sábado, 28 de maio de 2011

A. A. De Assis (O Dente Penhorado)


O distinto entrou numa fase de vento contra, perdeu tudo, ficou devendo a meio mundo, inclusive ao verdureiro. Uma nota comprida em tomate, alface, cenoura, a salada completa. Acontece que o verdureiro, homem pacato mas inimigo dessa coisa de levar cano, bateu pé firme. Encostou na parede o infeliz, a peixeira na mão, a voz enfezada: “Se o senhor não tem dinheiro, me pague com algum objeto... de mão vazia não volto”.

Nada havia a oferecer: a casa, o carro, os eletrodomésticos, os passarinhos com gaiola e tudo, os ternos, a bicicleta do filho, os outros credores já haviam levado. Mas o homem insistia: “Alguma coisa havera de ter sobrado... já sei... esse dente aí, esse dentão de ouro que o senhor tem na boca, levo ele, deve estar valendo pacas. Ou levo ou o senhor penhora ele e me paga o que deve”.

“Penhorar não dá – explicou o devedor – eu acho que ninguém aceita dente no prego. Que ideia mais estapafúrdia...”. O credor não quis saber de desculpa: “Se ninguém aceitar, eu aceito. Quando o senhor puder, me paga com juro, e aí então devolvo a joia”.

Era um dente de estimação, belo canino colocado nos bons tempos, adorno que lhe garantiu muitos sorrisos irresistíveis, um tesouro mesmo. Tudo, menos penhorar tal peça.

A peixeira brilhou, a voz do verdureiro cada vez mais medonha, era ceder ou ter a barriga furada. Mas como extrair o dente, se ele não tinha como pagar ao dentista? “Não tem mistério – emendou o credor – pago eu a conta ao doutor e debito em sua dívida. O ouro tá subindo de preço, deve cobrir tudo isso”.

Recibo passado, o homem levou a joia e um documento em que o devedor lhe dava autorização para vender o objeto empenhado, caso a dívida não fosse paga após seis meses.

Nesse meio tempo o devedor se encalacrou mais ainda, sumiu, dizem que se mandou para a Amazônia, sabe-se lá. Terminado o prazo, o verdureiro esperou mais algumas semanas, até que de repente começou a desfilar sorrindo mais que nunca. Achou melhor não vender o dente, seria um desperdício. Instalou a preciosidade na boca e se realizou.

Se algum dia você encontrar por aí um verdureiro ostentando vislumbroso dentão, pode ser que não seja o mesmo, mas também pode ser que seja. Por via das dúvidas, melhor pagar pontualmente as alfaces que dele comprar...

Fonte:
ASSIS, A. A. de. Vida, verso e prosa. Maringá: EDUEM, 2010.

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