segunda-feira, 30 de julho de 2012

Machado de Assis (Badaladas – 2 de março de 1873).

Ia começar estas badaladas com algumas reflexões acerca da Batalha de Aquidaban, cujo aniversário foi ontem, quando recebi da Eternidade uma carta importante, assinada por um nome ainda mais importante do que ela: uma carta de Montesquieu.

A carta vinha acompanhada de um bilhete, que dizia assim:

“Dr. Semana. — Dê-me um cantinho de seu jornal e insira nele a carta junta, favor de que lhe será grato o seu constante leitor. — Montesquieu.”

Não hesitei um momento; mandei inserir a carta que o leitor verá com olhar de respeito e veneração; ei-la:

MONTESQUIEU AO SENADOR JOBIM

Eternidade, sem data.

Exmo. Sr. — Acabo de ler o discurso que V. Excia. Proferiu há dias no senado brasileiro, e conversando com os meus amigos, patrícios e coimortais Voltaire e Rousseau, fomos de opinião que é um discurso digno de ser lido, meditado e comentado.

Verdade é que o nosso Voltaire — sempre brincalhão e sarcástico — ao passo que lhe teceu grandes louvores, fez um reparozinho de má língua. O exemplo foi contagioso, e o nosso Rousseau fez outro, o que me obrigou também a fazer um terceiro, sem que todos três valham um cominho.

Que quer Exmo.sr.? Em alguma coisa se há de ocupar a eternidade. Há lá nesse mundo quem se afadigue em matar o tempo. Oh! Se soubessem o que é matar a eternidade! O tempo, Sr. Senador, não é preciso matá-lo; ele morre por si mesmo. Não se lembrará V. Excia. Daquele verso do nosso Racine, creio eu:

Le moment ou je parle est déjà loin de moi.

Pois aí tem a imagem do tempo. Que necessidade há, pois, de matar um sujeito que nasce caduco e vive a morrer? A eternidade é outra coisa; é a presença constante e impassível de uma coisa que nunca mais acaba e isto é o que se deve entreter com palestras, leituras e reflexões.

Líamos, pois, o discurso de V. Excia., e refletíamos a respeito das suas várias doutrinas, quando o nosso Voltaire, entrando no ponto em que V. Excia. fala das relações entre os climas e os governos, exclamou:

— Cite o autor!

E dizendo isto piscou o olho a mim e ao João Jacques, dando a entender que eu, primeiro, e ele depois trataríamos da teoria expendida anonimamente por V. Excia.

O João Jacques riu-se a bandeiras despregadas. Eu, porém, tomei defesa de V. Excia. como me pediam a verdade e a justiça.

— O senador Jobim, disse eu, pode estar obrigado a não citar o autor; pode ser que fosse tirar a idéia da algibeira de Aristóteles, e que Aristóteles lhe recomendasse o mais profundo silêncio. Aquele grego é um bom homem; socorre a muita gente nas suas precisões; e eu mesmo (não é por me gabar) obedeço ao evangelho, não sabendo muita vez a minha esquerda o que a minha direita distribui. Voltaire — le petit Arouet, como lhe chamamos aqui — ia abrindo a boca para falar, mas eu fiz-lhe um sinal e continuei assim:

— Demais, a teoria dos climas na mão do Sr. Jobim apresentou-se com roupagens novas. A idéia de que a imaginação é incompatível com a eleição direta é absolutamente nova debaixo do sol. A afirmação de que “nos países do norte não há governo que se anime a praticar nenhum atentado contra a razão e a justiça”, transtorna algumas idéias recebidas na história. Mas que é tudo isso senão o cunho da originalidade do orador?

Os dois filósofos calaram-se, vencidos pela minha demonstração. Mas não foi longo o silêncio. Rousseau, que lia para si o resumo do discurso, bateu com a mão no joelho e exclamou:

— Cite o autor! Cá está mais uma:
“. . . Os homens bons assustam-se, e antes querem um leão que os devore, que um milhão de ratinhos que os roam!”

— Isto é meu!acudiu Voltaire, dando pulo.

E depois de ler:

— S. Excia. honra-me muito fazendo suas as minhas palavras, mas era justo citar o meu nome, e bem assim transcrever-me fielmente. O que eu disse foi: —“J’aimerai mieux vivre sous la patte d’un lion, que d’être continuellement exposé aux dents d’un millier de rats.” Foi isto o que eu disse; e pode ser que no Brasil, quem não cita exatamente as palavras de outro, esteja dispensando de lhe citar o nome. Em todo caso não tira isso o mérito do discurso. . .

Aqui, Exmo. sr. meti-me eu também a censor, mais por brincar que por outra coisa, e sobretudo levado pelo mau exemplo dos dois filósofos. Lia o discurso e dei com isto: “ Essa outra invenção, também imensamente ridícula, — o rei reina e não governa. É um trocadilho insuportável, e que foi inventado na França pelo Sr. de Narbonne...”

— Agora citou o Sr. Jobim, disse eu, mas creio que citou erradamente. O aforismo é do Sr. Duvergier de Hauranne, se não estou enganado . . .

— Seja como for, não se pode negar o mérito do discurso.

— Não se pode, repetimos nós!

E aqui tem V. Excia. fielmente contada a nossa conversação a respeito do discurso de V. Excia. Sinto havê-lo lido em resumo, mas pelo resumo se admira a íntegra.

Nós aqui, Exmo.sr., apreciamos e lemos tudo o que se diz nas câmaras brasileiras. Lá de longe em longe levamos uma estopada; mas se esse mundo é de compensações, não menos o é esta eternidade em que vivemos, e onde me acho ao seu dispor, como quem é De V. Excia.

Atento venerador e criado muito obrigado,

MONTESQUIEU.

Ando há dias a perguntar a toda a gente se é certo que no teatro de Pedro II apareceu um dominó (imitação de outro que, a serem verídicos os jornais, apareceu este ano em Paris) com uma inscrição singular nas costas.

Ninguém me sabe responder. Seria peta ou só encontro as pessoas que o não viram? Dizem-me que era um dominó azul com fitas amarelas; nas costas trazia um letreiro assim:

P

A

Mais de um quis decifrar o enigma e nada. Afinal um bom velho, Champolion do Carnaval, deu com a chave do mistério, e leu: Allons souper (A long sous p).

— É, respondi, dando-lhe o braço.

— Há na rua Uruguaiana um botequim francês com uma tabuleta em que se lê:

CAFÉ
DE
ALSACE
ET
LORAINE.

Com este cotilhão termino o meu sarau.

Até domingo.

Dr. Semana
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Nota:
Dr. Semana é o pseudonimo que Machado usava nestas cronicas


Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

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