domingo, 29 de julho de 2012

Machado de Assis (Badaladas – 29 de dezembro de 1872)

Enfim, está, pois pelas costas este ano de 72, que não foi, como aquele de que falava o Garrett, “inútil como um cônego.”

Não foi.

Quando mais não desse, deu as nossas eleições, com acompanhamento de tiro, como as do Ceará, ou simplesmente de rolo, como as da Corte.

Nada me alegra mais do que este exercício da soberania nacional... no papel;é verdade, no papel, apesar de não saber ler a soberania nacional.

Deus traga a reforma. Se não der tudo (e é difícil que dê metade) estamos esperando que dê alguma coisa. Façam os legisladores uma obra que não seja o mesmo peixe com outro molho. Não é do molho que nos queixamos, mas do peixe, e sobretudo das espinhas.

E se algum legislador me der a honra de ler estas linhas, e torcer o nariz, como quem estranha que eu meta nestes assuntos a minha colher queimada, peço a palavra para responder com esta razão decisiva:

A minha cozinheira Celestina é apenas cozinheira, aliás, perita, e, todavia.. .

E, todavia atreveu-se há dias a explicar a trovoada ao meu moleque. Verdade seja que o fez nestes termos:

— A trovoada são os astros quentes que se encontram com os outros frios. Nem é só dada a estes estudos. Tem seus laivos de poesia entre a carne e a batata. No meio das preocupações culinárias brota-lhe não raro a flor da inspiração.

Houve ultimamente belas noites de luar. Uma, sobretudo esteve maravilhosa. Que admira que a dita cozinheira se extasiasse ante esse espetáculo a um tempo delicioso e solene?

— Que noite! (exclamou ela). As ondas estão tão quietas! tão pequenas !Parecem passarinhos. Que artista seria capaz de fazer assim.. . uma peça de chita ? Ora, se a cozinheira Celestina podia assim explicar a trovoada e comentar a natureza, entendi que alguma coisa podia ela dizer igualmente da política, e firme nestes princípios (frase parlamentar), perguntei-lhe que pensava de uma câmara.

Direi a resposta da interessante senhora, não sem pedir aos leitores que lhe não torçam o nariz, em primeiro lugar porque nariz torcido fica muito feio, e depois porque da cozinha pode nascer uma boa idéia, ex fumo dare lucem.

— A cambra é como o outro que diz a cozinha. A diferença a que eu perparo a janta e os deputados preparam as leises. Meu amo às vez não gosta de uma ou outra comida, porque não saiu bem feita; as leises o mesmo. A diferença é que meu amo ralha comigo, e a cambra é que ralha com meu amo. E se meu amo, que me paga, não apreciar o meu cozinhado, faz-me sair de casa; não faz o mesmo com as leises; se meu amo não as achar boas, se estiverem ensossas, ou tiverem sal de mais, ou saírem cruas, meu amo há de tragá-las, muito caladinho...

Aqui tive pena da ignorância da pobre velha e desci da augusta indiferença com que a ouvia, dizendo-lhe:

— Sim, mas tenho o voto nas eleições...

Celestina pediu-me respeitosamente licença para rir. Admiti essa liberdade ela gargalhou uns dois ou três minutos e continuou:

— A eleição é como se meu amo, enfadado da minha janta, fosse pedir ao padeiro da esquina que influísse no caixeiro da venda para me dar uma repreensão.

Observei a Celestina que a sublimidade do meu espírito não podia compreender uma parábola tão rasteira.

Ao que ela respondeu pondo as mãos nas ilhargas:

— Que faz meu amo na eleição? Vota num homem porque tem o nome comprido, e esse vota n'outro porque tem o pescoço curto. Ora, meu amo, que tem as costas largas, fica como se lido tivesse voto.

A chegada do meu amigo Bento interrompeu esta conversa culinário-política.

Não é pessoa de cerimônia o meu amigo Bento; veio visitar-me; e companheiro de longos anos.

Antes de me despedir dele, contarei ao leitor um trocadilho que ele fez sem querer, só porque emprega erroneamente uma locução.

Achou-se há dias na polícia e ouviu falar de uma mulher que deu uma facada num homem. Facadas (pecuniariamente falando) levá-las qualquer homem; mas aquela não foi no sentido metafórico, senão no natural.

Todavia (e aqui se patenteia o coração do meu amigo Bento) ouviu falar que a mulher recorrera àquele expediente eleitoral porque o dito homem, desprezando o seu amor, andava cortejando uma viuvinha.

Bento quis a todo transe contemplar essa vítima do amor. O delegado de polícia mandou-a buscar. A vítima subiu ao gabinete.

— A senhora é que é a ré? Perguntou o meu amigo Bento com ar compungido.

— Sim, senhor.

— Tenho dó de si!

Livre da Celestina e do Bento, fui examinar os jornais de S. Paulo, que nesse instante chegaram do Correio.

Rompo cuidadosamente o selo, que estava limpo e me podia servir noutra ocasião (. . . , que toma o nome de economia), abro uma folha, e que hei de ver, leitor ? Um artigo em prosa e verso do nosso conhecido poeta e literato Martins Guimarães.
Li-o de um trago.

Quanto a falar dele há de ser no ano novo.

Não se guardam vinhos novos em odres velhos. Há escritos que requerem anos novos; sim, leitor, anos novos, muito novos, anos em flor.

Dr. Semana.
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Nota:
Dr. Semana é o pseudonimo que Machado usava nestas cronicas


Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

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