terça-feira, 31 de julho de 2012

Machado de Assis (Badaladas – 1º. de junho de 1873)

Hoje a minha primeira palavra é de agradecimento. Agradeço ao Sr. deputado Araripe o haver perfilhado a reflexão que fiz acerca do nome da nova província, e proposto na câmara outro nome menos sujeito a confusões.

Não sei se passará a emenda; mas ao menos se algum dia ouvirmos na câmara um
destes rasgos de eloqüência:

— Senhores com orgulho o digo: um franciscano não receia comparações. Se algum dia um presidente da nova província, em caso de guerra, chamar os seus povos com este melodioso verso:

“Franciscanos, surgi! eia! sus!”

Se algum dia um tradutor francês, levado pelo equívoco do nome, exclamar espantado:
“C’est à ne pas y croire! Le Brésil compte encore quatre-vingt-dix-neuf-mille franciscains. Combien faut-il des couvents pour tous ces gens-là? ”

Se tudo isto acontecer, e mais alguma coisa, nem o Sr. deputado Araripe nem eu temos culpa ambos demos aviso do mal.

Espero que o leitor nada me peça acerca do tumulto do Recife, que provavelmente condena, sobretudo se é maçom. Se a vitória da maçonaria estava longe de ser segura, creio que agora é ainda mais duvidosa.

Demais, o pau como pau é sólido, ou pode ser sólido; como argumento, é fraco.

O soco não é um silogismo perfeito; o cascudo é uma demonstração profundamente
medíocre.

Bem sei que em certos casos a gente perde as estribeiras. Felizes os pachorrentos que nunca se abalaram por nenhuma coisa neste mundo. Mas, em suma, a razão devia dominar os fiéis de Pernambuco; eles deviam esperar até o fim.

E já, que, sem querer, dei opinião acerca dos amotinados, quero ser justo dizendo o que penso do Sr. bispo naquela ocasião.

S. Excia. fugiu para Olinda. Pois perdeu uma ocasião única de comentar brilhantemente o seu zelo, que era ficar no lugar do perigo, cair defendendo as prerrogativas do cargo, confessar a fé, mostrar-se ainda mais digno do nome de cristão. O fugir é vulgar, é ordinário, é nimiamente terrestre, é João Antonio, é qualquer coisa, é o leitor, é este seu criado.

Que iam fazer os amotinados a Soledade? Iam desforrar-se de uma decisão espiritual do prelado. Era ocasião única de mostrar a sinceridade do zelo e a tranqüilidade da fé. Por isso, do mesmo modo que estranho o movimento, estranho a fuga; e deixo este ponto para apresentar aos leitores o Sr. Carvalho.

O Sr. Carvalho é poeta, e poeta religioso. Até aqui tudo vai bem. Não direi que seja tão grande como o padre Caldas; não é, mas por causa do gênero. O Sr. Carvalho cultiva um gênero mais seu que de ninguém.

Acho-me aqui diante de uma saudação a Pio IX, cuja primeira estrofe acaba assim:

Pensai, maçons; tremei, ímpios!
Tremei, malditos ateus!

Toda poesia revela que os sentimentos de piedade do poeta são sinceros, mas que as leis poéticas da obra são. . . um tanto especiais. Esta estrofe, por exemplo, é galante:

Salve! constância divina
Circunscrita ao Vaticano!
Vítima santa imolada
Ao ímpio furor humano!
Salve, Pontífice excelso,
Prodígio?. . .divino arcano!. . .

O principal é o fim; a chave é de ouro. Estou que o Santo Padre não aceita a idéia do poeta. Sabe o leitor católico, que Jesus Cristo perdoou aos judeus que o crucificaram, exemplo de misericórdia e mansidão, que o poeta duvida se pode ser dado por Pio IX.

Para melhor entender a coisa, transcrevo a estrofe:

E perdoa, se é possível,
Aos vis, aos novos judeus,
Que em ti não reconhecem
Um enviado dos céus!

Se é possível!

Estou convencido de que o Papa não aceita o condicional. Reclama naturalmente contra os invasores dos seus Estados; mas perdoar-lhes, quem poderá duvidar disso?

