sábado, 1 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) VIII – A Luz que se Apaga


CAPITULO VIII
A Luz que se Apaga


No dia seguinte, logo pela manhã, soou-me aos ouvidos uma novidade desagradável. Não passara bem a noite o professor Benson.

— Estou velho, meu caro senhor Ayrton, disse-me ele ao encontrar-se comigo. Já sinto cá dentro a máquina funcionar com esforço. Jane ignora o meu estado, mas a pobre menina não me terá por muito tempo na terra. Ficará só. Dei-lhe, entretanto, tal educação, e possui ela tais qualidades de caráter, que morrerei feliz. Saberá agir no mundo como se contasse sempre comigo.

Veio-me aos lábios um ímpeto de confidência. Quis apresentar-me ao professor como o braço forte que se oferecia a miss Jane quando o de seu pai viesse a faltar. Contive-me a tempo. Lembrei-me da minha insignificância e do pouquíssimo que eu ainda era naquele lar. Limitei-me, pois, a confirmar as idéias do velho em relação á filha, dizendo:

— Pelo que com ela conversei ontem tive a mesma impressão. É miss Jane uma criatura superior, uma madame Curie capaz de prosseguir nos trabalhos de seu pai, se o quiser.

— Jane o quereria talvez, mas não posso consentir nisso. Bastam-lhe, para lhe encher a vida, as visões que já teve e a superioridade que adquiriu conhecendo o futuro próximo. Isso lhe permitirá por-se a salvo das contingências da necessidade. Possui Jane um caderninho onde anotou a cotação dos principais valores de bolsa nestes próximos cinquenta anos. Está assim habilitada a ser detentora do dinheiro que quiser. O dinheiro ainda é tudo para os homens. O estranho dote que deixo á minha filha se resume nesse caderninho de notas... Mas conheço Jane. Extremamente imune ás ambições que atormentam o comum das mulheres, levará um viver apagado, sem exterioridade, toda entregue á vida cerebral, que a tem intensíssima.

O professor fez uma pausa, como se o esforço daquelas confidencias o tivesse cansado. Depois, disse:

— Realizei o que jamais sonhara nos delirantes sonhos da minha mocidade — e me vejo forçado a levar para o tumulo o grande segredo... Jane não o revelará a ninguém e ainda que o faça não estará na posse da solução técnica. O senhor Ayrton, única testemunha presencial de tudo, também o não revelará a ninguém.

— Proibe-mo, professor?

— Não, não proíbo, já disse. Mas se algum dia tiver a ingenuidade de o revelar a alguém, passará por louco, e se insistir, por louco varrido, dos que os homens metem nos hospícios. O instinto de conservação e de sociabilidade é que o vai impedir de revelar o que está vendo aqui.

Miss Jane entrou nesse momento e notei que o velho sábio se contrafazia diante da moça para não denunciar o seu estado de saúde. Apesar disso ela observou.

—Um pouco pálido, meu pai...

—Sim, mas estou perfeitamente bem. Temos aqui o senhor Ayrton e compete a ti, minha filha, organizar o programa do dia. Pouco posso acompanhá-los. Uma delicada experiência vai absorver-me por algumas horas.

Miss Jane olhou-me com os seus lindos olhos claros e disse:

— Escolha, senhor Ayrton. Ontem foi a teoria, hoje começa a ser a pratica. Vai estudar uns córtex. Escolha um momento da vida futura que o interessa.

Miss Jane estava linda como uma rosa desabrochada naquela manhã na roseira próxima do meu quarto. Meus olhos envolveram-na num véu de enlevo e se o coração pudesse falar ter-lhe-ia eu dito que só me interessava o presente nela concentrado. Mas respondi de outro modo.

—Sou um leigo em matéria de futuro, miss Jane, e nem escolher posso. Deixo isso ao seu inteligente critério.

—Não tem vontade de ver o que se passará aqui, neste lugar onde estamos, no ano 3000?

—Já fizeste esse corte, Jane, interveio o professor.

—Fiz, sim, meu pai, mas será curioso repeti-lo para o senhor Ayrton.

