sexta-feira, 22 de abril de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XVI – João Esperto


Havia um casal muito pobre, que tinha um filho de nome João, bastante espertinho; mas apesar disso sua mãe, mulher de beiço rachado e muito má, não gostava dele. João vivia só, sem ter com quem brincar. Seu único amigo era uma cachorrinha que sua avó lhe dera — a Pita.

Quando ficou moço, João saiu um dia a passear longe de casa. Pelo caminho encontrou um viajante com quem puxou prosa. Soube que no reino das Três Princesas, que era perto, ia haver o casamento de uma das moças. Para isso estava o rei dando uma festa de quinze dias, a fim de que os pretendentes à mão da princesa lhe propusessem uma adivinhação. Se ela adivinhasse, o pretendente ia para a forca; mas se não adivinhasse, então o felizardo se casaria com ela. Nas forcas já estavam pendurados diversos pretendentes que apareceram com adivinhações que a princesa adivinhou num instantinho.

João ouviu tudo aquilo e ficou a pensar. Quem sabe se ele venceria a princesa e se casaria com ela? Voltou para casa com um plano na cabeça.

— Meu pai, quero sair pelo mundo para ganhar a vida.

O pai consentiu, mas a mãe, que era a pior bisca das redondezas, preparou-lhe uma peça: deu-lhe um pão envenenado, imaginem! João arrumou a trouxa e partiu acompanhado da cachorrinha.

Mas onde era o caminho para o reino das Três Princesas? Não sabia. Nem havia por ali ninguém que pudesse informá-lo. João foi andando ao acaso, com a trouxinha ao ombro. Subiu uma montanha, desceu do outro lado, numa campina, onde pousou.

No dia seguinte continuou a caminhar até onde havia um grande rio. Ficou à margem olhando para a água. Viu um burro morto, de barriga inchada, que vinha descendo rio abaixo. Em cima dele uma porção de urubus. Botou reparo naquilo e continuou a viagem.

Quando caiu a tarde João sentou-se debaixo duma figueira para jantar o pão que sua mãe lhe dera, mas qualquer coisa lhe disse que o não comesse antes de fazer uma prova com a cachorrinha — e ele deu a ela um pedaço do pão. Foi tiro e queda. Assim que a pobre Pita engoliu o primeiro bocado, tremeu e morreu.

João ficou muito triste da maldade de sua mãe, e também por ter perdido sua única amiguinha. Enterrou-a. Mas vieram três urubus que a desenterraram e a comeram — e também morreram. Imaginem que veneno forte a peste da mulher tinha inventado!

João botou às costas os urubus mortos e seguiu caminho. Chegou a uma estalagem onde não havia ninguém. Entrou. Lá nos fundos viu sete homens armados de espingardas, todos a morrerem de fome. Dando com o novo hóspede que entrava com aquelas aves negras ao ombro, os famintos avançaram e tomaram--lhe os urubus. Devoraram-nos — e morreram.

João escolheu a melhor das sete espingardas e lá se foi pelo caminho afora. Saiu numa extensa campina onde se sentou debaixo dum pé de árvore. Seu estômago dava torcidas medonhas, tanta era a fome. De repente viu uma perdiz mexer-se no capim. Disparou um tiro. Errou. O chumbo foi acertar numa rolinha que ele não tinha visto. Para quem erra perdiz, rolinha serve.

João depenou a rolinha — mas não viu lenha para fazer fogo. Olhou. Havia perto uma cruz muito velha. Foi lá, tirou umas lascas, fez fogo, assou a rolinha e comeu-a. E água? Como obter água para matar a sede?

Teve uma idéia. Montou num cavalo que andava pastando por ali e o fez galopar até que suasse em bicas; recolheu o suor e bebeu. E assim, matada a fome e a sede, pôde continuar a viagem.

Pouco adiante encontrou uma caveira em que um enxame de maribondos havia feito colmeia. Viu também um burro amarrado a uma árvore, a escarvar o chão com o pé. Indo investigar o que havia naquele chão, encontrou uma botija de dinheiro. Pôs-se novamente a caminho e afinal avistou o reino das Três Princesas. Tinha chegado.

Indagou das festas. "Tudo corre bem, informou-lhe um sujeito, mas não aparece pretendente nenhum com adivinhação que a princesa não adivinhe. As forcas estão engordando."

João dirigiu-se ao palácio, onde declarou ao porteiro que era pretendente à mão da princesa adivinhadeira.

O porteiro mandou-o entrar, mas todos riram-se daquele pobre diabo com cara de matuto, mal vestido, de trouxinha às costas.

— Suma-se daqui, moço, se tem amor à vida. Rapazes dos mais distintos já falharam, e estão neste momento com as línguas de fora, nas forcas. Se é lá possível que um bobo como você consiga inventar uma adivinhação que a melhor adivinhadeira do mundo não adivinhe! Suma-se, enquanto é tempo.

João, porém, tanto insistiu que foi levado à presença do rei.

— Sabes que arriscas a vida? — disse o rei.

João declarou que sim, mas que estava disposto a tudo.

— Bem — exclamou o rei. — Nesse caso, apresente a sua adivinhação — e chamou a princesa.

João foi e falou assim:

Sai de casa com massa e pita;
a massa matou pita,
a pita matou três,
os três mataram sete
e das sete escolhi a melhor.
Atirei no que vi
e matei o que não vi.
Com madeira santa
assei e comi,
bebi água sem ser do céu;
vi o morto carregando os vivos
e o burro sabendo
o que os homens não sabem.
Resolva agora, princesa,
ou me dê cá sua mãozinha.

A princesa pensou, pensou e não foi capaz de adivinhar. Pediu-lhe que repetisse a história. João repetiu-a três vezes, e a moça nada. Por fim, já com dor de cabeça, confessou ao rei:

— Impossível, meu pai. Esta eu não adivinho.

— Pois então abrace e beije o seu noivo — respondeu o rei.

E mandou que preparassem o reino para o grande casamento.
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— Gostei, gostei! — exclamou Emília. — Não tem nada de boba essa historinha. É uma luta de esperteza contra esperteza, em que o mais esperto saiu ganhando. Pedrinho sabe o que isto significa em linguagem científica. Diga lá, Pedrinho.

E o menino, que era um darwinista levado da breca, veio logo com a sua cienciazinha.

— Isso significa a vitória do mais apto. O mais apto é o mais esperto.

— A história que vocês acabam de ouvir — disse dona Benta — pertence ao tipo das engenhosas. Reparem que está muito engenhosamente arranjada. Na adivinhação o matuto começa falando em massa e pita — massa é pão, e Pita, o nome da cachorrinha; e vai por ai além, contando toda a sua viagem em termos simbólicos.

— Então símbolo é isso? — perguntou Narizinho.

— Símbolo é palavra grega, com significado de sinal que indica uma coisa. Tudo na língua são símbolos. Todas as palavras são símbolos. A palavra "Emília", por exemplo, que é senão um símbolo da criaturinha mais pernóstica e sabida destas redondezas?

— Destas redondezas só? — protestou Emília. — Da redondeza da terra, isso sim, porque outra como eu ainda está para nascer...

Dona Benta piscou para tia Nastácia, como quem diz: "Já se viu como está ficando vaidosa?"
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Continua… XVII – o Caçula
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Um comentário:

Unknown disse...

ntraswi 43Fez parte da minha infancia e até hj ñ esqeci,sei de cór muito legal essa Historia