sábado, 28 de julho de 2012

Machado de Assis (Badaladas – 3 de novembro de 1872)

Em que cidade estamos?

A câmara municipal diz-me, afirma-me, convence-me de que estamos no Rio de Janeiro. Os polemistas políticos, entretanto, só me falam de Roma.

Roma para aqui, Roma para ali. O Jornal do Comércio só é nosso em pouca coisa; quase tudo é discutir a cidade eterna, não a moderna, mais a outra.

Qui nous delivrera des Grecs et des Rornains?

O caso é que eu já não estou certo se sou um badaladeiro fluminense ou simplesmente o flautista Ambrosius.

Tanto me romanizaram que eu penso vestir a toga quando envergo a casaca !

Há dias mandei uma carta ao livreiro Garnier, via Appia. O correio não hesitou; foi levá-la a Niterói.

E a cadeia velha? Não há nada que se pareça menos com o Capitólio; entretanto, quando agora ali passo, parece-me sempre que estou a ver a sombra dos gansos.

— Quando vai para baias? Perguntei eu a um amigo.

— Serei eu cavalo?

— Perdão; pergunto quando vai para Petrópolis.

Não me admirará, pois, se o leitor também andar atarantado com estas transformações. A. culpa não é minha nem dele, é da política. Trata-se de saber, em primeiro lugar, se isto é Roma; em segundo lugar, se Roma foi uma nação imitável.

Dividem-se as opiniões; uns dizem que não, outros dizem que sim; alguns não dizem sim nem não; outros dizem sim e não; não falta quem diga sim-não, à maneira homem-mulher.

E não se me dará de apostar dez mil sestércios em como uma parte dos leitores é desta última categoria.

Efetivamente em alguma coisa havemos de parecer-nos com os romanos, quando mais não seja, na língua,

... na qual, quando imagina, com pouca corrupção crê que é latina.

Ao mesmo tempo em alguma coisa há de haver diferença entre eles e nós.

Pela minha parte, afirmo que estive ontem com Lucullo.

Esse apreciador de bons manjares conversou comigo mais de uma hora. Éramos três e uma moça. A moça tinha ao ombro um pombinho ainda mal empenado, desses a que chamamos borrachos.

— Oh!Coitadinho! disse eu.

Lucullo juntou os dedos da mão direita, levou-os assim à boca, estalou um beijo e
exclamou:

— Isto com ervilhas! ...

Mas nem Lucullo nem os escritores romanistas dão assunto cabal para a crônica.
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E a propósito de loterias.

Aqui mesmo, há anos, tive ocasião de notar que algumas irmandades embaçavam a lei, vendendo um bilhete singular. Não diziam que em tal data o portador do bilhete teria de ser inscrito como irmão, e desde já lhe ficava marcado a jóia de tanto. Vêem os leitores que há duas coisas aqui repreensíveis.

 A primeira é embaçar a lei. A segunda é ... como direi? ... é pregar uma peta, o que, se é mau num homem do mundo, deve ser péssimo em pessoas que ocupam os lazeres no serviço divino.

Mas provavelmente o que eu então disse mereceu o mesmo sorriso que há de agora
assomar aos lábios do leitor, mau sintoma, porque o desprezo da lei não é romano nem revela saúde.

Não é romano, mas revela alguma saúde o contrato teatral que o presidente da Bahia acaba de celebrar com uma empresa.

Um dos artigos estabelece, entre as obrigações da empresa, esta:
“8.º — Auxiliar quanto lhe seja possível o Conservatório Dramático para a fundação de uma escola que eduque e instrua as pessoas de ambos os sexos que se quiserem dedicar à arte dramática, prestando-se ele, empresário, e seus artistas a ensinar gratuitamente durante este contrato qualquer matéria para que o mesmo Conservatório julgue-os, e dar outrossim, até dois espetáculos em favor da dita escola, quando criada.”

Desta maneira temos a Bahia com uma escola dramática meio fundada, enquanto a
capital do Império está ainda num doce desejo, numa vaga esperança. A escola, não só tem a vantagem de educar os atores, mas também a de atrair vocações. Escola não temos; vocações novas creio que não aparecem; não as há pelo menos dignas de futuro.

Estamos, portanto condenados a ver desaparecer o cenário atual, sem outro que o
substitua convenientemente.

Venha o remédio; empreguem-se os recursos da medicina. Mas o leitor está achando isto muito grave, e pergunta-me naturalmente, ao ler a palavra medicina, se eu conheço a sua etimologia.

Por que não?

A etimologia de medicina é, como acontece com outras palavras, uma lenda.

Conta-se que, no tempo do rei Numa, o corpo médico era composto unicamente de coveiros, regidos por um coveiro-mor, chamado Cinna, avô, dizem, da tragédia de Corneille.

Adoecia um romano (eterno romano!) iam os coveiros a casa do doente medir-lhe o
corpo para abrir a sepultura.

— Mediste, Caio? Perguntava o chefe.

— Medi, Cina, respondia o coveiro oficial.

Daí, etc.

Agora o que não é lenda, mas coisa muito real, talvez realista, é este aviso de um N a uma N:

“N...

“Não é possível nos dias que dias que marquei segunda-feira, por caso de força maior; no dia que tiver lugar que te disse, de novo te comunicarei por este meio. Estarás de saúde? Sempre teu até a ...”
“P.S. — Lembranças. — N.”

Até à morte, queria ele dizer, mas parece que não quis comprometer o futuro. Não sei se sabem que estamos com a perspectiva de ouvir sinos por música. Vejo no Jornal do Comércio que uma pessoa, recentemente chegada, se oferece para dar-nos este melhoramento.

Realmente, com as tendências musicais que temos, não é mal ouvir sinos por música. Mas que música será? Sacra ou profana? José Maurício ou Carlos Gomes? Não sei se faria bom efeito o Addio del passato executado nos sinos de S. José; mas
estou convencido de que os dobres das dez horas da noite, com que ainda nos matraqueiam a cabeça, podiam ser substituídos pelo Bonne Nuit, da Grã-duquesa ou o Bonsoir, Mr. Pantalon.

Em todo caso venha o melhoramento.

Dr. Semana.
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Nota:
Dr. Semana é o pseudonimo que Machado usava nestas cronicas

Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

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