—Perfeitamente, concordei. Ha sempre mais interesse para nós em ver assim futurizado um ponto nosso conhecido do que um desconhecido.

— Pois então, resolveu o professor Benson, comecem por aí e não contem comigo. Vou trabalhar.

Ergueu-se e saiu. Miss Jane acompanhou-o até á porta e ao tornar me disse:

— Acho meu pai um tanto abatido hoje. Já está nos setenta anos e velhice é doença...

Uma nuvem de melancolia sombreou-lhe os lindos olhos azuis e um breve suspiro lhe escapou do peito. Também eu no intimo me sombreei de tristeza, embora mentisse exteriormente, nesse intuito de consolação fácil que tais lances impõem.

— Qual! Exclamei. O professor é rijo. E com a vida calma que leva ainda viverá muito.

— Assim seja, murmurou Miss Jane, porque não sei o que será de mim sem ele. Acho-me tão identificada com meu pai...

Arrisquei urna pergunta indiscreta:

— Nunca pensou em casamento, miss Jane?

A moça entreparou, olhando-me entre admirada e divertida.

— Casamento? Ora que coisa interessante, senhor Ayrton!... Ha de crer que é a primeira vez que tal palavra soa nesta casa? Ca-sa-men-to!...

E repetiu-a diversas vezes como se repetisse uma palavra de som esquisito e nunca antes pronunciada.

— Sim, continuei eu, todas as moças se casam. O amor um dia vem e...

Miss Jane permaneceu alheada, como entregue a profundas cogitações interiores.

— "Todas as moças"... repetiu. Mas serei eu moça? Nunca me analisei, senhor Ayrton. Minha vida tem sido voar de século em século por esse futuro afora em companhia de meu pai. Sinto que sou apenas um espírito que observa e possui meios de visualizar o que está fora do alcance humano. Será isso ser moça? Amor?... Que é amor, senhor Ayrton? O seu vocabulário é tão novo para mim como deve ser para o seu espírito esta nossa mentalidade futurista. Mas vamos ao que serve. É tempo de operar um corte.

Miss Jane dirigiu-se ao gabinete do porviroscopio e eu acompanhei-a, tomado de espanto diante de um ser tão alheio ao seu tempo e á sua condição. Lá fora, amor e casamento constituem a obsessão única de todas as mulheres. Em criança, brincam de casar as bonecas. Núbeis, cuidam exclusivamente de casar a si próprias.

Velhas, cuidam de casar ou descasar as outras. Havia, pois, uma mulher no mundo, e formosíssima que não só não pensava em amor e casamento mas á qual tais expressões soavam como vozes inéditas... Era simplesmente prodigioso!

Diante do porviroscopio ela se deteve e depois de algumas explicações me fez colocar no ano 3000 o ponteiro. Em seguida viu num mapa a situação geográfica do ponto onde nos achávamos e ensinou-me a mover o ponteiro marcador das latitudes e longitudes.

— Pronto! exclamou. Basta agora abrir esta válvula. A corrente envelhecerá de 1074 anos, que são quantos vão do em que estamos ao ano 3000. Envelhecerá e nos dará sinal disso automaticamente. Mas como o envelhecimento de cada ano consome um minuto, teremos... Tomou de um lápis e calculou, rápida.

— Teremos de esperar 17 horas e 54 minutos. O relógio marca as nove e, pois, só conseguiremos ter cá o ano 3000 ás nossas ordens entre meia noite e uma da madrugada. Estou afeita a estas observações a qualquer hora da noite, mas não sei se para o senhor Ayrton não será incomodo...

— Absolutamente não. Só lamento não poder satisfazer já, já, a minha curiosidade. Ver um pedaço da nossa terra no ano 3000, que portentosa maravilha! Diga-me alguma coisa, miss Jane, do que me vai ser revelado...

— Não. Não quero prejudicar a sua surpresa. Prefiro falar de aspectos que vi em outros tempos e outros países.

Lances ha na vida absolutamente indeléveis. Essa tarde que passei com a filha do professor Benson, a ouvir-lhe as revelações do futuro, como esquecê-la jamais? Não poderei reproduzir aqui tudo quanto ela me disse; seria compor um catalogo sem fim. A invasão mongólica, o feroz industrialismo da Europa mudado em contemplativismo asiático, a evolução da America num sentido inteiramente inverso... quanta coisa formidável! Mas nada me interessou tanto como o drama do choque das raças nos Estados Unidos.

