sábado, 26 de novembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – II – O pedido


Logo que os peixinhos escoteiros chegaram ao sítio de dona Benta, foram tratando de erguer a concha e enroscá-la entre duas pedras na beirinha do ribeirão — bem perto do pé de ingá. E por ali ficaram, descansando e espiando.

Não demorou muito, apareceu Pedrinho de vara na mão; vinha pescar justamente ali. Chegou, pôs uma pobre senhora minhoca no anzol e já ia lançá-la ao rio, quando...

— Concha por aqui! — exclamou muito admirado. — Isto tem dente de coelho!...

Pegou a concha. Examinou-a. Sacudiu-a ao ouvido. Percebeu barulhinho de carta dentro. Abriu-a: era carta mesmo!

— Hum! Carta para Lúcia. Há de ser namoro — e voltou para casa a correr.

— Narizinho! — foi gritando logo da porta da rua. — Uma carta para você!...

A menina estava ajudando tia Nastácia a enrolar rosquinhas de polvilho. Assim que ouviu aqueles berros, largou da massa, limpou as mãos no avental da preta e disse:

— De quem será, meu Deus do céu? Rasgou o envelope e leu:

Senhora!
A felicidade do reino das Águas Claras está nas vossas mãos. Nosso príncipe perdeu-se de amores e só pode ser salvo se a menina o aceitar como esposo. Ou casa-se ou morre — diz o médico da corte.
Quererá a menina salvar este reino da desgraça, compartilhando o trono com o nosso muito amado príncipe?
(Assinado) Peixinhos do mar

— Sim, senhor! — disse Narizinho depois de lida a carta. – Estes tais peixinhos sabem escrever na perfeição. Acho que nem vovó, que é uma danada, seria capaz de escrever uma cartinha tão cheia de gramáticas...

Depois, voltando-se para Pedrinho, ordenou muito naturalmente:

— Responda que sim, que aceito. Diga que estou ajudando tia Nastácia a enrolar estas rosquinhas e logo que acabe irei casar com ele.

Dona Benta, que ia passando, ouviu o final da frase.

— Casar com quem, menina? Que história de casamento é essa?...

— Sim, vovó! Fui pedida em casamento e aceitei. Vou casar-me com o príncipe Escamado.

Tia Nastácia arregalou os olhos para dona Benta, que por sua vez tinha os olhos arregalados para a menina.

Narizinho riu-se de tanto olho arregalado e continuou :

— De que é que se espantam? Se toda a gente se casa, por que não posso casar-me também?

— Sim, minha filha — respondeu dona Benta com pachorra.

— Todos se casam, não há dúvida. Eu me casei, sua mãe se casou. Mas todos se casam com gente da mesma igualha. É muito diverso disso de casar com um peixe...

— Dobre a língua, vovó! Escamado é príncipe. Se se tratasse aí dum peixe vulgar de lagoa, vá que vovó falasse. Mas o meu noivo é um grande príncipe das águas!...

— Mas não é criatura da nossa espécie, menina.

— E que tem isso? A Emília, que é uma boneca, não se casou tão bem com Rabicó, que é leitão? Acho as suas idéias muito atrasadas, vovó...

Dona Benta volveu os olhos para tia Nastácia.

— Já não entendo estes meus netos. Fazem tais coisas que o sítio está virando livro de contos da Carochinha. Nunca sei quando falam de verdade ou de mentira. Este casamento com peixe, por exemplo, está me parecendo brincadeira, mas não me admirarei se um belo dia surgir por aqui um marido-peixe, nem que esta menina me venha dizer que sou bisavó duma sereiazinha...

A negra benzeu-se com ambas as mãos.

— Credo! Até parece bruxaria... Mas se chegar a esse tempo, sinhá, mecê que trate de arranjar outra cozinheira. Assim catacega como sou, tenho medo de escamar e fritar um bisneto de mecê pensando que é alguma traíra...

Enquanto as velhas discutiam o estranho caso, Pedrinho fez a carta de resposta. Depois dobrou-a, bem dobradinha. Depois fechou-a, bem fechadinha, dentro do mesmo envelope-concha. Depois colocou o envelope-concha no lugar onde o havia encontrado.

Imediatamente os peixinhos escoteiros se aproximaram. Cheiraram a concha, viram que havia resposta dentro e com fortes narigadas a derrubaram n’água, voltando a rolar com ela pelo fundo do rio.

Quando o príncipe leu a resposta de Narizinho, quase morreu de alegria. Apesar de ser a carta mais curta do mundo, pois se compunha apenas duma palavra — “SIM!” — o príncipe perdeu a compostura, e pôs-se a dar pinotes em cima do trono que até parecia um peixe pescado e largado no seco.

Os ministros e demais fidalgos da corte trocaram olhares de aflição. Teria enlouquecido o amado príncipe?

Escamado, afinal, caiu em si, e ficou vermelhinho como um camarão.

— Perdoem-me estas expansões, amigos! — disse ele. – São alegrias loucas dum náufrago que vê afinal o porto da salvação. Este “sim” comoveu-me até o fundo da alma. Não é um simples sim, reparem. É um sim seguido de um ponto de admiração! Quer dizer que Narizinho não se limita a aceitar a minha proposta, mas a aceita com entusiasmo! Céus! Como me sinto feliz!...

Dando em seguida ordem para prepararem o reino para a maior festa que ainda houve nos Sete Mares, dirigiu-se à sua mesinha, molhou uma pena de beija-flor na pérola furada que lhe servia de tinteiro e principiou a escrever cartas de amor. Escreveu até acabar a tinta e a pena ficar reduzida a um toco. Ia escrevendo e mandando, e tantas escreveu e mandou que o mordomo do palácio teve de organizar um serviço de correio especial, dispondo milhares de sardinhas pelo mar afora, a pouca distância uma da outra. As cartas iam passando de mão em mão, como fazem os pedreiros com os tijolos.

Narizinho lia as cartas e respondia com presentes — ora uma flor, ora um grilinho do gramado, ora uma rosada e roliça minhoca.

Mandou também uma das rosquinhas de polvilho, dizendo que fora enrolada pela suas próprias mãos.

Foi o presente de que o príncipe mais gostou. Mas em vez de comer a rosquinha, mandou que o melhor ourives do reino engastasse nela uma fileira de diamantes, de modo a transformá-la numa preciosa coroa.

— Ficará sendo a minha coroa real — e nenhuma porei na cabeça com maior orgulho! — disse o príncipe, comovido.
––––––––
Continua... Os brincos do Marquês

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Nenhum comentário: