terça-feira, 25 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XXIV– Crepúsculo


CAPITULO XXIV
Crepúsculo

O inesperado desenlace do drama negro da América deixou-me tonto por vários minutos. Depois que voltei ao normal miss Jane prosseguiu:

— No dia seguinte a essa noite trágica devia realizar-se a posse do 88.° presidente americano, James Roy Wilde, vulgarmente Jim Roy, negro de raça pura nascido em Sonora aos 23 de abril de 2188, doutor em ciências de governo pela Escola Técnica de Direção Social, despigmentado em 2201 e omegado vinte dias depois da vitoria nas urnas.

Lider inconteste da raça negra, para a qual sonhava um destino altíssimo, merecia ainda dos brancos um respeito semelhante ao que na velha Roma o patriciado conferia aos libertos de excepcional valor. Era Jim um liberto do pigmento.

O choque das raças fôra prevenido, o que valeu por nova vitoria da eugenia. A sociedade, livre de tarados, viu-se no momento do embate isenta dos perturbadores ao molde dos retóricos e fanáticos cujas palavras outrora impeliam as multidões aos piores crimes coletivos. A exasperação branca do primeiro momento breve desapareceu. O bom senso tomou pé e o ariano pôde filosofar com a necessária calma. A opinião corrente admitia não passar a vitoria negra de um curioso incidente na vida americana. Oriunda de cisão sexual do grupo ariano, fôra golpeada de morte no próprio dia das eleições pela adesão das sabinas ao Homo. O proximo pleito restabeleceria o ritmo quebrado e do incidente nada restaria no futuro além de um pouco mais de pitoresco na história da América — qualquer coisa como na serie dos papas, o pontificado da papisa Joana.

A serenidade dos brancos reforçava-se ainda na confiança que todos depositavam em seus lideres reunidos em convenção. Embora se ignorasse o que os chefes natos haviam decidido no concilio secreto, nem por sombras ninguém admitia que a ideia lá vencedora não fosse a mais eficiente e justa do ponto de vista racial.

Do outro lado os negros, passada a crise de entusiasmo do primeiro momento e dada a fé que lhes merecia Jim Roy, entraram mais a gozar as delicias do "omeguismo" do que a deslumbrar-se com uma vitoria política evidentemente precária. E assim a mais inesperada surpresa da vida americana não trouxe nenhuma das calamidades publicas que fatalmente acarretaria no passado — no tempo em que o desprezo da seleção humana deixava a sociedade encher-se de perigosíssimos bubões infecciosos.

Na véspera da posse de Jim, por precaução contra qualquer violência, Kerlog, de combinação com Abbot, fez irradiar a noticia do novo brinquedo inventado por esse encantador das crianças. Tratava-se de uma nova bonequinha que sabia dançar o tango da moda com perfeição de maravilhar a gente grande e mergulhar em êxtases de sonhos a criançada.

A criança tinha na América de 2228 uma importancia capital. Toda a vida do país girava-lhe em torno, Era a criança, além do encanto do presente, o futuro plasmavel como a cera. Os maiores gênios da raça se consagravam a estuda-la, para com tão ductil matéria prima irem esculpindo a obra única que apaixonava o americano — o Amanhã. E a tal grau chegou a afinação da Puericultura Estética, a sublime arte definida por John Leland, que uma imaginativa de hoje, desta época em que o homem, absorvido nos horrores da luta pelo pão, quasi ignora a existência da criança, nem de leve pode apreender o que significava em 2228 a Realeza do Baby. Realeza sim, como foi na velha França a dos últimos Luises divinizados. Em vez, porém, de toda a vida da nação revolutear em roda de um pachá como Luis 14, girava em torno da Aurora Humana. Sua Majestade Baby era o Luis 14 do século.

Em virtude disso é que o governo americano combinou com o senhor Abbot o lançamento da nova boneca nas vésperas da posse de Jim, como o melhor meio de prevenir a explosão de qualquer resíduo anti-social ainda subsistente na alma americana. E foi assim que o dia da posse chegou sem prenúncios da menor tormenta.

Súbito, porém, ás primeiras horas da manhã, o rádio encheu a América de uma nova sensacional: Jim Roy amanhecera morto em seu gabinete de trabalho!

Violentíssimo foi o abalo publico, dada a coincidência de sobrevir essa morte justamente no dia da posse do Presidente eleito. Os negros viram nisso um golpe de força dos brancos, e estes ficaram em suspenso, na duvida se seria um deliberado ato de violência resolvido pelos convencionais ou uma das muitas surpresas de que é fértil o acaso. Chegou a haver por parte dos negros um instintivo movimento de revolta. Implantou-se-lhes nos cérebros a convicção do crime, e a velha selvageria racial rajou de sangue os olhos da pantera. Foi passageiro, entretanto, o assomo. Aquela quebreira vital que Roy havia percebido em si ganhara também toda a massa negra. O fatalismo ancestral sobrepairou á raiva e o imenso corpo sem cabeça, num recuo de instinto, repos-se no lugar humilde donde o tirara a vitoria de Roy.

