quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Boanerges Ribeiro (Histórias da Estrada)

 Foi ao regressar do Tibet que o “sadu” Sundar Singh passou por uma das experiências mais desagradáveis da sua vida.

A Igreja Indiana desenvolvia-se sob o bafejo de orientação perigosa: possuidores de desejo incontido de ajudar, os missionários facilitavam muito a vida aos jovens convertidos que revelassem inteligência e desejo de aprender, admitindo-os aos estudos nos seus colégios sem qualquer sacrifício que correspondesse ao bem recebido.

A noção de sacrifício na carreira cristã obliterava-se. A cruz de que Cristo falava seria imposta por circunstâncias externas: animosidade do ambiente, perseguições. Mas nunca deveria ser voluntariamente procurada. Quem tivesse oportunidade de ser cristão e viver tranqüilo, necessariamente devia fazê-lo. Gestos como o de Sundar Singh, que buscava tarefas difíceis e perigosas, e elegia como campo do seu apostolado o país mais perigoso do mundo, eram raríssimos na Igreja da índia.

Tal atitude espiritual necessariamente repontaria com maior nitidez nos Seminários.

O doutor Lefroy, superintendente de Lahore, nutria pelo “sadu” profunda amizade e não abandonara a esperança de enriquecer o ministério anglicano com a colaboração daquela vigorosa personalidade cristã. Em 1909 convidou-o para cursar o Seminário de Lahore. Constrangido pela amizade, Sundar resolveu tentar.

Logo compreendeu o erro. Sentia-se isolado. Os colegas não o compreendiam e chegavam a aborrecê-lo. Faltava espírito de sacrifício àqueles futuros ministros cristãos. Preparavam-se para teólogos e oradores, sairiam cheios de ambição, dispostos a conquistar rapidamente um lugar onde brilhasse como merecia a luz dos seus talentos. O seminário de Lahore fazia mestres de teorias religiosas, mas não edificava grandes personalidades cristãs.

Entre os demais, um dos jovens candidatos ao ministério salientou-se pela antipatia que votava ao "místico". Certo dia o “sadu”, isolado à sombra de uma árvore, contemplava o chão, esquecido do mundo. Sorrateiramente o inimigo aproximou-se, pronto para uma boa peça. Os lábios do santarrão moviam-se. Estaria falando sozinho? Pareceu ao rapaz ouvir o próprio nome. Curioso, aplicou o ouvido. Sundar Singh, orando, pedia a Deus que lhe perdoasse qualquer ofensa cometida contra aquele colega. Que Deus o ajudasse a conquistar a sua simpatia, para que ambos vivessem como amigos. A partir dessa data iniciou-se entre os dois sólida amizade, só interrompida quando o “sadu” desapareceu.

Mas o constrangimento permanecia. Não se adaptava à carreira eclesiástica. Andrews, que freqüentemente o visitava tinha a impressão de que ele era uma ave engaiolada, saudosa da liberdade e dos vôos amplos.

Mesmo o superintendente logo compreendeu que o seu amigo nunca seria bom ministro. Chegava o tempo de ele ser ordenado diácono. Antes do exame foi perguntar se após a ordenação teria licença para pregar em qualquer Igreja Cristã.

- Não - respondeu-lhe o superintendente. - Nem para pregar, nem para comungar na Ceia do Senhor.

Depois de examinar cuidadosamente o assunto, Sundar Singh renunciou uma vez mais, e para sempre, às oportunidades do ministério regular e voltou à vida livre, aventurosa e rica de experiências das estradas indianas, deixando-se guiar e governar inteiramente pela Providência Divina.

Os anos que viveu obscuramente, de aldeia em aldeia, reforçaram as qualidades da sua alma. Uma série de incidentes ligados a esses anos ajudar-nos-á a compreendê-lo. Alguns narrados por ele próprio; outros, por testemunhas oculares. É difícil estabelecer datas: o “sadu” não se preocupava excessivamente com elas.

Encontrava almas famintas que mal viam a sua roupa de “sadu”, imediatamente o procuravam para pedir conselhos. Encontrava também malandros endurecidos e cínicos. As estradas da Índia são como quaisquer outras.

Certa vez dirigia-se para uma aldeia, quando dois homens passaram por ele, andando depressa, e desapareceram numa curva da estrada. Ao fazer a mesma curva viu um homem em pé, consternadíssimo. Aproximou-se e verificou que era um dos que haviam passado por ele. Apontava um vulto coberto, à beira do caminho. Erguendo a capa, o “sadu” viu uma face rígida de cadáver.

- Caiu morto aqui, de repente. Ai de mim! Nem uma moeda de cobre tenho para enterrar o meu maior amigo! Santo Homem, socorre-me!

Adiante havia uma ponte e o “sadu” recebera duas moedas para pagar a licença de atravessá-la. Tomou as moedas e entregou-as ao infeliz, com uma palavra de simpatia. Continuou o caminho, mas logo depois ouviu rumor de passos na estrada. Voltou-se e deu com o homem, ofegante, olhos esbugalhados de pavor.

- “Sadu”, o meu amigo morreu mesmo!

Não compreendeu bem. Morreu mesmo. Como?

E o outro pálido, explicou que era um velho truque com que costumava enganar os viajantes: cada vez um se fingia de morto e o outro pedia a esmola. Pois desta vez, vendo que o companheiro não se erguia, descobrira-o e o encontrara imóvel, sem vida. E acrescentou:

- Benditos sejam os deuses; não era a minha vez! Estava certo de que o “sadu” era um grande santo; a divindade matara o seu companheiro por castigo. Pedia perdão Não o amaldiçoasse, ali estavam as moedas...

O “sadu” expôs ao infeliz a mensagem evangélica.

- Santo Homem, quero ser teu discípulo.

- Mas como serás meu discípulo, se eu próprio já o sou de outro?

- Mas permite ao menos que eu te acompanhe, Santo Homem. Quero reformar a minha vida.

E assim o acompanhou algumas semanas. Depois Sundar encaminhou-o aos missionários de Garhwal, que mais tarde o batizaram.

 Fonte:
RIBEIRO, Boanerges. O Apóstolo dos Pés Sangrentos.

Nenhum comentário: