sábado, 18 de fevereiro de 2012

J. G. De Araujo Jorge (O Carnaval de Cada Um)


No fundo mesmo, não gosto de carnaval. (Nunca me encontro no palco: sou sempre espectador). Como não gosto também de todas as grandes festas coletivas, antecipadamente estabelecidas pelo calendário. Ninguém nos pergunta se estamos felizes ou desesperados. É dia de felicidade, então, toca a pular e a cantar!

Como se fosse possível estabelecer por decreto: hoje é dia de ficar triste; amanhã, é dia de amar; depois é dia de ficar só; e no Natal, e no último dia do ano, e nos dias de carnaval, a ordem é rir, brincar, ninguém tem direito de estragar a festa dos outros.

E obedecendo a esta ordem, possuída por imprevista e repentina loucura, toda uma multidão se agita num transe incontrolável, numa explosão instintiva, sonora e colorida como uma mostra de fogos de artifício.

Vocês me desculpem esta conversa desmancha-prazer. Sei que o defeito é meu. Ninguém tem nada com minha tristeza, com o meu cansaço, com as minhas frustrações. Ó benditos os felizes, os realizados, os que conquistaram essa cômoda e sonhada felicidade horizontal!

Paro no meio do caminho, ao cair da tarde, com os olhos e o coração cheios de noite, e vejo que estou perdido. Cada vez mais insatisfeito, cada vez mais, partindo...

Há os que têm a coragem de uma felicidade dopada, artificial. Para se misturarem com a alegria alheia, e não destoarem, embebedam-se. Fogem de si mesmos, pela porta dos fundos. Covardia? Sei lá! Mas não é de meu feitio. Sempre vivi o pouco que colhi, plenamente. Foram migalhas, que importa? Mas saboreei-as, lentamente, com todos os sentidos, como um provador de vinhos. Embriaguez, só com amor verdadeiro, com a própria vida. Por isso já confessei:

Temo as grandes alegrias,
o carnaval quando explode,
pois minha alma nesses dias
quer ser feliz e não pode...”


Não sou de carnaval. Nunca fui. Mais moço, muitas vezes, confesso que me deixei levar pelo arrastão. Mas meu fígado - um velho policial - sempre barrou minhas fugas para a alegria. Naquele poemeto de “Harpa Submersa” já o denunciei:

“O fígado - esse infame policial - não me entrega o passaporte/ para as viagens que eu realizaria.../ e me obriga, como um condenado, a escutar, dia após dia,/ meus entediados passos sem saída no pátio do presídio./ Apenas, vez em quando, uma espiadela sobre os altos muros/ um rápido olhar para a vida distante/ onde homens e mulheres sonham e se confundem./ Em vão tenho tentado a fuga, ele está sempre presente/ e me derruba como um policial a cada nova tentativa.../ Ah! Não ter fígado! Ter o mundo ao alcance do sonho, em seis doses de uísque...”

Já se foi o tempo em que tentava escalar o muro de minha tristeza, e escapar por três dias e noites, mesmo com o velho “tira” violento, a desancar-me com suas borrachas, deixando-me imprestável na quarta-feira de cinzas...

O carnaval sempre me amedrontou, não como a uma criança. Muito mais por ele próprio que pelas máscaras de seus foliões, que, estas, afinal, até me distraem.

Não sei porquê. Quem sabe a resposta esteja na minha trovinha:

“Por certo a solidão
é aquela que a gente sente
sem ninguém no coração
no meio de muita gente...”


Mas, sentindo-me à margem, consigo às vezes, distrair-me com a alegria dos outros. Afinal, no carnaval, ela não faz tanto mal como em outras ocasiões. Talvez porque não nos pareça autêntica, encerre algo de teatral, de representada. Me deixo, por isso, ficar na calçada, a ver a rua humana que passa como um rio de euforias e esquecimentos.

Tenho assistido a muitos carnavais. E o que realmente me agrada no carnaval não é tanto a expressão coletiva, a apresentação dos grandes blocos, ranchos, sociedades, escolas de samba, estas, por si só, um espetáculo à parte. Mas o carnaval individual, pequeno, o carnaval no singular, de cada um. Dos foliões que não bebem, que são centelhas de pura e lúcida alegria, e que antes de divertirem os outros estão realmente se divertindo a si próprios. E é observando esses tipos de rua que quase me convenço de que o brasileiro é um povo alegre, de música alegre, em que pesem as palavras do poeta que viu a nossa música “a flor amorosa de três raças tristes”.

A grande festa não é apenas uma válvula de escape para seus impulsos recalcados, para suas tristezas irremediáveis, suas preocupações de todo dia. É também a oportunidade para que se reencontre a si mesmo, para que tire a máscara que é obrigado a usar durante trezentos e poucos dias no coração.

Nisto resumo meu carnaval: observar o carnaval dos autênticos foliões, cuja presença vale por uma festa! E que inveja dessa alegria acesa como uma chama colorida, a consumir-se numa emoção verdadeira! Que inveja desse mascarado que não precisa de se mascarar (qualquer que seja a sua fantasia) porque traz em si a alma do próprio carnaval.

Em sua homenagem, aqui fica uma lembrança (um poemeto do livro “Amo!”), justamente uma lembrança de

CARNAVAL

Ela passou na minha vida vazia
de boêmio e sentimental,
como passa num ano de tristezas
o relâmpago de alegria do carnaval...

Seus braços me envolveram como serpentinas
frágeis, de papel,
e se romperam, como as serpentinas
que se arrebentam quando o vento passa
e se soltam no céu...

Ela passou na minha vida, assim
como passa, na monotonia
de uma existência banal,
e furtiva beleza e a loucura de um dia
de carnaval...

Nossa história - o romance desse dia -
sem ódio, sem despeito, sem rancor, sem ciúme,
nem podemos lembrar,

teve o destino irreal de toda fantasia
e a existência de um jato de lança-perfume
atravessando o ar...

O nome dela, não sei;
ela não sabe o meu, - que importa ?- não faz mal...
Não fossemos nós dois apenas fantasias
não fosse a nossa história apenas carnaval!


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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