terça-feira, 21 de agosto de 2012

Carol Ryrie Brink (Belita)

 O inverno estava começando quando Rogério Moura chegou a Campo Florido, no Rio Grande do Sul, com um rebanho de cerca de mil carneiros. Pretendia ir mais para o oeste, onde os campos abertos eram ótimos pastos; mas, naquela época, as estradas não eram boas e, por esse motivo, o inverno o alcançou em meio da viagem. Naquela manhã havia chovido muito, por isso o dia se tinha conservado sombrio. Mesmo assim, quando chegou, restava ainda um pouco de claridade vinda da luz solar que, rasgando as densas nuvens, dourava levemente a triste paisagem; mas a noite não tardaria a chegar. Era preciso, portanto, arranjar urgentemente um abrigo.

Celina Vieira e o irmão mais novo, Augusto, estavam empoleirados na cerca que demarcava a fazenda de seus pais apreciando o entardecer, enquanto esperavam a ceia. Ronaldo, irmão mais velho de Celina, estava de pé, com os cotovelos apoiados na cerca e junto dele, sentado, o cãozinho Piloto.

- Céu vermelho à tarde, sol de manhã - disse Ronaldo, abanando a cabeça como um previsor do tempo.

- A tarde esta linda - disse Augusto - mas esta noite será muito fria. Preferia morrer a ter de passar a noite ao relento.

- Ouçam! – disse Celina, levantando o dedo. – Que barulho esquisito lá no morro! Vocês não ouviram?

- Parece de badalos, disse Augusto. Não nos faltou nenhuma vaca esta tarde, faltou?

- Não - respondeu Ronaldo. - E... nossos badalos não soam assim. Além disso, Piloto não deixaria que nenhuma vaca se extraviasse, mesmo que nós deixássemos.

Piloto geralmente abanava a cauda quando seu nome era mencionado; mas desta vez não se mexeu. Com as orelhas de pé, estava preocupado pelo estranho ruído.

- São carneiros! - disse Celina, depois de algum tempo. - Ouçam o balido! Mé... mé... mé...! Se não for um rebanho, comerei meu chapéu novo.

- Aquele que tem uma pena? - perguntou Augusto, incredulamente.

- Devem ser carneiros! - concluiu Ronaldo.

Instantes depois surgiram na estrada, como uma enchente, os mil carneiros de Rogério Moura. À frente vinha um casal de cães irlandeses, felpudos que, latindo, procuravam conservar o rebanho reunido. Era um espetáculo desolador! Mil carneiros magros, cansados e tristonhos, baliam incessantemente, num protesto contra a longa viagem. O condutor do rebanho cavalgava atrás, em um cavalo coxo, que não estava em melhores condições. O pastor era alto, de rosto magro e queimado pelo sol; os olhos eram azuis e brilhavam de maneira estranha nas órbitas fundas. Parecia exausto e esfomeado.

- Quer dizer a seu pai que preciso falar-lhe... - pediu a uma das crianças, assim que as viu.

Ronaldo deu um gritinho alegre e saiu à procura do pai. Em pouco tempo todas as pessoas da casa vieram contemplar o curioso espetáculo. Ali no vale criavam-se vacas, cavalos e bois; mas, nenhum dos fazendeiros tinha ainda experimentado a criação de carneiros.

Celina e Augusto ficaram de pé em cima da cerca, fazendo perigosas acrobacias para contar os carneiros

Piloto corria em redor dos cães, sem saber se os devia tratar como amigos, pois estava profundamente impressionado com o balido dos carneiros.

De repente, Celina deu um pulo no meio da carneirada.

- Veja, senhor! Aconteceu alguma coisa a esta ovelha.

Realmente, uma ovelha havia caído e parecia estar morrendo. O Sr. Moura e o pai das crianças conversavam animadamente e por isso não lhe deram atenção.

- Celina! Ronaldo! Augusto! - chamou o pai. Venham ajudar o Sr. Moura a encontrar esta noite um abrigo para os carneiros. Corram às fazendas vizinhas e perguntem aos amigos se podem desocupar parte do celeiro e do curral para colocar estes animais. Perguntem, também, se querem vir ajudar nesse serviço.

As três crianças partiram imediatamente em direções diferentes.

Embora Rogério Moura fosse completamente estranho naquele lugar, todos os homens das fazendas vizinhas, em pouco tempo reuniram-se e vieram em seu auxilio, salvar o rebanho fatigado da inclemência do tempo. Em meio de gritos, latidos e balidos, foram divididos os carneiros em pequenos grupos e levados para as diferentes fazendas, onde os abrigaram até mesmo junto aos montes de feno e embaixo de telheiros improvisados.

