sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Júlia Lopes de Almeida (Amuletos)


Foi numa das sextas-feiras da Matilde Abranches, que o seu médico, rapaz aliás simpático, afirmou que os homens são maus por culpa das mulheres...

Os dedos de Cecília desfolhavam as notas levíssimas de Ma barque légère e a meu lado Lídia sorvia o aroma de um botão de rosa. Bem comparado, fez-me lembrar um quadro ideal de Diana Cid; Lídia também estava de azul, como a formosa do "Perfume".

— Por culpa das mulheres?! Perguntou a voz empapada de uma mãe de família, que tem por hábito tomar a sério todas as conversas.

— Como desde o princípio do mundo. Agora então a influência da mulher é nefasta. A nossa sociedade cai rapidamente da sua modesta franqueza, que a fazia encantadora, para um esnobismo que a torna ridícula. A preocupação do chic estraga tudo. As portas já se não abrem como antigamente, e procuramos termos para as conversas mais simples!

Não há naturalidade nem há simplicidade. A virtude das mulheres, que era para as nossas culpas, como um tronco profundamente enraizado é para as lianas frágeis — um sustentáculo que as eleva e ampara, sente-se abalada e já não nos inspira a confiança de outrora.

Como para Bruto, para mim a Virtude não é mais que uma palavra. Bebemos todos do veneno. Agora só o dilúvio.

— Que mal lhe teriam feito as mulheres, sempre gostaria de saber...

— Estragam tudo com a sua imprudência, a sua coquetterie e o seu fanatismo. Basta olhar para uma mulherzinha moderna para a gente perceber que se preocupa com feitiços e é supersticiosa. A quantidade de figas e de amuletos que
traz ao pescoço, bem o prova. Em vez de nos ensinarem a sermos simples e cordatos, tornam a vida cada vez mais complexa e difícil.

— Exemplo?

— Nas mínimas coisas ele aparece. Vá o exemplo: convidam-nos para um jantar familiar e dão-nos um banquete em que vagueiam perfumes de flores caras e cheiros de molhos complicados. Aquilo não é o trivial: logo, aquele não é o jantar familiar. Quem ordenou e determinou o menu, não foi certamente o dono, mas a dona da casa. Portanto a atmosfera de falsidade que se respira naquela casa amiga, foi criada pela mulher.

— Ora aí está! São os nossos maridos que trazem dos hotéis e das festas a que assistem a exigência desses molhos complicados, dessas floreiras odoríferas do champagne ruinoso e dos cristais variegados das mesas ricas. São eles que nos sugerem novidades de serviço; e vêm os senhores depois pôr a ridículo a nossa pretensão! Geralmente não somos nós que compramos a prataria e as porcelanas.

Que sabemos nós, as mulheres?

— O que adivinham. Oh! E o que as mulheres adivinham! Conheço uma que, sem ter ouvido uma única confidência, sabe que uma certa pessoa evita encontrá-la, porque é vê-la e logo nessa noite perder ao jogo!

— Esse alguém é o senhor. Vê? São os homens que jogam, que ficam amáveis se ganham ou mal humorados se perdem, que tem estragado a nossa alegria. Mas sempre quero agora que me explique: o senhor, que se ri das quatro folhas de trevo e dos corcundinhas de coral que trazemos ao peito, porque foge de cumprimentar uma senhora amiga só pelo receio de que esse encontro fortuito e rápido lhe traga o azar da fortuna?

— Males de raça, minha senhora, coisas que ficam da infância. De algum modo precisamos mostrar que já fomos crianças. Creia que eu até adoro essa senhora!

— Adora-a e evita-a!

— Mas se ela tem jetattura!

— Use então de um expediente: Quando a vir, pegue em qualquer objeto de ferro. Uma chave, por exemplo. Não traz uma chave consigo?

— É bom?

— É magnífico!

— Não sabia!

A conversa embarafustava por um terreno amável.

D. Matilde confessou que deixara de se vestir de azul, porque essa cor lhe trazia infelicidade. D. Joana citou uma amiga que usava uma liga de cada cor, como portebonheur. Quase todos os presentes tinham a sua mania... Voltou-se então alguém para o velho e sério dr. Braga e perguntou com um rasinho de dúvida:

— O senhor também usa dessas coisas?

Ele tirou do bolso um caquinho de vidro azulado e disse com seriedade:

— Isto. Podem examinar.

O pedacinho de vidro andou de mão em mão; olharam todos por ele para a luz e concordaram em que não seria fácil encontrar outro tão ordinário!

Dr. Braga explicou:

— Pois, minhas senhoras e senhores, isto não é um simples amuleto, mas um talismã.

— Ainda há disso?!

— Há. Este chama-se o olho da tolerância. Infelizmente, para se ver bem por ele é preciso ter-se passado dos quarenta anos, ter-se gasto o bestunto em muitas observações e curvado a cabeça a duras exigências da sorte... O olho da tolerância, antes de censurar ou de punir a culpa, penetra-lhe a causa, mais disposto a absolve-la que a castigá-la... Tem a consciência da fragilidade da alma. Antigamente eu sentia como um romancista filósofo que disse: "plus j'aime l'humanité, plus je déteste l'individu." Hoje não; o indivíduo delinqüente é para mim um irmão fraco que devo amar de preferência, porque todas as suas impurezas são conseqüentes de males, de cuja origem não é só ele o responsável. O olho da tolerância acalma o sistema nervoso e exercita o coração na prática do bem. Quando me sinto arrastar pela indignação ou a cólera contra alguém, respiro com força, saco deste caquinho, domino-me, e, para abater o ímpeto, olho através do vidro, reflito, e uma grande piedade vem substituir o meu primeiro movimento de fúria. Ah! Minhas senhoras, é que não há nada como a tolerância para dar repouso à inquietação das almas!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

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