segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte I


CAMBIANTES

SUPREMO ANSEIO

Esta profunda e intérmina esperança
Na qual eu tenho o espírito seguro,
A tão profunda imensidade avança
Como é profunda a idéia do futuro.

Abre-se em mim esse clarão, mais puro
Que o céu preclaro em matinal bonança:
Esse clarão, em que eu melhor fulguro,
Em que esta vida uma outra vida alcança.

Sim! Inda espero que no fim da estrada
Desta existência de ilusões cravada
Eu veja sempre refulgir bem perto

Esse clarão esplendoroso e louro
Do amor de mãe -- que é como um fruto de ouro,
Da alma de um filho no eternal deserto.

APÓS O NOIVADO

Em flácido divã ela resvala
Na alcova -- bem feliz, alegremente,
E o fresco penteador alvinitente,
De nardo e benjoim o aroma exala.

E o noivo todo amor, assim lhe fala,
Por entre vibrações do olhar ardente:
Pertences-me afinal, pomba dormente
Parece que a razão de gozo, estala.

Mas eis -- corre-se então nívea cortina:
E a plácida, a ideal, a branca lua
Derrama nos vergéis a luz divina...

Depois... Oh! Musa audaz, ousada, e nua,
Não rompas esse véu de gaze fina
Que encerra um madrigal -- Vamos... recua!...

DORMINDO...

Pálida, bela, escultural, clorótica
Sobre o divã suavíssimo deitada,
Ela lembrava -- a pálpebra cerrada --
Uma ilusão esplendida de ótica.

A peregrina carnação das formas,
-- o sensual e límpido contorno,
Tinham esse quê de avérnico e de morno,
Davam a Zola as mais corretas normas!...

Ela dormia como a Vênus casta
E a negra coma aveludada e basta
Lhe resvalava sobre o doce flanco...

Enquanto o luar -- pela janela aberta --
-- como uma vaga exclamação -- incerta
Entrava a flux -- cascateado -- branco!!...

NERAH

(Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea)
A Vítor Lobato

Nerah não brinca mais, não dança mais. -- E agora
Que vão-se apropinquando os tempos invernosos,
Nerah traz uns receios tímidos, nervosos,
De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
Se vão embora, embora à vinda dos invernos,
Seguindo em debandada os úmidos galernos --
-- lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola,
Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
De um riso -- aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de interjeições!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.

AMOR

Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos
à fresca exalação salúbrica das flores...

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor -- na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...

ESCRAVOCRATAS

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados -- bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar -- formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos a espinha -- enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário --
Da branca consciência -- o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido -- audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro -- ouvindo-vos urrar!

DA SENZALA...

De dentro da senzala escura e lamacenta
Aonde o infeliz
De lágrimas em fel, de ódio se alimenta
Tornando meretriz

A alma que ele tinha, ovante, imaculada
Alegre e sem rancor,
Porém que foi aos poucos sendo transformada
Aos vivos do estertor...

De dentro da senzala
Aonde o crime é rei, e a dor -- crânios abala
Em ímpeto ferino;

Não pode sair, não,
Um homem de trabalho, um senso, uma razão...
e sim um assassino!

DILEMA
Ao cons. Luís Alvares dos Santos

Vai-se acentuando,
Senhores da justiça -- heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade...
E quando, em breve, quando

Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis -- batendo o preconceito...
O dia da razão, da luz e do direito
-- solene trilogia --

Quando a escravatura
Surgir da negra treva -- em ondas singulares
De luz serena e pura;

Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!

À REVOLTA

A Cassiano César

O século é de revolta -- do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite --
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua -- estético -- mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... -- Trabalhar a luz da idéia nova!...
-- Pois bem! Seja a idéia, quem lance o vício à cova,
-- Pois bem! -- Seja a idéia, quem gere e quem fulmine!...

ESCÁRNIO PERFUMADO

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas -- isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

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