terça-feira, 24 de maio de 2011

José Faria Nunes (O Natal de Jurandir)


Conto publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos - vol.8
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Adolescente, Jurandir não sabe definir o que sente. Só sabe que é tempo de Natal de um ano qualquer, lá pela metade do século XX. Perplexo, confuso, um misto de alegria e tristeza. Do rádio na mesa da sala do tio na pequena cidade da Água Fria ouve músicas que lhe tocam fundo. Sentimentos complexos. Incompreensão, dúvida, esperança, revolta. Presta atenção na letra da música: “Bate o sino pequenino, sino de Belém. Já nasceu o Deus-Menino, para nosso bem”. Para nosso bem? Questiona! A quem estaria se referindo aquela frase? Com certeza não para o bem dele próprio, Jurandir.

Volta-se para dentro de si mesmo. Para dentro de seu passado. Em sua regressão vê-se criança na roça. Casinha de pau-a-pique, dois cômodos, cobertura de capim de varge. A rotina, sempre a mesma. Entra ano, sai ano. E o Natal sempre chega. De ano em ano. Feliz Natal, nada mais que apenas uma expressão da boca pra fora. Entre os ricos até que pode fazer sentido. Festas, presentes... Na família de Jurandir o Natal é um dia como qualquer outro. Apenas mais um dia santo. Como se Domingo fosse. Na roça os homens não trabalham num dia desses. As mulheres e as crianças, para essas não tem domingo e nem dia santo. Café da manhã, varrer a casa, fazer o almoço, depois a janta e, à noite, ferver água no caldeirão de ferro para se lavar os pés na bacia de cobre.

Nas casas em que há meninas, essas ajudam a mãe nos afazeres domésticos. Os meninos dão milho para as galinhas e os porcos, apartam os bezerros das vacas leiteiras.

Na casa de Jurandir é diferente. Primogênito e único vivo de uma irmandade de três, cabe a ele o duplo papel de filho e filha: ajuda o pai e a mãe. Cuida do quintal, leva comida para o pai na roça, mas também ajuda a mãe na cozinha. Reclamar? Pra que e pra quem? Incomoda-o, logo de manhã, a ordem da mãe para que ele se levante, abra a porta de paus-a-pique e toque para o terreiro da cozinha a galinha de pintos que dorme dentro de casa. Precaução para que bicho do mato não coma mãe e filhotes ainda desempenados. A tarefa, em dias de frio, é pior. Levantar cedo demais é um verdadeiro suplício. Tarefa seguinte: cuidar de acender o fogo no fogão a lenha para o café da manhã. A tarefa, em tempos de chuva, é por demais ingrata. A lenha úmida, teimosa, não deixa o fogo vingar. A fumaça arde-lhe os olhos. É então que Jurandir inventa um meio para a fumaça não lhe incomodar. Tira da mamoneira do quintal uma folha com talo, retira a folha, faz um corte em cada extremidade do talo oco e passa a utilizar o estratégico canudo para assoprar as brasas sem que a fumaça lhe agrida os olhos. O invento ajuda-o a ganhar tempo nos domingos e dias santos para brincar com os carrinhos que ele mesmo faz com carretéis que a mãe lhe dá quando costura à máquina manual. A máquina, herança de dona Belarmina falecida faz pouco tempo.

Para fabricação dos carrinhos, além de carretéis, utiliza fibra de talos de buriti, matéria prima utilizada também pelo pai para rolhas de garrafas e de cabaças. Garrafas para curtir pimentas e cabaças para levar água para se beber na roça.

O primeiro e único brinquedo industrializado só ganha aos seis anos de idade. Um urso de plástico rígido com patas presas em eixos. Colocado em superfície inclinada o urso desloca-se para a frente, protagoniza risos e emoção na trôpega caminhada. O presente, recomendado pela mãe, é um agrado especial do pai. Uma forma de distração do menino enquanto está impedido de brincar com seus brinquedos tradicionais pois que convalesce da lesão sofrida com a fratura do antebraço direito ao brincar de pique-esconde com os primos maiores na casa da avó.

