segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 4


Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras

O MITO REGIONAL x A CATEQUESE

.. duas classes de pessoas forneciam informações acerca dos indígenas: a dos missionários e a dos aventureiros. Em luta uma com a outra, ambas se achavam de acordo nesse ponto de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam assim a importância de suas catequeses; os aventureiros buscavam justificar-se da crueldade com que tratavam os índios."
José de Alencar

É muito difícil dissociar mito de religião; não no conceito, é claro, mas no sentido prático e histórico. A tradição do mito não deixa de ser uma forma de "religare" as antigas tradições e doutrinas tribais. A Enciclopédia Mirador[26] apresenta o mito como a manifestação da "dependência do homem de forças sobrenaturais (...) é um fenômeno especificamente religioso", complementa.

A essência da religião está na alma, e Jung defendia a tese de que existe uma relação profunda e intrínseca entre o mito e a psiqué, ou alma. Disse ele que "el alma contiene todas las imágenes de que han surgido los mítos...". Jung evidentemente sabia que a razão humana não inventa o que não consegue entender, portanto, os deuses e demônios antigos eram em sua maioria - senão em sua totalidade - fatores ou fenômenos naturais, que a alma primitiva personificava, atribuindo-lhes propriedades e qualidades. Por conseguinte, mito e religião estão em um amálgama quase perfeito, e apresentam uma relação orgânica, de tal maneira que o primeiro fundamenta, e muitas vezes é a pedra de arremate da segunda.

Ambos se utilizam de alegorias, porém, somente a religião é dialética, e foi nessa dialética que os missionários vindos para o Brasil, e para a região Amazônica em particular, instituíram seu trabalho de catequese dos indígenas.

Como se sabe, o primeiro trabalho dos missionários é identificar os focos de adoração nativa, para depois combatê-los em nome da sua fé e crença. Dessa forma, os mitos cosmogônicos, que constituem a base da religião tribal, foram combatidos acirradamente de forma direta e ás vezes violenta, ou de maneira sutil e mais demorada, quando os religiosos inseriam conceitos não existentes na cultura nativa, aproveitando-se daquilo que melhor se aproximasse dos seus propósitos. Esse é o caso, por exemplo, dos conceitos cristãos de Deus e Diabo, que os missionários personificaram em Tupá - ou Tupana - e Jurupari, respectivamente.

O verbete Tupã, no Dicionário do Folclore Brasileiro[28] de Câmara Cascudo, informa-nos que este é "um deus criado pela catequese católica no século XVI e nome imposto pelo hábito às crianças e catecúmenos". Tupã era apresentado pelos padres, como um ser criador de todas as coisas, mas essa idéia panteísta - segundo Stradelli[29]- estava longe de ser absorvida pelos indígenas. Tanto que não há vestígios de festas ou cultos em honra a Tupã, as os há ao Jurupari. Por outro lado Osvaldo Orico[30] sustenta que os indígenas possuíam uma noção num Ente Supremo ou um "principio superior com o nome de Tupã".

O fato é que enquanto criavam entre os selvagens a idéia de um deus Todo-Uno, de um Deus Onipotente, causa de todos os efeitos; no mesmo processo arrancavam à fórceps da teogonia autóctone, um deus que encarnasse os atributos contrários, pois a religião necessita de um dipolo, de uma antinomia. Esse deus opositor, encontraram-no na figura do Jurupari, uma lenda comum às tribos Tupi-Guaranis.

Esse processo catequético e aculturativo, iniciado logo após a descoberta, foi uma ação conjugada à colonização e ocupação das terras nativas e do próprio índio como mercadoria, e ganhou forte impulso, com a chegada à Amazônia, de diversas ordens. E mesmo depois da expulsão dos jesuítas, em 1757, o processo não sofreu interrupção e nem decréscimo: hoje o número de missionários espalhados pela região amazônica é surpreendentemente elevado.

Um artigo publicado pela revista ISTO É, datada de 23 de outubro de 1985 e intitulado "O Culto dos Ianques", faz graves denúncias contra os missionários norte-americanos presentes na Amazônia - e por tabela aos de outras nacionalidades -. Uma dessas denúncias é contra a violência cultural a que estão subjugados os índios, "principalmente contra a língua e os costumes", escreve o articulista.