— Esse choque, disse miss Jane, deu-se no ano 2228 e assumiu tão empolgantes aspectos que reduzido a livro dá uma perfeita novela. Não sei se o senhor Ayrton é literato...

— Já fiz um soneto na idade em que todos desovam sonetos...

— Pois se não é poderá tornar-se. O principal para uma novela é ter o que dizer, estar senhor de um tema na verdade interessante. Ora, eu fornecerei os dados dessa novela e o senhor Ayrton terá oportunidade ótima para apresentar-se ao mundo das letras com um livro que a critica julgará ficção, embora não passe da simples verdade futura.

A idéia sorriu-me, e todo me lisonjeei com a opinião que miss Jane fazia das minhas capacidades artísticas.

— Quer tentar? insistiu ela. Contar-lhe-ei com a máxima fidelidade o que vai passar-se. De posse desse material, e depois de pessoalmente fazer vários cortes que o ajudem a formar idéia justa do ambiente futuro, atirar-se-á á tarefa. Desde já asseguro uma coisa: sairá novela única no gênero. Ninguém lhe dará nenhuma importância no momento, julgando-a pura obra da imaginação fantasista. Mas um dia a humanidade se assanhará diante das previsões do escritor, e os cientistas quebrarão a cabeça no estudo de um caso, único no mundo, de profecia integral e rigorosa até nos mínimos detalhes.

— Realmente! exclamei. Será romance como os de Wells, porém verdadeiro, o que lhe requintará o sabor. Quanta novidade!

— Os leitores andarão pulando de surpresa, e estou já a imaginar as caras de espanto que hão de fazer quando o senhor Ayrton falar, por exemplo, da cirurgia do doutor Lewis.

— Quem era?

— Oh, um mágico da anatomia, o primeiro que praticou o desdobramento do homem.

Franzi os sobrolhos.

— Desdobramento da personalidade? perguntei.

— Sim, mas desdobramento anatômico. O doutor Lewis, sábio que começou a surgir em 2201, teve a idéia de romper com o plano simétrico do corpo humano. Possuímos dois olhos e dois ouvidos que agem como a parelha de cavalos a puxar no mesmo rumo o carro. Lewis alterou isso. Por meio dum delicado processo cirúrgico, desligou — desxifopagou os nervos óticos e auditivos, dando autonomia aos dois ramos. Conseguiu destarte que o "desdobrado" pudesse ver uma coisa com o olho direito e outra com o esquerdo, e também ouvir ás duplas, com a audição assim desligada.

Miss Jane fez breve pausa, como a recordar. Depois disse:

— Lembro-me que no escritório do Intermundane Herald observei o primeiro desdobrado em ação, primeiro e único aliás.

— Intermundane Herald, miss Jane? Cheira-me isso a psiquismo...

— E cheira certo. Era um jornal de radiação metapsiquica, que veio atender á velha sede de liame com os vivos que os mortos sempre manifestaram. Em vez das pobres almas penadas andarem pelo mundo em busca de mesinhas falantes e médiuns, único meio que possuem hoje de conversar conosco, liam o Intermundane Herald.

— E como se manifestavam? Pois não posso crer que também colaborassem nesse jornal...

— Disso se encarregava a Psychical Corporation, dona de grande estação central de Detroit. Afluíam os espíritos para ali e chamavam os vivos pela linha metapsicotonica internacional, como hoje nos chamamos pela linha telefônica.

O meu assombro era grande, embora tocado de uma pontinha de desconfiança. Estaria miss Jane a mangar comigo? Olhei-a firme nos olhos. A lealdade que neles vi era a mesma de sempre.

— Mas, continuou ela, voltando ao meu homem desdobrado direi que pude observá-lo em ação no escritório do Herald. Estava á mesa de trabalho, a examinar com o olho direito uma gravura antiga e a consultar uma tabua de logaritmos com o esquerdo. Ao mesmo tempo ouvia a musica da moda com o ouvido direito e com o esquerdo atendia a um colaborador do jornal. Ocupava-se em quatro coisas diversas, valendo assim por quatro homens não desdobrados.

