segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mia Couto (O Viúvo)


O arrepio nos mostra como a febre se parece com o frio. E é com arrepio que lembro o goês Jesuzinho da Graça, nascido e decrescido em Goa, ainda em tempos de Portugal. Veio com a família para Moçambique nos meados da meninice. Como aos outros goeses lhe perjuravam de caneco. Ele a si mesmo se chamava de Indo-_Português. Lusitano praticante, se desempenhou até à Independência como chefe dos serviços funerários da Câmara Municipal. Seu obscuro gabinete: a vida se poupava a ali entrar. O goês era antecamarário da Morte? Só uma graça ele se permitia. À saída do escritório, o funcionário se virava para os restantes e fatalmente repetia:

-  Ram-ram!- 

Há-de morrer nesse ramerrão, comentavam os colegas. E reprovavam com a cabeça: o caneco não mata nem diz acta. Jesuzinho Graça se ria, no desentendimento. "Ram-ram" era a despedida em concanim, língua de seus antepassados indianos.

Vivia nesse constante apagar-se de si, discreto como abraço da trepadeira. Para ele o simples existir já era abusiva indiscrição. O caneco molhava o dedo no tempo  e ia virando as páginas, com método e sem ruído. A unha do mindinho se espichara tanto, que o dedo se tornara simples acessório.

-  A unha? É para virar a papelada- , respondia ele.

Aquela unha era o - mouse-  dos nossos actuais computadores. O dito apêndice era motivo de zanga conjugal. A esposa o advertia:

-- Com essa garra você nem pense em me festejar!

Jesuzinho da Graça resistia a todos os protestos:

-  Pela unha morre o lagarto!- 

Em tudo o resto era singelo e pardo como selo fiscal. Misantrôpego, fleumaníaco, com vergonha até de pedir licenças, Jesuzinho assistiu, de coração encolhido, à turbulenta chegada da História. A Independência despontou, a bandeira da nação se cravou na alegria de muitos e nos temores do caneco. Aterrado, ele se sentou nas proletárias reuniões onde anunciaram a operação para "escangalhar o Estado". A si mesmo se perguntava a justiça se faz por mão de injustos? Impávido e longínquo, Jesuzinho atendeu à sua despromoção, à mudança de gabinete. Todavia, o Oriente se limitava à aparência. Por dentro, se assustava com os súbitos, os súditos e os ditos da Revolução.

No silêncio da repartição ele ouvia as louças do mundo se estilhaçando. Entrava em casa e o mesmo malvoroço o perseguia. Ainda lograva pestanejar um sorriso quando os discursos anunciavam: "a Vitória é Certa!". Tocava o ombro da mulher e dizia:

-- Vê como você é certificada, Vitorinha?

Se Jesuzinho era sombra, a esposa Vitória era crepúsculo dessa sombra. No terceiro aniversário da Independência, no preciso momento em que clamavam os jargões revolucionários, Vitória ficou certa para sempre. A goesa fechou nos olhos o olhar. Sob a parede do crucifixo, o funcionário a cobriu de lençol e rezas. Findava ali a única família, o único mundo de Jesuzinho da Graça. 

Nos seguintes meses, o viúvo manteve o comportamento. Jesuzinho era como a formiga que nunca descarreira? _única diferença: agora se demorava entre o ali e o acolá. E com o demorar da solidão ele foi entrando na bebida. O jovem empregado doméstico lhe perguntava a medo:

-  O senhor não tem parentesco com ninguém?- 

Jesuzinho apontava a garrafa de aguardente. Aquele era o seu parente por via do pai. Depois, se lembrava e apontava o crucifixo na parede.

-  Esse outro, ali na parede, é via da mãe.

De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso. Aos poucos, o goês deu sinais de maior desarranjo: as horas se perdiam dele. Funcionário do zelo, eterno cumpridor de regulamento, deixou de espremer o mata-borrão sobre os escritos de sua lavra. Saudades de um tempo em que o mundo era dócil, autenticável em 25 linhas?

Mas mesmo em suas inatitudes ele mantinha aprumo. Terças-feiras era dia de bebedeira, sua única combinação com o tempo. Ia para o bar, transitava lentamente para dentro do copo, espumava as agonias. Chegava tarde a casa, desalinhado mas sempre cuidando do fato branco. Se postava no canapé, acendia o cigarro que diria a falecida? e puxava o cinzeiro de pé alto, passando as mãos pelo ébano torneado. Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fazia estalar a unha nas unhas e chamava:

-  Piquinino: ande a desapertar a gravata .

O empregado acorria a lhe aliviar a garganta. Lhe despescoçava a camisa e entornava uns pós-de-talco sobre a camisola interior. Desfeito o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do moço era ficar vigiando o descanso do patrão.

Aqueles sonos eram sobressalteados. Passava uma frestinha de tempo e o caneco gritava pela falecida. Sua mão trêmula apanhava o telefone, ligava para os céus.  Era então que estreiava a mais nobre função de Piquinino: fingir-se dela, imitar voz e suspiros da extinta.

-  Vucê qui está pagar chamada, Vitorinha. Aí, no céu, tudo sai mais barato.

O empregadinho se esforçava em aflautinar a voz, copiando os esganiços de Vitorinha. Acabadas as conversas, o empregado copiava os modos da antiga senhora e brilhantinava os cabelos do patrão, acertando a risca em diagonal no cabelo.

Todavia e à medida do tempo, o moço se foi tomando de terrores. Ele se interrogava: imitar mortos? Brincar assim com espíritos só podia trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vantagem de um conselho. O velhote concordou: deixe o homem, fuja disso. E foi desenrolando sabedorias: quantos lados tem a terra para o camaleão? Os mortos sabe-se lá para quem estão olhando? O outro mundo é muitíssimo infinito: não há falecido que não seja da nossa família.

E o miúdo regressou decidido a nunca mais se prestar a aparições. Terça-feira chegou e o patrão, nessa noite, não saiu a rondar os bares. Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá da sala, olhando para muito nada. Chamou o empregadinho e lhe pediu que se transvestisse de Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso, Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se passaram momentos. Até que o jovem serviçal percebeu que o patrão chorava. Se debruçou sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de sempre:

-  Vitorinha!- 

O empregado ficou estático. O patrão que implorasse que ele não avançaria um pé. O caneco, afinal, estava bêbado. O hálito não deixava dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber? Tivesse ou não emborcado, o certo é que ele transbordava babas e suspiros. Estava nesse devaneio quando murmurou as mais estranhas palavras: queria encontrar a esposa já devidamente desunhado. Entregando o braço no colo do empregado, implorou: 

-  Me corte a unha, Piquinino!- 

No dia seguinte, encontraram o empregado, imóvel junto à poltrona do patrão. O que o moço falou foi para ninguém deitar crédito. O seguinte: mal começou a cortar o rente da unha, o patrão se desvaneceu, como fumo de incenso. E a unha está onde, pá? O miúdo debruçou-se sobre o soalho e levantou o que, por instante, pareceu ser uma desflorida pétala. Sorriu, lembrando o patrão. E exibiu a derradeira extremidade da sua humanidade.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

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