quarta-feira, 13 de julho de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) IX - Tia Nastácia


Enquanto conversavam, Tia Nastácia, sempre à distância, rezava, e volta e meia fazia um pelo-sinal.

— Como deram com ela aqui? — perguntou São Jorge, pondo os olhos na pobre negra.

Foi Emília quem respondeu.

— Ah, santo, Tia Nastácia é a rainha das bobas. Veio conosco enganada. Cheirou o pirlimpimpim pensando que era rapé...

São Jorge quis saber o que era rapé e pirlimpimpim, e muito se admirou das prodigiosas virtudes do pó mágico. Depois fez sinal à Tia Nastácia para que se aproximasse.

— Venha, boba! — animou Emília. -— Ele não espeta você com lança. É um santo.

Tia Nastácia fez três pelo-sinais todos errados, e foi se aproximando, trêmula e ressabiada. Estava ainda completamente tonta de tantas coisas maravilhosas que vinham acontecendo. O dragão, o sumiço que levaram o Visconde e o burro, aquele prodigioso santo vestido de armadura de ferro, com capacete na cabeça, escudo no braço e “espeto” em punho — e lá no céu aquela enorme “lua” quatro vezes do tamanho do Sol — tudo isso era mais que bastante para transtornar a sua cabeça pelo resto da vida.

Mesmo assim veio toda a tremer, com os beiços pálidos como de defunto.

— Não tenha medo — disse-lhe Narizinho. — São Jorge não come gente. É um grande amigo nosso e muito boa pessoa.

Tia Nastácia afinal chegou-se — mas embaraçadíssima. Tinha as mãos cruzadas no peito e os olhos baixos, sem coragem de erguê-los para o santo. Estar diante dum santo daqueles, tão majestoso na sua armadura de ferro, era coisa que a punha fora de si.

— Não tenha medo de mim — disse São Jorge sorrindo. — Diga-me: está gostando deste passeio à Lua?

O tom bondoso da pergunta fez que a pobre negra se animasse a falar.

— São Jorge me perdoe — disse ela com a voz atrapalhada. — Sou uma pobre negra que nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar na cozinha para Dona Benta e estes seus netos, que são as crianças mais reinadeiras do mundo. Eles me enganaram com uma história de rapé do Coronel Teodorico, o compadre lá de Sinhá Benta, e me fizeram cheirar um pó que mais parece arte do canhoto. Agora a pobre de mim está aqui nesta Lua tão perigosa, sem saber o que fazer nem o que pensar. Minha cabeça está que nem roda de moinho, virando, virando. Por isso rogo a São Jorge que me perdoe se minhas humildes respostas não forem da competência e da fisolustria dum santo da corte celeste de tanta prepotência...

Todos riram-se. A pobre preta achava que diante dos poderosos era de bom-tom “falar difícil”, e sempre que queria falar difícil vinha com aquelas três palavras, “competência”, “prepotência” e “fisolustria”. Ela ignorava o significado dessas coisas, mas considerava-as uns enfeites obrigatórios na “linguagem difícil”, como a cartola e as luvas de pelica que os homens importantes usam em certas solenidades.

— Fale simples, como se você estivesse na cozinha lá de casa — disse Narizinho. — Do contrário encrenca, e São Jorge até pode pensar que você lhe está dizendo desaforos...

— Credo, sinhazinha! — exclamou Tia Nastácia benzendo-se com a mão esquerda. — Quem é a pobre de mim para dizer algum desaforo a um ente da corte celeste? Até de pensar nisso meu coração já esfria...

São Jorge teve dó dela. Viu que se tratava duma criatura excelente, mas muito ignorante — e deu-lhe umas palmadinhas no ombro.

— Sossegue, minha boa velha. Não se constranja comigo. Vejo que sua profissão na vida tem sido uma só — cuidar do estômago de sua patroa e dos netos dela. Quer ficar aqui na Lua cozinhando para mim?

Aquela inesperada proposta atrapalhou completamente a pobre negra. Ficar na Lua ela não queria por coisa nenhuma do mundo, não só de medo do dragão como de dó de Dona Benta, que não sabia comer comidas feitas por outra cozinheira. Mas recusar um convite feito por um santo ela não podia, porque onde se viu uma simples negra velha recusar um convite feito por um ente da corte celeste? E Tia Nastácia gaguejou na resposta.

Vendo aquela atrapalhação, Narizinho respondeu em seu nome.

— Tia Nastácia fica, São Jorge — mas só por uns tempos. Nosso plano não é passear apenas na Lua. A viagem vai ser também pelas outras terras do céu. Queremos conhecer alguns planetas, como Marte, Vênus, Netuno, Saturno, Júpiter, e também dar um pulo à Via-láctea. Em vista disso, acho que podemos fazer uma combinação. Tia Nastácia fica cozinhando para o senhor enquanto durar a nossa viagem. Quando tivermos de voltar para a Terra, portaremos de novo aqui e a levaremos. Não fica bem assim?

— Ótimo! — exclamou o santo. — Está tudo assentado. Durante o passeio que vocês pretendem fazer, Tia Nastácia ficará sob minha guarda, cozinhando para mim. Quanto ao dragão, ela que descanse. O meu dragão está muito velho e inofensivo. Lá na Terra comia até filhas de reis — mas aqui vive só de brisas. Não haverá perigo de nada.

Depois de tudo bem assentado, São Jorge foi mostrar à pobre preta onde era a cozinha, deixando-a lá com as panelas. E foi desse modo que à medrosa Tia Nastácia aconteceu a aventura mais prodigiosa do mundo: ficar como cozinheira dum grande santo, lá no fundo duma cratera da Lua...
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Continua … X – Mais Vistas da Terra
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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