— H4...

— E não ficava nisso. Era bem um Homo elevado, não á quarta, mas á sexta potencia, porque ainda recolhia a queixa dum dos espíritos leitores do Herald — espírito rabugento, a avaliar por certos ímpetos nervosos da mão que estenografava.

— E com a outra mão que fazia?

— Alisava meigamente um gatinho que lhe sentara no colo.

Encarei-a de novo, firme. Miss Jane não piscou. Logo, era verdade. A experiência dos olhos que piscam sempre me pareceu infalível na pesca dos potoqueiros.

— Mas não foi coisa que se generalizasse, continuou a moça. A ruptura por intervenção humana dos planos normais da natureza nunca foi bem sucedida. Sobrevinham sempre complicações imprevisíveis á argúcia dos sábios, e irremediáveis. Esse pobre desdobrado, por exemplo, acabou logo depois de maneira trágica. Em vez de persistir na sua sexta potencia, empastelou-se, confundiu-se e acabou não sendo nem sequer um homem apenas, como antes da operação. A mais horrorosa demência veio destruir aquela obra prima da cirurgia de 2228. Por esta amostra vê o senhor Ayrton quantos episódios interessantes podem enriquecer a sua
novela, concluiu miss Jane.

Fiquei de olhos parados, a cismar.

— Outra coisa que muito me maravilhou foi o Teatro Onírico, prosseguiu ela.

— Que?

— O teatro dos sonhos.

— Fiquei na mesma...

— Descobriu-se um processo de fixar na tela os sonhos, como hoje o cinematografo fixa em filmes o movimento material. E dada a riqueza do nosso subconsciente, mar donde emana o sonho, e mar profundo do qual a consciência não passa da exígua superfície, pode o senhor Ayrton imaginar que maravilhosas representações não se davam nesse teatro. Nem as Mil e Uma Noites, nem Edgard Poe — nada valia um só desses espetáculos onde o contra-regra se chamava Imprevisto. Tornou-se a arte suprema, a mais deleitosa de toda — e ainda uma ciência. A alma humana só deixou de ser o enigma que hoje é depois que pôde ser assim fotografada em suas manifestações de absoluta nudez. Até então apenas lhe conhecíamos as manifestações vestidas pela Censura, isto é, as suas atitudes.

Miss Jane pausou um bocado, enquanto eu refervia. Era de maravilhar a transformação que se operava em mim! Vinte dias antes eu não passava de modesto empregado de rua duma casa comercial — e estava agora na iminência de tornar-me autor de um livro assombroso, capaz de cobrir meu nome de gloria. A idéia desvairou-me e a novela principiou a formar-se-me nos miolos com fragmentos de romances lidos em rodapé de jornais. O começo do primeiro capitulo chegou a traçar-se de chofre em minha cabeça:

— "Era por uma dessas tardes calmosas de verão, em que o astro rei, rubro como um disco de cobre," etc.

Estava eu nesse devaneio quando um criado penetrou de surpresa no gabinete. Chamou de parte miss Jane e disse-lhe algumas palavras agitadas. Sem pedir licença a moça retirou-se com precipitação.

Fiquei atônito, sem saber o que pensar. Delicada e fina como era, se assim se retirava de minha companhia sem o clássico e sorridente "com licença" é que algo de grave ocorria. Fiquei na minha poltrona ainda uns dez minutos com o ouvido atento aos menores rumores, tentando decifrar o mistério. O silencio era absoluto; nem sequer se ouvia o zum-zum do cronizador a trabalhar. Consultei o relógio.

— Dez e quinze. A corrente já está no ano 2001, pensei comigo, ano que não alcançarei. Mas meu filho Ayrton Benson Lobo o alcançará.