Outra brincadeira prazerosa do Jurandir-criança é a corrida em cavalinhos, que também ele próprio faz, de cana de milho, para arrebanhar o gadinho (laranjas-da-terra) para os currais de paus roliços colhidos por ele no cerrado da frente ou do lado esquerdo da casa. O quintal onde brinca fica aos fundos e a rocinha de arroz do lado direito, que dá para o olho d’água. Este fica no fundo de um buraco de alguns metros, uma forma de grota, certamente produto de erosão em tempos imemoriais, junto ao córrego. Hoje tudo ali é cerrado. Referido olho d’água localiza-se a uns cento e poucos metros da casa de Jurandir. A família busca água do olho d’água para o consumo doméstico desde quando foi encontrado um gato morto na cisterna.

A cisterna, quando de queimadas de pastos, na seca, tem a função de hidrante. É dela que a mãe de Jurandir tira a água para molhar o capim que cobre o casebre para que alguma faísca não se atreva a queimar a cobertura. Os instrumentos? Um balde na extremidade de uma corda de bacalhau presa ao sarilho tocado por manivela de madeira.

A mãe e o filho, que sempre garante a segurança da humilde habitação quando das queimadas, desta vez não tem a mesma sorte com a chuva. Como das ocasiões anteriores, ao notar o surgimento de nuvens escuras que sobem do horizonte para o alto do céu, a mãe começa a rezar. Sempre a mesma reza que Jurandir praticamente já decorou. “Santa Barba levantô; se carçô, se mudô; sua bandera sua mão pegô; seu caminho caminhô; encontrô com Jesus Cristo, Jesus Cristo preguntô: Barba adonde vai? Eu vou pro céu, Sinhô; vô livrá de chuva braba e de baque os cristão”.

Jurandir não compreende bem o teor da oração feita pela mãe mas a ajuda a rezar. Aliás há mais coisas práticas da mãe e do pai que Jurandir não entende, mas pratica. É o exemplo de colocar nos quatro cantos do quintal e da roça estacas com palha benta ou palha santa nos dias de muito frio para se livrar da geada. A palha santa é conseguida no dia de Domingo de Ramos, na entrada da semana santa, quando vem padre da cidade grande para celebrar na corrutela os ofícios comemorativos da Semana das Dores e da Semana Santa. O pai colhe uma folha de guariroba, leva pra Missa de Ramos na capela. Abençoada a folha, que passa a se chamar palha benta, é guardada para proteção das plantações. O ritual é repetido no ano seguinte, quando vem de novo o padre que benze novas folhas, a nova palha benta, estrategicamente guardada em pequeno feixe entre a viga da casa e o capim da cobertura.

Algazarra de meninos na rua traz de volta Jurandir para a realidade. Ele vai à janela: um homem com roupas espalhafatosas, uma pequena bola vermelha no nariz que se destaca no rosto pintado de vermelho e preto. É o palhaço com uma corneta em forma de cone e um grupo de crianças anunciando a estréia do circo à noite. “Hoje tem, hoje tem?” “Tem sim sinhô!” “Hoje tem espetáco?” “Tem sim sinhô!” “É na rua do buraco?” “É sim sinhô!”...

Jurandir sabe que não vai ao circo, pois terá que voltar para a fazenda. Se bem que tem vontade. Ele fica na casa do tio enquanto o pai vai até a loja do Atalaia comprar uma foice e uma enxada, ferramentas novas para melhor desempenho na roça.

No rádio sintonizado em uma emissora de São Paulo o locutor intercala músicas natalinas com o incentivo ao consumismo. Aqui está o seu presente para quem você ama. Ele fica a imaginar como seria bom ter um rádio. Corrutela pequena não tem emissora de rádio. Sintonizam no povoado apenas emissoras de São Paulo, do Rio e de Uberlândia. O turco da esquina tem um rádio grande, diferente daquele do tio. Ele pega até uma tal de Síria ou Palestina.