Quando o último carneiro estava sendo levado, Celina lembrou-se da ovelha doente, e então correu para ver o que lhe teria acontecido. Ela ainda estava estendida no mesmo lugar, os olhos meio fechados e a respiração tão fraca que parecia próxima a sua morte.

- Oh, veja, Sr. Rogério! - gritou Celina. O Sr. precisa atendê-la ou ela morrerá.

- Hum! - disse o pastor. - Não posso perder tempo com uma ovelha quase morta, quando tenho centenas vivas, enregeladas, precisando de auxilio imediato.

- Se o senhor não tem tempo, eu tenho - ofereceu-se voluntariamente Celina.

- Muito bem - disse o Sr. Rogério. - Ela será sua, menina, se salvá-la.

- Realmente? - gritou Celina. - Está feito!

Em pouco tempo, a menina recrutou os serviços de Ronaldo e Augusto. Juntos transportaram cambaleando, a ovelha doente para dentro do cercado. O pai das crianças observava aquela cena assombrado.

- Que é que vocês vão fazer com esta ovelha? - perguntou-lhes.

- Nada, ela está morrendo; mas Celina pensa que pode salvá-la.

- Oh, papai - gritou Celina. – Posso colocá-la no celeiro e lhe dar alguma coisa para comer? É disso que ela está precisando.

O pai sorriu e balançando a cabeça deu o seu consentimento.

- Irei vê-la, mais tarde – disse-lhe.

Só muito mais tarde, foi que o pai das crianças teve tempo para visitar a ovelha doente. Encontrou Celina sentada, ao lado de um candeeiro, contemplando a ovelha. Nunca o Sr. Vieira vira a filha tão triste!

- Papai, - disse a menina - estou certa de que ela está com fome, mas não consigo que coma. Não sei mais o que fazer.

O Sr. Vieira ajoelhou-se ao lado do animal; apalpou-lhe o corpo para ver se encontrava algum ferimento. Depois abriu-lhe a boca, correndo os dedos delicadamente nas suas gengivas.

- Bem, Celina, acho que você terá de fazer uma dentadura postiça para ela.

- Dentadura postiça! - exclamou Celina. E, passando os dedos nas gengivas do animal, disse: - Ela não tem nenhum dente! Não era de admirar que não pudesse mastigar o feno! Que resta fazer agora?

O Sr. Vieira olhou para o rosto aflito da filha, pensou durante alguns segundos e disse:

- Bem, vai ser uma trabalheira; não sei se você quer encarregar-se disso.

- Quero, sim, disse Celina. Diga-me o que devo fazer.

- Mamãe recebeu uma grande remessa de batatas. Peça-lhe para cozinhar algumas, mas não as deixe ficarem cozidas demais, misture-as com farelo, leite e faça um pirão. Você verá como este pobre animal o comerá facilmente. Isto deve ser feito todos os dias; acho, porém, que você se cansará depressa deste trabalho.

- Não me cansarei, papai. É preciso que alguém o faça; não podemos deixá-la morrer de fome.

Naquela tarde, o Sr. Rogério ficou com para cear com a família Vieira. Papai e Mamãe sentaram-se nas cabeceiras da mesa e, em volta, os seis filhos e mais o Sr. Rogério, Roberto Gonçalves, o capataz, e Catarina Machado, a governanta. Havia, portanto, um auditório apreciável; por isso, o Sr. Rogério começou a contar prazenteiramente a história de sua longa viagem. Contou como vagabundos e as onças lhe tinham roubado alguns carneiros; pormenorizou como um pastor que vinha em sua companhia apanhara uma febre e morrera no caminho, sendo enterrado próximo a um povoado, e explicou como tinha atravessado rios e escapado de um furacão.

Guando terminou a ceia, o pastor colocou Teodora e Rosinha nos joelhos e lhes falou sobre os mais estranhos casos que encontrara pelos caminhos. Abriu depois uma sacola que trazia por baixo do blusão de couro e lhes mostrou um verdadeiro tesouro. Nesse momento todos o rodearam. Mostrou, então, um trevo de quatro folhas amarelado pelo tempo.

Enquanto o desconhecido narrava sua história, Celina pensava na ovelha doente, e uma idéia acalentava-lhe o íntimo: "Ela comeu o pirão de batata. Logo, se eu lhe prestar toda a assistência de que necessita, por certo viverá e isto será devido à minha dedicação. Gosto mais dela do que de todos os outros animais de estimação, exceto, naturalmente, Piloto".

No dia seguinte Rogério foi ao centro da "vila" vender os carneiros. Era preciso desfazer-se deles o mais rápido possível. Como já sabemos, o inverno começara de repente e, embora estivesse viajando havia muito tempo, encontrava-se ainda longe dos pastos para onde se dirigia. Campo Florido era apenas um lugarejo e ele só pôde vender parte de seu enorme rebanho. Por isso, fez um acordo com o Sr. Vieira e com os outros fazendeiros: eles poderiam guardar tantos carneiros quantos pudessem alimentar e abrigar. Em troca, ele queria na primavera a metade da lã que os carneiros produzissem.