Os versos do Sr. Carvalho levam-me a pensar na mentira que todos os dias anda nos nossos lábios.

Nós dizemos: perdoa-nos as nossas dívidas, assim como perdoamos os nossos devedores. Peta! Ninguém perdoa aos seus devedores. O meu alfaiate não me perdoa um fio de pano; o sapateiro não me perdoa um tacão de bota. Ninguém perdoa nada.

Será das dívidas morais, as ofensas? Isso é dívida que não prescreve. Um credor ainda perdoa. . . quando o devedor lhe não paga ou morre sem herança. Mas o sujeito a quem chamei tolo, a moça que me ouviu dizer que era vaidosa, esses rezam o seu padrenosso, mas não me cumprimentam.

Nós temos todos assim uma humildade de liturgia, uma singeleza de vocábulo. É por isso que eu entro em dúvida se ainda há cristãos neste mundo. Penso que, se os há, estão escondidos, ou pelo menos andam incógnitos.

Agora, vamos fechar isto com a chave de ouro do costume.

Conhece o leitor o Sr. Pedreira Braga? É um poeta, um poeta nestes dias de prosa. Tem escrito versos mui apreciados, entre outros uns em louvor das bibliotecas, obra de rara energia e harmonia.

Seus versos não são esses versos chatos, incolores, amarelos com que nos andam a amolecer os ouvidos alguns aspirantes ao petrarquismo. Pelo contrário, são fortes e duros como o bronze, vastos como a amplidão, revelando a cada instante uma novidade de idéia, uma originalidade de vocábulo, o que tudo prova a altura do seu talento e o grande futuro da sua inspiração.

Aqui tenho diante de mim três estrofes, três pérolas, três diamantes da melhor água. A um poeta morto é o título; e vale a pena morrer para inspirar tão gentis pensamentos. O Sr. Pedreira Braga não é certamente o nosso Victor Hugo, mas sente-se que aspira a alar-se às alturas do poeta das Contemplações.

Quem já compôs entre nós estrofe semelhante a esta?

Poeta: eras eleito! Com a essência de um arcanjo
Em ti Deus misturara o espírito de um Vagre:
Respira, pois, que a glória é a mesma: é sempre o anjo
Que a cada Cristo oferta um cálice de vinagre.

Vinagre é um vocábulo pouco suscetível de rimar em poesia elevada; o Sr. Braga, porém, o fez com admirável tento. Foi buscar Vagre, rima natural, adequada ao assunto, séria e perfeita.

2.a estrofe:
Chegaste ... E de momento medindo a longa estrada...
Lançaste após a idéia a caça da, verdade :
Mas, se cedo caíste . . . Da morte na jornada
Bateste numa porta... abriu-se a Eternidade.

Aqui se pode dizer que, indo o poeta na jornada da morte, e batendo numa porta, era difícil que se lhe abrisse outra que não fosse a eternidade. Mas essa razão, excelente na prosa, não vale nada na poesia.

3.a estrofe:
E Deus em tua campa afunda um horizonte!
E é sobre campas tais que o seu esplendor vela!
Se além, como um cometa esfera-se uma fronte,
Do caos sai uma esponja e apaga a enorme estrela.

Esta última estrofe, melhor direi estes dois últimos versos, não os recusaria Victor Hugo. O próprio Milton, o próprio Dante, apesar de autores de grandes imagens, deixariam de invejar esta.

Vê-se daqui: a fronte esfera-se; é um cometa. Mas há lá no caos uma esponja, a terrível esponja do infinito; essa esponja sai, cai sobre a estrela, que a enorme, e apaga-se. Tudo isto é rápido, como a idéia que exprime.

Poetas juvenis, imitai versos destes. Deixai essa poesia desmaiada, essa poesia de soro de leite; sede fortes, altivos, grandes, desafiai as esponjas do caos. Não há esponjas do caos quando se escreve um nome nas Tábuas do Infinito, com a Penna enorme do Querer. Subir é a aspiração suprema da ave Mocidade; o Gênio é a Asa multicor da inspiração ; nada vale Nada, por que Tudo é tudo.

Dr. Semana.
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Nota:
Dr. Semana é o pseudonimo que Machado usava nestas cronicas


Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

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