domingo, 19 de fevereiro de 2012

J. G. de Araujo Jorge (O Mundo da Poesia)


Eu diria que nos encontramos como que diante de um novo "humanismo". Os acontecimentos sociais impondo alterações na velhas estruturas. A própria Igreja faz a sua revolução, liberta-se.

Deixa de vir a reboque do capitalismo para reintegrar-se nos Evangelhos, aproximar-se dos pequenos, transformar-se em defensora do espoliados, restaurando a mensagem de Cristo. "É mais fácil passar um camelo pelo furo de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu".

E este paradoxo se acentua quando, ao mesmo tempo, se procura atender aos problemas coletivos, reconhecendo-se que se deve salvar o homem, para que ele não seja levado de roldão, e desapareça. Descobrimos que, se por um lado, não pode haver humanidade feliz somando-se homens infelizes, por outro lado, não pode haver homem feliz numa humanidade acarneirada.

Neste mundo de paradoxos, tecnicista e convulsionado, a poesia deve responder presente. Se é verdade que o poeta é o "vate", o que antevê, o que faz vaticínios, então deve colocar-se na vanguarda dos acontecimentos, desdobrando sua mensagem de beleza e direção.

Não é à toa que alguns líderes libertários do mundo são grandes poetas, e poetas líricos. Os poetas são os "radares" de seu povos. Mílton, no "Paraíso Perdido", comparou a sua pátria a uma nau (imagem que o nosso Castro Alves repetiria: "A Inglaterra um navio que Deus na Mancha ancorou!"), e distribuiu pela embarcação as mais diversas profissões e atividades. Esqueceu-se dos poetas. Interpelado, completou: "Os poetas, olham as estrelas, e dão rumo ao navio".

De certa forma, este continua a ser o destino dos poetas. São os pilotos. Por isso não podem faltar à sua missão. Desdobrarem seu canto segundo as múltiplas faces do homem. E, como disse no poema:

Acima de tudo cantarei o amor.

O de Cristo e Confúcio, o de Romeu e D. Juan,
acima de tudo cantarei o Amor.
Em todos os seus momentos, lascivos ou gloriosos,
mansos ou eróticos,
unindo dois ou arrastando milhões,
nascido da ternura ou da revolta
procriando seres ou idéias
acima de tudo cantarei o Amor.

O Amor
- cimento e força
que constrói e ilumina,
que convoca e conquista,
-bola de neve do Bem inevitável -
acima de tudo cantarei o Amor.

E o tirarei do coração
como a hóstia, do cálice,
ou o sol, da manhã,
ou a espada, da bainha,
- fulcro para a alavanca do meu verso
mover o mundo. -

Acima de tudo cantarei o Amor.

(O Poder de Flor)

Há uns homens por aí com falsos pudores, envergonhados de falar de amor. Como se só o amor não fosse capaz de identificar os realmente fortes, os destinados ao canto e à construção. E há uma palavra que precisa ser reconceituada : romantismo. Românticos foram os grandes clássicos, os gregos, desde Safo e Anacreonte, aos poetas renascentistas. Dante, Petrarca, Shakespeare, Cervantes, Camões, Ronsard. Românticos, antes deles, foram os orientais, os hindus, os chineses.

O romantismo, antes de ser uma simples escola literária, classificada a partir de Goethe, é um estado de espírito. Os grandes poetas do nosso tempo são românticos, e dramáticos: Auden, Spendler, Lorca, Evtuchenko, Neruda, Malacovski, Langston Hughes, Nicolás Guillén Vínícius de Morais. O poeta é um ser que pensa, sentindo. Nela a emoção é mais forte que o pensamento, ou o pensamento nasce de uma tensão emotiva. É o processo natural de sua criação. O que não quer dizer que não haja poetas em que a emoção e o pensamento se equilibram ou que, excepcionalmente, o pensamento se manifeste livre, sem comprometimento do coração. Mas devemos destinguir o romântico de hoje do romântico de ontem. Os excessos do velho romantismo do século XIX, levaram o homem a enclausurar-se dentro de si mesmo, desligando-se das realidades do mundo exterior . Ao invés de o libertarem, acabaram por aprisioná-lo. Daí o sentimento de libertação desse novo "humanismo", na linguagem desabrida e emocional de nosso tempo.

Os parnasianos, foram irrealistas e formais. Calçaram "sapatinhos chineses" na inspiração. Transformaram artesanato em mutilação. Os simbolistas são os homens da banda. "Estavam à-toa na vida" e ficaram apenas ouvindo música, distraindo-se com as palavras, num jogo de sonoridades, inconseqüente.

Paralelamente, há arruaças literárias, tipo concretismo, poesia praxis, poesia processo etc. Jogam pedras, rasgam livros, e, com gritos, querem negar as palavras. Como se nossa arte não fosse um eterno "catch-as-catch-can" com as palavras. Não chegam a movimentos, são simples arruaças. Mas têm uma função histórica: alertam os que trabalham a sério, para que façam uma permanente revisão em seus processos de criação e atualizem a sua mensagem.

Em todas as épocas, houve, ao lado dos movimentos, as agitações, necessárias também à evolução e ao aperfeiçoamento das mais diversas artes. Aí estão, ainda recentes, o dadaísmo, o cubismo ou o esquecido "futurismo".

Poeta moderno é o que se comunica com o seu tempo, e se transforma em intérprete dos sentimentos, anseios e idéias, do seu povo. O sentido da poesia contemporânea, tinha que ser, portanto, realista. Eu diria: um realismo idealista. Não aquele "realismo" da poesia espanhola, pós-guerra civil, "La nuestra guerra", como a ela se referem orgulhosamente os seus poetas, Damaso Alonso o definiria depois num verso brutal:

"Madrid é uma cidade de mais de um milhão de cadáveres".

Para eles, tudo tinha que ser reconstruído. Não é o nosso caso: aqui tudo tem que ser criado ainda. Refiro-me a nós, poetas americanos.

Os poetas modernos europeus são, na sua grande totalidade, vozes trágicas, pessimistas, traduzem o esfacelamento do homem e da poesia depois de duas grandes hecatombes. Ou introvertem-se, em fugas impossíveis, como Rilke e Eliot, ou tentam evadir-se, misturando-se às multidões, e fazendo-se seu porta-vozes, como Spendler, Masefield, Damaso Alonso, Auden, Brecht. De qualquer forma, poetas de "fugas".

Os poetas não podem ser mais aqueles seres fantásticos que viviam no "outro mundo". Não se dirá mais quando alguém tiver um ar de abstração e de sonho:

"É um poeta!". Mas sim, quando tiver os olhos brilhantes, aquela aura dos líderes, aquele ar de integração com o espetáculo, do maestro empunhando a batuta.

Os poetas têm os pés no chão. O amor continua a ser o estandarte imortal, com sua infinitas variações. Não negar as asas, mas ter consciência de que estão presas ao corpo e que, só por isto, podem mover-se, e voar. Poesia - um vôo paradoxal em que a altura não elimina um permanente e íntimo contato com a realidade do chão.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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