A agudização dessa ação culturicida, levou o padre paulista Antonio Iasi, ex-secretário do Conselho indigenista Missionário (CIMI), a declarar para a mesma reportagem: "Quase todas as tribos amazônicas foram violentadas a partir da religião, tanto por católicos como por evangélicos". Informa, ainda, o citado artigo que há "cerca de setecentos missionários estrangeiros dispersos pela Amazônia em nome de vinte seitas religiosas". A presença missionária* no Brasil computava, em 1985, segundo dados do CIMI, cerca de 53 ordens religiosas para algo em torno de 210 tribos e aproximadamente 30 famílias lingüísticas.

Esse processo que permanece "ad seculorum" fez desaparecer muitas fontes primárias da oralidade nativa, e o que restou foi degenerado pela ação do invasor branco na ânsia de impor sua religião, seu Deus, suas crenças, sua filosofia, seus costumes, sua cultura. Assim, a cultura nativa fica(va) entre dois fogos; de um lado a demagógica ação eclesiástica e do outro o rolo compressor do capitalismo. Como funciona esse último todos sabemos, mas para termos uma idéia dos métodos sutis, e eficazes da Igreja, o que aconteceu com a tribo Waiwai (Roraima) pode nos servir de exemplo; como conta ainda a Revista ISTO É:

"O tuxaua Ewka, que se julgava filho do Caititu - um porco do mato- foi convencido por um missionário (missão Novas Tribos do Brasil) a alimentar-se da carne do animal. Na crença dos Waiwai, o desfecho seria a morte imediata de Ewka. Como ela não ocorreu, todos se converteram ao cristianismo."

E para rematar com chave de ouro o sucesso da conversão, Ewka, o tuxaua, virou pastor da seita!...

Mais recentemente (19.08.1991), o jornal paraense O LIBERAL circulou com uma discreta nota a respeito do suicídio de dois índios da tribo Ticuna. Um dos suicidas era um jovem de 17 anos que, esclarece a pequena notícia, "não bebia, não fumava e a ainda não há pistas que indiquem as causas do suicídio, a não ser o forte envolvimento do adolescente ticuna com a seita fanática Irmandade da Cruz, praticada pela maioria dos 5,5 mil índios da área".

A cultura indígena tem seus dias contados no Brasil. No excelente trabalho de pesquisa sobre o Tribunal da Inquisição no Pará, J.R. do Amaral Lapa[31] atesta que "no interior da Amazônia, vivendo praticamente isolados ou em meio dos índios, os colonos dificilmente mantinham seu padrão de costumes, sendo que o processo de aculturação era no geral degenerativo para os índios".

E Coutinho de Oliveira[32] afirma-nos que "todas as lendas indígenas ou pelo menos, as colhidas recentemente, revelam a contaminação do cristianismo", e isso ele testemunhou faz meio século.

Como vemos, nossos brasilíndios foram atacados naquilo que um povo possui de mais autêntico, que são seus mitos, seus costumes, sua cultura, enfim, sua identidade; em duas frentes: uma sutil, persuasiva e devastadora - a dos missionários - e outra mais imediatista, agressiva e crudelíssima - a dos aventureiros e comerciantes -. Porém, de todas as agressões sofridas pelos gentios, a mais nefasta foi e ainda é - aquela efetuada às suas crenças, seu fabulário, seus mitos, enfim, às suas raízes. Sem elas não há como reverter o processo de extinção a que estão condenados.

Atualmente já se percebe uma resistência organizada por parte de alguns povos indígenas, para se preservarem culturalmente, ou o que ainda lhes resta da cultura ancestral. Este é o caso dos Yanomami, "o último grande povo, a última grande nação que vive ainda com todo o seu acervo cultural sem ter sofrido perdas graves no seu contato com a civilização"[33]. E estas organizações de defesa cultural e social indígena quase sempre contam com a participação de elementos religiosos, seculares ou não, mas, efetivamente ativos, que lhes prestam assistência.
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Notas:
26 ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, v. 14, p. 7772
27 JUNG, Carl G. Op. cit. p. 13.
28 CASCUDO, Câmara. Op. cit. p. 864.
30 ORICO, Osvaldo. Op. cit. p. 272-277.
31 LAPA, J. R. do Amaral. Livro da visitação do santo ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará. São Paulo: vozes 1978, p. 32.
32 OLIVEIRA, Coutinho. Folclore Amazônico. Belém: São José, 1951. v. 1, p. 97
33 MENSAGEIRO. Estudo n. 4, 52'ed. p. 154.

* O precursor do surto de messianismo foi o padre Samuel Fritz, “a quem o papel de messias não parece ter desagradado”, conforme lemos em História da Igreja na Amazônia, p.38. (Nota desta edição).

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