segunda-feira, 28 de maio de 2012

Carlos Drummond de Andrade (A Menininha e o Gerente)


        - Não, paizinho, não! Quero ir com você!

        - Mas meu bem, não posso levar você lá. O lugar não  é  próprio. Não vou demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me  esperando aqui.

        - Não, não!- a garotinha soluçava. Agarrou-se a  calça  do  pai como quem se agarra a uma prancha no mar. Ele insistia:

        - Que bobagem, uma  menina  de  sua  idade  fazendo  um  papelão desses.

        - Você não volta!

        - Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.

        Prometendo, ele passeava  o  olhar  pela  rua,  impaciente.  Ela baixara a cabeça, chorando. Estavam diante  da  papelaria.  O  gerente assistia à cena. O homem aproximou-se dele:

        - Faz-me o obséquio de tomar conta de  minha  filha  por  alguns instantes? Vou a um lugar desagradável, não posso levá-la comigo.

        - Mas...

        - Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, bem?

        E sumiu. A garotinha continuava de olhos baixos, imóvel, o dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente passou-lhe a mão nos cabelos, de leve.

        - Vem cá.

        Ela não se mexeu.

        - Como é que você se chama? Carmen? Luísa? Marlene?

        Como  não  respondesse,  o  gerente  foi  desfiando  nomes,  sem esperança de acertar. Mas ao dizer "Estela",  a  cabecinha  moveu-se, confirmando.

        - Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito?

        Estela tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada.

        Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o  gerente  mostrava-lhe  a caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de 200 cruzeiros.

        - Olha um gatinho. Ele mora aqui?

        - Mora.

        - E que é que ele come?

        - Papel.

        - Mentiroso!

        - Então pergunte a ele.

        O gato acordou, deixou-se afagar e tornou a  dormir,  desta  vez nos braços de Estela.

        O gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze  minutos,  o homem não aparecia. "Bonito se ele não vier mais. Que vou fazer com esta garotinha, na hora de fechar?"

        Tentou lembrar o rosto do desconhecido; impossível.  Já  pensava em telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna:

        - Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada  para  me mostrar?

        Ele abarcou com a vista a loja  toda  e  sentiu-a  mal  sortida, pobre. "Eu devia ter aberto uma loja de  brinquedos,  pelo  menos  um bazar." Experimentou com Estela o apontador de lápis, o grampeador. E  o homem não vinha. É, não vem mais. Estela andava de um lado  para  outro, dona do negócio. Ele, inquieto.

        - Não mexa nas gavetas, filhinha.

        - Não sou sua filhinha.

        - Desculpe.

        - Desculpo se você deixar eu abrir.

        - Então deixo.

        Dentro havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal.  E  ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e  o  homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na calçada, as  filas  de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.

        Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo  tempo. Um estourou. Ela assustou-se. Ele riu.

        "Se o homem não aparecesse mais, que bom! Aliás a cara dele  era de calhorda. Ainda bem que me escolheu." Levaria  Estela  para  casa,  a mulher  não  ia  estranhar,  fariam  dela  uma  filha -  a  filha   que praticamente não tinham mais, pois casara e morava longe, no Peru. E  se o pai reclamasse depois? Ora, quem entrega sua filha a um estranho,  diz que vai demorar quinze minutos, passa uma hora e não volta,  merece  ter filha?

        O empregado arniava a cortina de aço quando  apareceram  duas pernas, um tronco inclinado, uma cabeça.

        - Dá licença? Demorei mais do que  pensava,  desculpe.  Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha.

        O gerente virou o rosto, para não ver,  mas  chegou  até  ele  a despedida de Estela:

        - Até-logo, homem do balão!

        E a filha ficou mais longe ainda, no Peru.

Fonte:
Para gostar de ler. Vol. 3. SP: Ed. Ática, 1978.

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