domingo, 24 de abril de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XVII – O Caçula


Havia um homem com três filhos: João, o mais velho; Manuel, o do meio: e José, o caçula. Um dia os dois mais velhos se revoltaram contra o pai e fugiram de casa. O caçula foi e disse: "Não se amofine, meu pai; sairei pelo mundo em busca de meus irmãos."

E saiu. Foi andando, andando, até que chegou à casa duma velha.

— Que anda fazendo aqui por estas alturas, menino? — perguntou a velha.

— Saí a correr mundo, em procura de dois irmãos fugidos de casa.

— Pois vou te ajudar, menino, disse a velha. Entras e dormes aqui. Amanhã conversaremos.

No outro dia a velha disse:

— O que tens de fazer é o seguinte. Irás ao reino das Três Pombas, porque é lá que se acham os teus irmãos. Encontrarás a cidade num grande rebuliço de festas, porque o rei vai escolher o desencantador das três pombas que estão no fundo do mar. Dou-te esta varinha de condão, toma-a. E também esta esponja. Mas muito cuidado para que ninguém te veja com estes objetos, porque vai acontecer o seguinte: teus próprios irmãos vão caluniar-te perante o rei, dizendo que te gabas de seres capaz de descer ao fundo do mar, quebrar uma pedra que há lá e desencantar as três pombas, que são três princesas.

Bem. O rei vai te chamar à sua presença e te perguntará se isso é verdade. Responderás que é mentira, mas que és capaz de fazer o desencantamento.

E então irás para a praia do mar e lançarás na água a esponja: a esponja irá flutuando e tu a acompanharás a nado até encontrares uma pedra. Baterás nessa pedra com a varinha de condão; a pedra se abrirá e aparecerá uma serpente. Baterás na serpente e a serpente adormecerá. Entrarás pela rachadura da pedra e encontrarás bem no fundo uma caixa, dentro da qual existe um ovo. É um ovo de três gemas. Quebrarás esse ovo e darás a clara à serpente. Feito isso, os teus trabalhos estarão terminados. As três gemas são as três princesas.

A velha abençoou-o e José se dirigiu para o reino das Três Pombas. Encontrou o reino das Três Pombas. Encontrou o palácio em grandes festas e também viu seus irmãos. Falou com eles, mas os malvados fingiram não conhecê-lo — e foram intrigá-lo com o rei, dizendo que havia aparecido um grande gabola com prosa de que era capaz de desencantar as princesas.

O rei chamou José à sua presença e interpelou-o.

— Saiba Vossa Majestade que é mentira, mas apesar disso estou pronto para desencantar as princesas.

O rei ficou admiradíssimo da segurança com que o rapazinho afirmava tal coisa, e mandou que lhe pusessem um navio à disposição. José respondeu que não era preciso — que iria a nado, e o rei riu-se, porque era o absurdo dos absurdos.

No dia seguinte foi José à praia do mar e lançou à água a esponja, que não afundava como fazem todas as esponjas. E a esponja foi indo em certa direção e ele atrás, nadando, até que chegou à pedra. Tirou a varinha da cintura e bateu. A pedra abriu-se e apareceu a serpente. José bateu na serpente e a serpente adormeceu. Entrou então pela rachadura da pedra e descobriu a caixa. Abriu-a e tirou o ovo. Partiu o ovo; deitou a clara na boca da serpente e recolheu as gemas no chapéu.

Feito isso, lançou-se de novo no mar e veio nadando até à praia. Quando chegou, bateu com a varinha nas gemas, que se transformaram nas três moças mais bonitas do mundo.

Foi um grande assombro no reino, mas os maus irmãos levantaram outro aleive contra José, dizendo que ele andava se gabando de ser capaz de trazer até a serpente. O rei perguntou-lhe se era verdade. "É mentira, mas sou capaz de trazer a serpente" — e lançando-se ao mar foi à pedra e trouxe a serpente.

Os maus irmãos tentaram levantar um terceiro aleive, mas desta vez José danou com a maldade deles e com a burrice do rei — e, dando-lhes umas varadas, adormeceu-os.

Quando o rei voltou a si, não quis mais saber de histórias. Casou José com a mais bonita das três princesas e mandou expulsar do reino os maus irmãos. E acabou-se o caso.
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— Bom — disse Emília — esta história é das tais de virar. Eu já tive comigo a varinha de condão que Cinderela esqueceu cá no sítio, no tempo daquela festa , e brinquei de virar uma coisa noutra até não poder mais. É facílimo e não há mérito nenhum nisso. Prefiro as histórias em que o freguês vence à custa de esperteza, isto é, de inteligência. Com varinha mágica tudo se torna extremamente simples.

— Também acho bastante boba esta história — disse Narizinho — além de que há muita repetição de coisas de outras. Os tais três irmãos, o tal do mais novo sair pelo mundo, a eterna velha, o tal reino das Três Pombas, os tais três aleives — tudo três, três, três. Isso até cansa. E os nomes? Não há história em que não apareça um João. Agora variou um pouco e veio um José...

— Eu, o que mais me admiro — disse Pedrinho — é a burrice desses reis, pais de três princesas. Nesta história, por exemplo, houve o primeiro aleive dos maus irmãos, mas José deu conta do recado muito bem, indo à pedra è desencantando a princesa. Que mais queria o rei? No entanto o palerma novamente deu ouvidos aos dois perversos que vieram com o segundo aleive. Isso nem é ser rei; é ser camelo.

— O negócio dos três — disse Emília — é coisa que só serve para maçar as crianças. O contador faz isso para espichar a história. Bem se vê que quem as inventa é gente do povo, de pouca imaginação e cultura.

— Bom — disse dona Benta. — O que estou observando é que as crianças de hoje são muito mais exigentes do que as antigas. Eu, quando era pequenina, ficava deslumbrada quando ouvia histórias como esta. Hoje está tudo diferente. Em vez de meus netos deslumbrarem--se, metem-se a criticar, como se fossem uns sabiozinhos da Grécia...

Emília ficou muito admirada de saber que dona Benta já havia sido criança.

— Mas então a senhora também já foi criança, das pequenininhas? — perguntou.

— Está claro, Emília. Que pergunta!

— E tia Nastácia também?... Que interessante! Está aí uma coisa que nunca me passou pela cabeça.

E ficou pensativa, imaginando como seriam as duas velhas quando criancinhas.
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Continua… XVIII – A Cumbuca de Ouro
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

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