Jurandir não tem rádio em casa. Nunca tivera. A avó e os tios da fazenda também não. Rádio é artigo de luxo para a família. O tio que mora na corrutela não tem terras mas tem um bom emprego no Estado e ganha bem. É coletor de impostos. E pode até se dar ao luxo de, quando vai a cidade grande, comprar revistas. Sempre tem em casa a Manchete e a Cruzeiro. Que bom passar suas páginas! Muita coisa bonita, colorida.

A frase “feliz natal” Jurandir só vem a conhecer mais tarde, já no Grupo Escolar. Aprende a ler, escrever, contar e questionar. Questiona o mundo que acha injusto. Enquanto uns poucos têm tanto, muitos têm nada. Até o material escolar é diferente. Os lápis de cor de alguns alunos são grandes e de qualidade melhor que os lápis da maioria da classe. Alguns nem lápis têm. Pedem emprestado. E, por serem emprestados os lápis, as tarefas que dependem deles são feitas por último e às pressas. E, pela pressa da devolução, os cuidados, os caprichos são menores.

Jurandir é tímido, muito quieto, mas observador. Percebe as diferenças entre os colegas pelo vestuário, até pelo jeito de falar. Alguns vão pra escola de bicicleta. E ele até que os admira mas tem uma pontinha de inveja deles. Aquele filho do dono da farmácia, tem dia que vem de carro pra escola. Vem com a mãe. Pra que vir de carro pra escola, se a maioria vem a pé? Alguns, como é o caso dele, vêm até de fazendas.

Jurandir não maldiz a vida, embora discorde das disparidades existentes entre as pessoas. Ele, por exemplo, se conforma. Tem, pelo menos, lugar onde morar. Apesar de simples, é um verdadeiro lar. Ao final de qualquer dia tem para onde voltar. Há pessoas que nem moradia tem.

Outra música ecoa do rádio do tio e com essa Jurandir reforça seu questionamento. Ele observa umas e outras frases, ainda que não sequenciais. Uma: “Papai Noel vê se você tem / a felicidade / pra você me dar.” Outra: “Eu pensei que todo o mundo fosse filho de papai Noel.” E outras e outras: “A felicidade é brincadeira de papel.” E ainda: “Ou que a felicidade é brinquedo que não tem”.

Ao voltar para casa Jurandir leva na cabeça um misto de sonhos e de decepções. Mas de uma coisa está certo. Irá estudar com seriedade para, quando adulto, possa ter um lar como aquele descrito na cartilha do Grupo Escolar. Seus filhos não haverão de passar fome como a ele passou no ano em que o pai vendera a roça de arroz e milho e não recebera o devido pagamento, fazendo com que a família ficasse sem o que comer; não terão seus filhos que fabricar seus próprios brinquedos de buriti e carretel ou cana de milho; que eles possam ter brinquedos modernos sem que, para isso, tenham que quebrar um osso qualquer; poderão até ter rádio em casa, como o tio Astolfo, talvez até televisão como aquela da revista; poderão ter cama boa, de molas como na casa da tia Virgínia, e não aquelas tábuas sobre estacas e colchão de palhas de milho como a dele e dos pais; seus filhos não haverão de ter que assoprar brasas para acender o fogo em lenha úmida, haverão de ter até fogão a gás; não terão q ue buscar água da fonte do buraco junto ao córrego, poderão até ter água encanada ou cisterna com bomba; não terão que tomar banho de balde e caneca; ao contrário, hão de ter banheiro com chuveiro; e o Natal há de ser mais que simples música no rádio do tio.

Fontes:
Texto enviado pelo autor
Imagem = http://jardimdeurtigas.blogspot.com

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