terça-feira, 19 de abril de 2011

Vicência Jaguaribe (Com o Toque da Campainha)


O primeiro toque da campainha acordou-a. Afinal, o seu quarto era o segundo aposento da casa, com duas portas de correspondência para a sala de visitas, as quais ficavam sempre abertas durante a noite. E nada separava a sala de visitas da rua, a não ser o nível do chão. Das duas varandas da sala até a calçada distava talvez um metro e meio.

Acordou é maneira de dizer. Ficou naquele estado de semi-inconsciência, e não podia determinar com certeza se estava vivendo um sonho ou se começava a emergir para a realidade.

O segundo toque da campainha fê-la abrir os olhos e sentar-se na cama. Mas, pelo amor de Deus, quem acionava aquela bendita campainha a uma hora daquelas, em pleno sábado? Vestiu o robe por cima do pijama e abriu a janelinha que dava da sala para a área aberta que corria em toda a lateral da construção e pela qual quem chegava tinha acesso ao interior da casa. Olhou para o portão, meio aberto, e não viu ninguém. Se alguém realmente acionara a campainha, quisera fazer uma brincadeira fora de hora. Já fechava a pequena janela quando viu uma caixa, colocada do lado de dentro do portão. Aliás, fora mais uma impressão do que uma visão. Abriu novamente a janela e estirou o pescoço para fora. Não, não se enganara, era realmente uma caixa, e relativamente grande. A curiosidade, mais do que qualquer outra coisa, levou-a a dar a volta pela sala de jantar e abrir a porta desaída. Por aquela porta passava-seà varanda, que emendava com a área descoberta e desembocava na calçada.

De perto, ela viu que a caixa estava aberta. Dentro, divisou uns panos brancos, que não paravam de se mexer. Já meio desconfiada do que continha aquela caixa — mais do que desconfiada, quase certa —, arredou os panos, que agora percebia serem cobertas, e tremeu. Tremeu antes de ver. E viu. Viu um bebê de poucos dias, de pele morena e cabelos negros, que a encarou como se dissesse cheguei.Ela já ouvira de mais de uma pessoa a descrição do que se sente num momento como aquele, mas nunca supusera que fosse tudo tão intenso. Seu corpo tremia como se estivesse atacado pela maleita. As lágrimas, sem pedir licença e sem se importar com sua reação, não caíram de duas em duas, comportadamente, não. A impressão é que uma torneira fora aberta e não fora fechada. Fez força para controlar-se e tirou o bebê de dentro da caixa. Ele continuava caladinho, como se tivesse medo de causar má impressão àquele colo quente e confortável.

A mulher dirigiu-se ao interior da casa e esbarrou com uma parte da família, que também achara estranho o toque da campainha tão cedo, num sábado. A mãe, idosa, aproximou-se e pegou a criança, que, quando se sentiu em uns braços menos confortáveis, abriu o berreiro. E o que se falou ali, o que se perguntou, não pode ser repetido, já que todos falavam de uma vez e queriam ter, todos ao mesmo tempo, o bebê nos braços. Mas algumas perguntas se distinguiam, porque partiam da boca de todos. Quem era aquele menino? Sim, já se descobrira o sexo do bebê. De onde viera? Quem o trouxera? As perguntas eram dirigidas à mulher que recolhera a criança. Mas ela não podia dar-lhes nenhuma resposta, pelo simples motivo de que não sabia de nada. Só contou o pouco de que participara.

A situação era óbvia. Não havia mistério. Estava ali uma criança enjeitada, que precisava de uma família. E alguém achara que aquela era a família certa: pessoas de princípios, boa situação financeira, quase todos os filhos casados, com uma filha solteira ainda dentro de casa, que podia ajudar os pais já idosos naquela missão que — agora estava claro — desafiava-os. O irmão da dona da casa, que passava as férias ali, foi o primeiro a falar. Era totalmente contra. Não se podia exigir da irmã, uma mulher de mais de setenta anos, mãe de doze filhos, que, àquelas alturas da vida, se responsabilizasse pela educação de mais uma criança. Os três ou quatro sobrinhos presentes acharam que deveriam ponderar. Não se rejeita uma criança assim, principalmente uma criança que já fora abandonada pela mãe.

Enquanto uma parte da família discutia sobre a possibilidade de adoção, a mulher que recolhera a criança, agora mais calma, tratava de coisas mais imediatas. Mandou alguém à farmácia comprar fralda, leite e mamadeira. Telefonou ao cunhado médico e pediu que ele fosse ver a criança. Será que era saudável?Examinou-lhe o corpinho em busca de feridas ou de marcas de maus tratos. Mandou a empregada lavar uma bacia e amornar água, para banhá-lo. Para efeitos legais, aquele menino seria filho de seus pais, no entanto sabia, mais, sentia, seria ela a mãe de fato.

No segundo momento, os outros filhos do casal, os que moravam em outros estados, foram contatados: os pais exigiam um compromisso. Eles adotariam aquela criança, mas todos seriam responsáveis por ela. Deviam comprometer-se a assumir as despesas com sua educação e a cuidar dele, caso os velhos morressem antes de cumprir a nova missão que alguém — Quem? Deus? O destino? O acaso? — achara que eles ainda podiam cumprir. Restava, agora, mergulhar nos trâmites legais.

Dentro de casa, a mulher que seria chamada de mãe, terminava de banhar a criança e recebia de uma das irmãs a mamadeira com o leite que o menino esvaziou com rapidez. Quando terminou, já estava de olhos fechados. A mãe, então, improvisou com os travesseiros de sua cama um recanto seguro onde agasalhou a criança. A sua criança. Sim, alguém lhe mandara aquele presente. E ela iria cuidar dele com desvelo.

Fontes:
Texto enviado pela autora
Imagem = http://www.eletrocompany.com/materiais-eletricos/materias-eletricos

2 comentários:

Erlene Gomes disse...

Gosteu muito do texto, que me cativou tanto pela história como pelo ritmo intenso. acho que o li de um único fôlego. Parabéns! Erlene.

helen disse...

Gostei, Vicência. Seu estilo é inconfundível.