terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Nilto Maciel (Os Guerreiros de Monte-Mor: Construtor de Igrejas)

João levava muito a sério a questão da raça, apesar de em suas veias correr sangue português. Sua mãe havia nascido de uma relação entre o sesmeiro Domingos Carneiro e uma índia jenipapo. Compreendia, no entanto, a impossibilidade de uma nova guerra, como desde menino ouvia seu pai pregar, e cedo se apaixonou pelos ideais dos inconfidentes mineiros, sentimento que lhe valeu bordoadas da guarda imperial.

Mal curou‑se dos ferimentos, desceu a serra e, sem dar um pio, foi direto à matriz, onde orou, ajoelhado diante da imagem de Nossa Senhora da Palma, durante um dia inteiro. Ao retirar‑se, o povo, doido para ver de perto o filho de Antônio Cardoso, enchia a praça, tal como no dia da inauguração da vila.

Antes mesmo da viração da tarde, já uma pequena multidão se postava à frente da igreja, curiosa, bisbilhoteira, zombadora.

– É o inconfidente.

Pelo pender do sol, havia subido a serra o primeiro pregoeiro a anunciar novidades em Monte‑Mor: João da Silva Cardoso, o contador de lorotas, preparava‑se para subir aos céus. Com pouco, a praça virava feira: o cruzeiro enchia‑se de pencas de banana; no obelisco, penduradas em paus, cacarejavam dezenas de galinhas.

Finda a prolongada reza, João escapuliu pela sacristia e, tomando o rumo do mato, apressado e tonto, deixou a multidão apalermada.

– Ele voou para o céu.

Os mais incrédulos acreditavam ter ele se escondido dentro do sacrário. Mas, antes de o sol se pôr, dava João boas‑noites ao pai de Maria do Amparo. Mal recebido de início, pouco a pouco aman­sou o velho. Ia se dedicar a trabalho rendoso – o de construtor. Quis blasonar, mordeu a língua, cutucado pela voz do pai dentro das oiças.

Conversa vai, conversa vem, entraram no assunto principal – a mão da donzela. O dono da casa fez promessas, João dizia sim senhor. Não tocaram no caso da surra, nem em negócios de metal. Só no finzinho do entendimento, o rapaz fez resumo de um romance que falava da conversão de um príncipe à Santa Madre Igreja. E se despediram como velhos compadres.

Daí em diante, João virou frequentador de igrejas e da casa do futuro sogro. Não dizia para ninguém, mas conduzia sempre um terço pendurado ao pescoço e, quando não conversava lorotas, rezava feito um penitente. Jurava a si mesmo que ia ser santo e ter altar só seu na matriz.

Virou e mexeu, noivou. Deixou os romances de lado e vivia ora na casa do sogro, ora aos pés dos santos.

Na primeira conversa mantida com o padre, falou da necessidade de mais igrejas e capelas na vila. O apóstolo concordou com suas opiniões e aproveitou‑se delas para relatar o estado de pobreza da freguesia. A matriz precisava de reformas, vinho e hóstia. Aparecessem pedreiros e pintores, bem que Deus agradecia.

Ao beijar a mão do padre, João reafirmou sua fé e boa vontade. Podia o outro arranjar os trabalhadores e o material, e deixasse o resto com ele.

– Vou mostrar como se remodela uma igreja pai‑d’égua como essa.

O reverendo levou o crucifixo aos lábios e olhou para o céu, sem palavras.

Fonte:
Nilto Maciel. Os Guerreiros de Monte-Mor. 2.ed. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2011.

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