quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Carlos Drummond de Andrade (Areia Branca)

 O lotação ia de Copacabana para o centro, com lugares vazios, cada passageiro pensando em sua vida; é o gênero de transporte onde menos viceja a flor da comunicação humana. Quando, em Botafogo, ouviu-se a voz de um senhor lá atrás:

- Olhe aqui, vou atender a você, mas não faça mais isso, ouviu? É muito feio pedir dinheiro aos outros. Na sua idade, eu já dava duro e ajudava em casa.

E passou a nota ao rapazinho de quinze anos, se tanto, que a recolheu com humildade. O homem continuava, agora dirigindo-se a outro passageiro:

- Está vendo? Fica essa garotada aí vivendo de expediente, encontra uns sujeitos como eu, que vão na conversa, e depois...

- Isso é um país sem solução, comentou o vizinho. Não há escola profissional para os meninos, andam jogados ao deus-dará, enquanto o governo só faz besteira. Não vê o porta-aviões?

O rapazinho não parecia interessado na crítica ao Governo, e mudou de lugar. Foi para junto de outro senhor e expôs-lhe o problema, baixinho.

- Como é?

- Areia Branca. Lá é minha terra. Tou querendo voltar, falta só 27 cruzeiros...

O homem puxou lentamente a carteira, lentamente extraiu uma nota, passou-a ao rapazinho.

- Está vendo? - comentou o senhor do fundo. - Aquele ali caiu também, quem é que não cai? Aposto que esse menino não vai pedir àquela senhora da esquerda. Mulher não vai na onda, só tem pena de aleijado e de velhinho.

De fato, o postulante deixou de lado a senhora e a moça que havia no carro, e foi contar a história mais adiante (com êxito) a outro representante do sexo frágil, isto é, masculino.

- Oba! Já tenho 20, daqui a pouco posso ir para Areia Branca.

E foi sentar-se ao lado de outro jovem que, pelos cadernos de capa grossa na mão, se revelava colegial.

- Quer me ajudar? Então inteire minha passagem para Areia Branca.

Não era pedido; era recomendação, em tom natural, tão natural que o estudante não discutiu. Sacou do bolso o macinho de notas miúdas - dinheiro do sorvete e da volta, - contou-as uma por uma, e estendeu cinco.

- Se você quer ajudar, inteira logo. Mais dois.

O outro passou-lhe os dois, que esperara inutilmente salvar da requisição, e, à guisa de agradecimento, o beneficiado esticou o dedo:

- Espia só o mar: que estouro! Areia Branca é do outro lado.

E levantou-se mais uma vez, foi ao motorista, curvou-se, passou-lhe o braço nas costas, numa conversa particular e macia. O senhor de trás, moralista e observador implacável, ia-lhe acompanhando as evoluções:

-  Olha só o garoto. Aposto que cantou o motorista para uma carona.

O motorista - de queixo comprido, lembrando agradavelmente o velho atacante Ademir - sem volver o rosto, foi dizendo:

- Cai fora, coisinha.

- Eu não disse? - comentou o de trás, satisfeito com a própria agudeza.

O lotação parou, o meninote desceu. Ai, intervém a senhora, até então muda e queda como penedo:

- Garanto que agora ele vai tomar outro lotação para Copacabana, e repetir o golpe.

- Não duvido nada - secundou o moralista, meio desapontado porque não lhe havia ocorrido esse desenvolvimento.

O rapazinho atravessou a rua - era no contorno do Morro da Viúva - e parou à espera, na calçada.

- Vejam só - continuava exclamando o homem. - Vem com essa conversa de Areia Branca, Areia Branca, um nome tão poético, lembra o Caymmi, a gente não resiste mesmo. Se ele dissesse que queria voltar para Areia Preta, essa não, eu pensava naquela praia do Espírito Santo, em reumatismo, não soltava um níquel. Mas Areia Branca, esse moleque é impossível!

 Fonte:
Elenco de Cronistas - “A Bolsa & A Vida”

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