- E da minha ovelha? - perguntou-lhe Celina.

O Sr. Rogério riu e respondeu:

- Não quero nada, mocinha. Você ganhou a ovelha por direito e tudo que a ela pertencer.

A ovelha já ficava de pé; balia e cheirava as mãos de Celina sempre que a menina dela se aproximava.

Aquele inverno foi trabalhoso para Celina. Todos os dia pela manhã, antes de ir à escola e, à tarde, quando voltava, preparava o pirão de batata com farelo e leite para Belita.

- Qualquer dia, você desistirá, disse Ronaldo.

- Belita! - zombou Augusto. - Isto não é nome próprio para uma ovelha. Você devia chamá-la de Biti.

- Nada disso - retrucou Celina, com firmeza. - Belita é o nome da ovelha de Celina Vieira e vocês verão que não desistirei de preparar sua comida.

Quando os dias começaram a se alongar e a ficar mais quentes, Celina passou a levar Belita para pastar com os outros carneiros. No começo ela amarrava-lhe uma fita vermelha no pescoço porque todos os carneiros se parecem e Celina não queria trocar sua ovelha. Na realidade tal precaução era desnecessária, porque assim que aparecia com o prato de pirão, Belita abandonava os outros carneiros e tirava uma linha reta de onde estava para alcançar Celina mais depressa. À noite voltava para o celeiro e esperava que a menina a deixasse entrar.

Numa manhã de outubro, como de costume, Celina levantou-se cedo para dar de comer a Belita. Quando se aproximava do celeiro, viu que Roberto saía e, minutos depois, defrontou-se com ele. Celina havia posto o xale de sua mãe por cima do avental e trazia nas mãos o prato com o pirão de batata ainda quente, próprio para aquela manhã fria de primavera.

Pela primeira vez Celina viu que Roberto não cantava nem assobiava; reparando bem, Celina notou na fisionomia do honesto capataz uma mistura de tristeza e contentamento que a menina não pôde compreender.

- Aconteceu alguma coisa a Belita? - perguntou-lhe.

- Sim mas, por Deus, não maldiga o sucedido – respondeu Roberto seriamente.

O coração de Celina quase parou. Algo terrível tinha acontecido à querida Belita! Correu imediatamente para o celeiro.

- Não adianta se afligir agora, queridinha - disse Roberto quando alcançou a menina. Você fez por ela mais do que qualquer outro ter feito.

As palavras de Roberto nada significaram naquele momento para Celina, porque aquele frágil fio de vida que a menina tinha conseguido conservar durante todo o inverno, acabava de ser arrebentado. Belita estava morta!

Celina jogou fora o pirão que trazia e ajoelhou-se diante da ovelha. Não podia falar nem fazer outra coisa qualquer, mas as lágrimas que corriam  queimavam-lhe as faces e salgavam-lhe os lábios. O coração de Celina estava prestes a sucumbir diante de tanta tristeza!

- Hurra! Hurra! Hurra! - gritou Roberto inclinando-se e olhando aquela cena com simpatia. - Nem tudo está tão mal. Por que não procura ver se a morte de Belita não lhe trouxe algum conforto?

Celina sacudiu a cabeça, apertando os olhos para conter as lágrimas que corriam abundantemente.

- Veja! - insistiu ele.

Roberto aproximou-se e colocou uma coisa macia e quente nas mãos da menina. No mesmo instante, uma vozinha fraca baliu:

- é... é...!

- Veja! - disse Roberto, - a mãe dela está morta mas ela escolheu você para substituí-la! E sabe por que o fez.

Celina abriu os olhos e as lágrimas pararam de correr porque Roberto havia colocado em seus braços um ser tão pequenino, tão adorável, que fez desaparecer sua tristeza como por encanto.

- É uma ovelhinha! - disse Celina para si mesmo, e depois para Roberto: - É filha de Belita, não é?

- É - respondeu Roberto. - E continuou: - Belita estava cansada para poder criá-la. "É melhor eu dormir e deixar Celina cuidando dela”, pensou com certeza Belita. "porque Celina é uma mãezinha extraordinária”.  

Celina enrolou o xale na ovelhinha e embalou nos seus braços aquele pequeno e friorento ser.

- Pirão de batata não serve - disse ela para si mesma. - Leite morno é do que ela precisa e talvez mamãe me possa dar uma mamadeira do Zequinha para eu poder alimentá-la melhor.

A ovelhinha encontrou nos braços de Celina o agasalho e a proteção de que necessitava e, como num agradecimento, baliu mais uma vez:

- Mé!... Mé!...

 Fonte:
O Mundo da Criança - "Magical Melons".

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