Sou como a onda
Que à busca vem
De onde se esconda,
E onde não tem!

Folha revolta
Que anda no chão,
Lágrima solta
Do coração;
Corpo sem vida,
Haste sem flor,
Folha caída
Do meu amor!

TRISTEZAS

Na marcha da vida
Que vai a voar
Por esta descida
Caminho do mar,

Caminho da morte
Que me há-de arrancar
O grito mais forte
Que eu posso exalar:

O ai da partida
Da pátria, do lar,
Dos meus e da vida,
Da terra e do ar…

Já perto da onda
Que me há-de tragar,
Embora se esconda
No fundo do mar;

De noite e de dia
Me alveja no ar
O fumo que eu via
Subir do meu lar!

Que sonhos dourados
Me estão a lembrar!
Mas tempos passados
Não podem voltar.

Carreira da vida,
Que vás a voar
Por esta descida,
Vai mais devagar;

Que eu vou deste mundo
Talvez… descansar,
E nunca do fundo
Dos mares voltar!...

AMORES, AMORES

Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.

Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.

Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.

Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

AVARENTO

Puxando um avarento de um pataco
para pagar a tampa de um buraco
que tinha já nas abas do casaco,
levanta os olhos, vê o céu opaco,
revira-os fulo e dá com um macaco
defronte, numa loja de tabaco,
que lhe fazia muito mal ao caco!
Diz ele então
na força da paixão:
- Há casaco melhor que aquela pele?
Trocava o meu casaco por aquele...
e até a mim... por ele.
Tinha razão
quanto a mim.
Quem não tem coração,
quem não tem alma de satisfazer
as niquices da civilização
homem não deve ser:
seja saguim,
que escusa tanga, escusa langotim.
Vá para os matos;
já não sofre tratos
a calçar as botas, a comprar sapatos.
Viva nas tocas como os nossos ratos
e coma cocos, que são mais baratos!

MISÉRIA


Era já noite cerrada,
Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo d'aquella arcada
Passava-se a noite bem!"

A cega, que todo o dia
Tinha levado a andar,
A tais palavras do guia
Sentiu-se reanimar.

Mas saltam dois cães de gado,
Que eram como dois leões:
Tinha-os à porta o morgado
Para o guardar dos ladrões.

Tornam os pobres à estrada,
E aonde haviam de ir dar?
Ao palácio da tapada
Onde el-rei ia caçar.

À ceguinha meia morta
Torna o filho: "Oh minha mãe,
Ali no vão de uma porta
Passava-se a noite bem!"

- Se os cães deixarem... (diz ela,
A triste n'um riso amargo),
Com efeito a sentinela:
- "Quem vem lá?... Passe de largo!"

Então ceguinha e filhinho,
Vendo a sua esperança vã,
Deitaram-se no caminho
Até romper a manhã!…

SEMPRE

Nem te vejo por entre a gelosia;
Nunca no teu olhar o meu repousa;
Nunca te posso ver, e todavia,
Eu não vejo outra cousa!

PERDÃO

Seria o beijo
Que te pedi,
Dize, a razão
(outra não vejo)
Por que perdi
Tanta afeição?
Fiz mal, confesso;
Mas esse excesso,
Se o cometi,
Foi por paixão,
Sim, por amor
De quem?... de ti!
Tu pensas, flor
Que a mulher basta
Que seja casta,
Unicamente?
Não basta tal:
Cumpre ser boa,
Ser indulgente.
Fiz-te algum mal?
Pois bem: perdoa!
É tão suave
Ao coração
Mesmo o perdão
De ofensa grave!
Se o alcançasse,
Se o conseguisse,
Quisera então
Beijar-te a mão,
Beijar-te a face...
Beijar? que disse!
(Que indiscrição...)
Perdão! Perdão!

ADORAÇÃO


Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par;
Contemplei-o de longe mudo e quedo,
Como quem volta de áspero degredo
E vê ao ar subindo
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual;
Suave como lâmpada sagrada,
Bem-vindo como a luz da madrugada
Que rompe ao navegante
Depois do temporal!

Vi esse corpo de ave,
Que parece que vai
Levado como o Sol ou como a Lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição,
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
É uma adoração!

Que as asas providentes
De anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!

Fontes:
Rua da Poesia
– TUFANO, Douglas (organizador). Antologia Escolar da Poesia Portuguesa
Link: De Camôes a Pessoa. SP: Moderna, 1993.

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