Pus-me a sonhar, e os sonhos logo me acalmaram a inquietação produzida pela inexplicável retirada de miss Jane. Vi-me amado de tão gentil criatura e com ela casado. Por esse tempo já não fazia parte deste mundo o professor Benson. Setenta anos tinha ele; era natural que não durasse muito. Miss Jane ficava só na terra, sem relações sociais, sem sonhos de grandeza mundana. E não seria eu nessa época apenas o pobre diabo que era, triste ex-empregado dos senhores Sá, Pato & Cia. Seria um autor, um romancista! Os jornais dariam meu retrato e me tratariam de "ilustre homem de letras". Talvez até cavasse a Academia. Uma situação social, sem duvida, e das mais bonitas. Poderia aproximar-me da inconsolável menina e oferecer-me para seu companheiro de vida. Claro que miss Jane aceitaria o meu coração. Viagens depois, mundo a correr — Paris, New York. Levaríamos conosco o caderninho das cotações...

— "Olá, senhor corretor, compro mil ações da Niágara Falls Company!"

A piedade do corretor vendo esta carinha chupada de brasileiro amarelo comprar ações de uma empresa cuja bancarrota estava iminente! Sorri-se lá consigo e vende-mas, piscando o olho para os seus auxiliares. No dia seguinte noticia nos jornais: Uma jazida de platina encontrada nas terras da Niágara! As ações da companhia centuplicam de valor. Reapareço no escritório do corretor atônito a fumar um charuto imponente, e vingo-me do seu sorriso de véspera.

— "Hoje vendo, meu caro palerma. O brasileirinho amarelo hoje vende, sabe?..." E lá deixo de novo as ações da Niágara e embolso milhões sonantes... Compro em seguida um iate, o mais belo e cômodo que houver...

No meu sonho julguei ser o capitão do iate e ia responder-lhe com uma ordem — "Rumo a boreste!", quando ao pé de mim vejo miss Jane, muito transtornada de feições.

— Senhor Ayrton, meu pai passa mal! Venha ve-lo...

Corri atrás dela, tomado de negros pressentimentos. Penetrei no quarto do professor. Lá estava o bom velho no fundo da cama, muito desfeito, dando mais a impressão de um defunto que de um ser vivo.

— Quer que vá buscar um medico? exclamei ansioso ao aproximar-me do enfermo.

— Não, respondeu lentamente a voz cava e débil do professor. É inútil. Conheço o meu estado e sei que chegou o momento...

A moça atirou-se-lhe aos braços e cobriu-lhe o rosto de beijos convulsos.

— Boa Jane, disse ele, é hora de separar-nos. Tenho confiança em ti e espero que passado o rude momento te conformes com a situação, buscando conforto no estoicismo que te ensinei e de que te dei exemplo em vida. Há já algum tempo que me sentia mal. Ocultava-o a ti para evitar-te um sofrimento inútil. Mas esta noite percebi que chegara o fim. Quando te deixei no gabinete com pretexto de concluir um trabalho, iludi-te, ou, melhor, vim fazer um trabalho muito diverso do que poderias supor. Vim destruir a minha descoberta. Queimei toda a papelada relativa e desmontei as peças mestras dos aparelhos. O que resta nenhuma significação possui e não poderá ser restaurado. Desfiz em meia hora o trabalho de toda uma vida. Da minha invenção restam apenas as impressões que te ficaram na memória. E quando por tua vez morreres, tudo se extinguirá...

— Meu pai! exclamou Jane achegando o seu rosto afogueado á face descorada do velho.

— Teu pai, teu amigo, teu companheiro de trabalho...

Não pude conter-me diante do doloroso lance e grossas lagrimas brotaram-me dos olhos. O moribundo não esqueceu o hospede.

Volveu com esforço um olhar para o meu lado e disse em voz cada vez mais fraca:

— Adeus, Ayrton. O acaso o trouxe aqui para me ver morrer. Seja amigo de Jane. Adeus...

Um impulso atirou-me de joelhos ao pé do leito do moribundo; tomei-lhe as pálidas mãos e beijei-as tão enternecido como se beijara as de meu próprio pai.

— Adeus, Jane!... foram suas derradeiras palavras.

Fechou os olhos e imobilizou-se. Minutos mais tarde estava apagada a luz daquele cérebro, o mais potente que ainda desabrochou no seio da humanidade...

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continua… IX – Entre Sá, Pato & Cia. e Miss Jane

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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