A rã a que o vivisseccionista extrai o cérebro passa a viver uma vida muscular cujos movimentos são apenas reflexos. Assim a população negra americana a partir do momento em que a morte de Jim Roy lhe arrancou o encéfalo. Agitava-se ainda, viva — mas perdera o órgão coordenador de movimentos para fins definidos.

O segredo quanto á ação esterilizadora dos raios Omega conservava-se absoluto. Além do ministerio, dos tecnicos do estado, de John Dudley e de miss Astor, já esposa do Presidente Kerlog, ninguém mais o conhecia. Dos negros um só tivera a sua revelação, Jim Roy — mas levara-o consigo para o forno crematório.

Procederam-se a novas eleições e foi reeleito Kerlog por 100 milhões de votos. Normalizou-se a vida da América. Sua Majestade Baby reentrou no monopólio de toda a atenção, por um instante desviada pelo choque das raças.

Um fato entretanto fez-se notado. Meses depois do aparecimento dos raios Omega o indice da natalidade negra caiu de chofre. Março, precisamente o nono mês a datar da abertura dos primeiros postos desencarapinhantes, acusa uma queda de 30%. Esta porcentagem subiu ao dobro em abril e chegou a 97% em maio. Em junho as estatísticas só registravam 122 negrinhos novos.

Em agosto fechavam-se os postes e a Dudley Uncurling Company distribuía o seu dividendo.

Tornou-se impossível guardar por mais tempo aquele segredo de estado — e nem havia razões para isso. O fato caiu no domínio publico por meio de uma mensagem irradiada pelo Presidente Kerlog, o documento que até hoje, na vida da humanidade, mais fundo calou na alma do homem. Dizia essa peça, para sempre memorável:

"O governo americano vem dar conta ao povo do golpe de força a que foi arrastado em cumprimento da suprema deliberação dos chefes da raça branca, reunidos em palácio no dia 7 de maio de 2228. Foi aprovada nessa assembléia a moção Leland, resumida nestas palavras:

"A convenção da raça branca decide alterar a Lei Owen no sentido de incluir entre as taras que implicam a esterilização o pigmento negro camuflado... A raça branca autoriza o governo americano a lançar mãos dos recursos que julgar convenientes para a execução desta sentença suprema e inapelável."

Assim autorizado, o governo procurou agir de modo a evitar perturbações na vida nacional: estava em estudos da matéria quando John Dudley apareceu com a revelação da virtude dupla dos raios Omega. Adotado esse maravilhoso processo, operou-se a esterilização dos homens pigmentados pelo único meio talvez em condições de não acarretar para o país um desastre. O problema negro da América está pois resolvido da melhor forma para a raça superior, detentora do cetro supremo da realeza humana".

Nem a noticia da vitoria eleitoral de Roy, nem a revelação dos raios Omega, nem a nova da morte do negro causaram tão profunda impressão como a fria mensagem do presidente reeleito.

Brancos e pretos a receberam com igual assombro — seguido logo de uma sensação de alivio por parte dos primeiros e de uma sensação nova na terra por parte dos segundos.

Pela primeira vez na vida dos povos realizava-se uma operação cirúrgica de tamanha envergadura. O frio bisturi de um grupo humano fizera a ablação do futuro de um outro grupo de cento e oito milhões sem que o paciente nada percebesse. A raça branca, afeita á guerra como a ultima ratio da sua majestade, desviava-se da velha trilha e impunha um manso ponto final étnico ao grupo que a ajudara a criar a América, mas com o qual não mais podia viver em comum. Tinha-o como obstáculo ao ideal da Super-Civilização ariana que naquele território começava a desabrochar, e pois não iria render-se a fraquezas de sentimento, nocivas á esplendorosa florescência do homem branco.

A raça ferida na fonte vital pendeu sobre o peito a cabeça como a planta a que o podador estrangula a circulação da seiva. Ia passar. Estéril como a pedra, iria extinguir-se num crepúsculo indolor, mas de trágica melancolia.

E passou...

Decênios mais tarde, no maravilhoso jardim americano onde só abrolhavam camélias de pétalas levemente acobreadas pela força misteriosa do geoambiente, erguia-se, ao alto do monumento de gratidão erigido pelo socio branco em homenagem ao socio negro, o busto do velhinho mágico que em 2228 curara a dor de cabeça histórica do 87.° Presidente...
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continua… XXV– O Beijo de Barrymore

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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