sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Marcelo Spalding (O Gato diz Adeus)


O romance contemporâneo, a grosso modo, tem duas vertentes fundamentais: a conteudista e a formalista. À primeira pertencem aqueles romances nos quais a história contada é o mais importante, com enredos claros e bem elaborados, enquanto que, na segunda, o mais importante é a forma com que se conta, não havendo necessariamente um enredo ou uma "historinha" que leve o leitor adiante. Os grandes romances, porém, são aqueles que encontram um ponto de equilíbrio entre forma e conteúdo, como Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Porque, quando a balança pende demais para um lado ou outro, temos o risco de um romance despretensioso, em que a história carrega um texto fraco, ou de um romance estéril, feito para um restrito público de intelectuais preocupados estritamente com as questões técnicas.

Leite derramado, mais recente romance de Chico Buarque, é um bom exemplo de um tipo de literatura que beira o experimentalismo, construindo o romance não em formato linear, mas como uma teia em que os fatos aos poucos vão se ligando e formando o enredo por trás do narrado, sem cair na esterilidade do puramente estético. Há, ali, conflitos e personagens que aos poucos vão surgindo e revelam ao leitor mais atento questões sociais muito além dos problemas particulares do protagonista. Mas não tente resumir a história do romance ou explicar sua temática de forma apressada, pois cada capítulo, cada frase e cada palavra foram construídos dentro de uma lógica maior, cerebral, formal.

Também é assim o quarto livro de Michel Laub, O gato diz adeus (Companhia das Letras, 2009, 80 págs.). Romance conciso, "recupera, com um tom que varia entre a frieza, a ironia e o ódio, a trajetória de dois casamentos ― um que termina, outro que tenta começar ― e suas consequências ― a paternidade, o abandono, os sentimentos de perda e culpa", segundo definição da orelha do próprio livro. Mas não espere encontrar este enredo de forma simples, clara e sequencial no livro, pois a narrativa alterna a voz de quatro personagens: Sérgio, um voyeur, escritor e professor universitário; Márcia, uma atriz casada com Sérgio que depois o deixará para ficar com Roberto; o próprio Roberto, também professor universitário que se verá envolvido na trama de Sérgio; e Andreia, apresentada inicialmente como leitora do livro, estudante de Letras e aluna de Sérgio, mas que se revelerá uma personagem fundamental para o romance.

Como temos quatro narradores distintos, em O gato diz adeus não há um enredo definitivo, uma história com claro começo, meio e fim, ainda que dispersos na forma de teia, como em Leite derramado. Temos, isso sim, quatro versões de uma história, quatro pontos de vista por vezes contraditórios e sempre incompletos. O risco, como bem aponta resenha de Daniel Benevides publicada na Bravo!, é que O gato diz adeus sofra do "mal de Montano, aquela 'doença' diagnosticada pelo espanhol Vila-Matas, cujo sintoma é certa palidez das emoções e a insistente rendição ao exercício estritamente literário".

Para começar, as personagens da própria narrativa são escritores, professores universitários, estudantes, o tipo de leitor a que se destina um romance experimental como o de Laub. Nesse sentido, logo o romance se revela também metalinguístico, pois ficamos sabendo que Sérgio, após seu livro de estreia ― "que teve meia dúzia de resenhas, e foi traduzido para meia dúzia de países, e esgotou a primeira edição em meia dúzia de anos" ―, publicou um romance contando sua história chamado, adivinhe, "O gato diz adeus".

O livro que lemos, então, torna-se personagem da própria história, mas ao livro supostamente escrito por Sérgio, composto pelas partes narradas por ele, soma-se também as intervenções de Roberto, de Márcia e de Andreia, intervenções essas que depois saberemos serem de tempos completamente distintos, numa clara opção pela técnica polifônica em detrimento da verossimilhança dos fatos. Como podemos estar lendo as intervenções de Márcia e Andreia ao mesmo tempo, como se tivessem sido escritas no mesmo momento?, se pergunta o leitor ao final do romance.

Não será essa, é claro, a única pergunta que o leitor irá fazer ao final do livro. Ocorre que o conflito principal, relacionado à paternidade da filha de Márcia, não receberá um desfecho, permanecendo em suspenso e emaranhado nas muitas versões que temos (diferentemente de Dois Irmãos, que narra a tentativa de Nael descobrir seu pai até o momento em que ele desiste da busca, terminando aí o romance, em O gato diz adeus a interrupção é da obra, não da personagem). Dessa forma, sequer a tragédia anunciada nos primeiros capítulos se concretiza para o leitor, à medida que os acontecimentos trágicos estão num tempo fora da história e seus efeitos já parecem sacramentados e, até, perdoados pela única que poderia perdoá-los.

Mas não parece que Michel Laub esteja mesmo preocupado em responder esse tipo de questão tão banal aos leitores. Enredar, surpreender, sugerir, jogar com o leitor parecem preocupações mais condizentes a um escritor que usa como protagonista outro escritor, a um livro que é também parte do próprio livro, a um romance que no final revela obras que o influenciaram.

Ao fim e ao cabo, o que fica do livro são belas imagens e algumas belas passagens que revelam a qualidade do autor por trás do jogo formal, como esta em que uma das narradoras, Andreia, sintetiza com maestria um irônico casamento "feliz", oposto ao narrado por Sérgio e Márcia:

"Eu me pergunto o que ele deixou de fora do livro. Fico imaginando se o casamento era apenas aquelas brigas. Se em algum momento os dois não baixavam a guarda. Duvido que isso não acontecesse, que eles não fossem vez que outra ao cinema ou visitar um amigo, que não andassem de carro pela cidade comentando as vitrines das lojas e as pessoas na calçada, que também não fossem capazes de ficar em casa à noite ocupados cada um com suas coisas, ele no escritório, ela cozinhando, e quando os dois estavam bem ela vinha até ele perguntar alguma coisa sobre o tempero da comida, e depois os dois jantavam e ele dizia algo engraçado e ela contava alguma história e os dois terminavam e ouviam um pouco de música e ficavam até tarde conversando no sofá que os dois tinham escolhido e iam para a cama quando a vizinhança e a cidade inteira já estava em silêncio".

Fonte:
Digestivo Cultural

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