sábado, 25 de agosto de 2012

Marcelo Spalding (Literatura, Interação e Interatividade)

Ano a ano, a literatura digital ganha força e torna-se uma preocupação também de acadêmicos e professores, ávidos por apresentar algo novo a seus alunos. Muitas vezes, porém, diante de algo sem parâmetros semelhantes na história da literatura, a análise dá lugar ao encantamento e sobram adjetivos para essa literatura multimídia produzida com o auxílio das novas tecnologias de comunicação, destacando-se o caráter "interativo" desse novo gênero.

Cabe-nos perguntar, porém, o que é a interatividade? O que é interativo? O computador, por sua "arquitetura sui generis", e tudo o que nele for publicado? Nesse caso, poderíamos considerar um livro publicado em PDF, digamos Dom Casmurro, de Machado de Assis, como interativo? Reformulando a questão em outras palavras, em que medida e por que a versão para iPad de um livro — Alice no País das Maravilhas, por exemplo — é mais "interativa" que uma versão impressa do mesmo livro?

Diversos autores abordaram a questão da interatividade. Marco Silva, em Sala de Aula Interativa, busca recuperar a origem do termo, distingui-lo do termo "interação", usado na psicologia e ciências sociais, por exemplo, e apontar as duas críticas principais a que o termo esteve sujeito desde sua aparição: a polissemia e a banalização.

Já Alex Primo escreve seu Interação mediada por computador "a partir de uma insatisfação com as teorias e conceitos de 'interatividade'", preferindo abordar a questão de outro modo e retomando o termo interação para distinguir entre interação mútua e reativa:

"não se fará uma distinção do que é ou não interação, ou seja, os intercâmbios mantidos entre dois ou mais integrantes (seres vivos ou não) serão sempre considerados formas de interação, devendo ser distinguidos apenas em termos qualitativos. Sendo assim, irá se considerar aqui que tanto (a) clicar em um link e (b) jogar um videogame quanto (c) uma inflamada discussão através de email e (d) um bate-papo trivial em um chat são interações. O que se pretende é distingui-las quanto ao relacionamento mantido."

Tanto Silva quanto Primo apresentam, ainda, tentativas de escalas de graduação da interatividade elaboradas por respeitados pensadores da cibercultura, que buscam diferenciar o simples clicar a, digamos, um jogo de estratégia em que o usuário precisa de ação contínua.

Jens Jensen produziu uma tipologia que concentra sua atenção em dois aspectos do tráfego de informação: quem possui e oferece a informação e quem controla sua distribuição. A partir disso, apresenta a seguinte definição de interatividade: "a medida da habilidade potencial da mídia em permitir que o usuário exerça uma influência no conteúdo e/ou na forma da comunicação mediada". Um cubo tridimensional ajuda a representar a classificação de Jensen:

Embora o modelo do autor peque ao centrar-se especificamente nas características do canal, é sintomático o espaço reservado por Jensen para a "novel": um espaço de seleção e registro, o mais básico em termos de interatividade, ao lado da televisão, do cinema e do rádio.

Outra gradação é a sugerida por F. Holtz-Bonneau, que distingue três modalidades, uma baseada na seleção de conteúdos, outra na intervenção sobre conteúdos e uma terceira tomando os dois processos em conjunto. Segundo Silva, a autora vê interatividade de seleção quando a operação consiste em tocar nas teclas de um videocassete para fazer avançar mais rapidamente a seqüência de imagens. E ainda qualifica essa modalidade em gradações, conferindo grau zero às operações que se efetuam segundo um encaminhamento linear, como no exemplo do filme em videocassete e, acrescentamos nós, dos romances literários. Adiante, a autora chamará atenção para a "necessidade de ultrapassar a linearidade como condição para se chegar a graus mais elevados de interatividade".

Já Kretz, ao propor uma distinção de seis gradações para a interatividade, distingue a leitura de um romance linearmente e com avanços, retornos, saltos. No "grau zero da interatividade", que trata da interatividade de acesso, estaria o romance, o disco, os cassetes lidos linearmente do início ao fim. Já na "interatividade linear", uma espécie de grau um, estaria o romance, o disco ou os cassetes quando folheados (sequência, retorno, saltos adiante ou atrás, avanço ou retorno rápidos). Os demais graus, a saber, são: "interatividade arborescente", quando a seleção se faz por escolha em um menu; "interatividade linguística", que utiliza acessos por palavras-chave; "interatividade de criação", que permite ao usuário compor uma mensagem; "interatividade de comando contínuo", que permite a modificação, o deslocamento ou a transformação de objetos, como nos videogames. Dessa forma, ainda que Kretz confira uma gradação da interatividade na leitura de um romance, também em seu modelo a literatura ocupa um espaço de baixíssima interatividade, assim como nos modelos de Jensen e Holtz-Bonneau.

Entretanto, muito antes dessas escalas centradas na relação homem-objeto, pensadores como os alemães Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, hoje identificados como expoentes da chamada Teoria da Recepção, trataram da interação literária. Iser, por exemplo, aborda centralmente a interação em artigos como o clássico "A interação do texto com o leitor", em que afirma que esta é um caso especial de interação, pois não há a situação face a face característica da interação humana, mas observa haver no texto um sistema de combinações com um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação:

"este lugar é dado pelos vazios (Leerstellen) no texto, que assim se oferecem para a ocupação do leitor. Como eles não podem ser preenchidos pelo próprio sistema, só o podem ser por meio doutro sistema. Quando isso sucede, se inicia a atividade de constituição, pela qual tais vazios funcionam como um comutador central da interação do texto com o leitor. Donde os vazios regulam a atividade de representação do leitor, que agora segue as condições postas no texto."

Umberto Eco, em Obra Aberta, chega a utilizar essa abertura como uma distinção entre a arte clássica e a arte moderna, afirmando que a obra clássica consistia num conjunto de realidades sonoras que o autor organizava de forma definida e acabada, enquanto os novos tipos de arte "não consistem numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente organizada, mas sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete, apresentando-se portanto não como obras acabadas, que pedem para ser revividas e compreendidas, numa direção estrutural dada, mas como obras abertas, que serão finalizadas pelo intérprete no momento em que viver sua fruição estética".

Assim, qualquer obra literária traz por si só essa abertura que pede um leitor participativo, cúmplice, capaz de preencher os "lugares vazios", para usarmos um termo de Iser. Entretanto, quando se fala em interatividade associada às ferramentas digitais, o que está se esperando é uma gradação maior de participação do leitor na estrutura, no próprio andamento do texto, da história.

Interagir, na nova era e com as novas ferramentas, é mais do que preencher alguns espaços vazios em busca da "verdade" de um autor, e sim construir juntamente com o autor a partir de possibilidades e alternativas que ele possa ter criado. Nesse contexto, clicar ou arrastar não são ações interativas se essas ações não representarem alterações no texto final, na construção da obra, por mais atraente que sejam os livros digitais com essas ferramentas. Por outro lado, não podemos negar que tais ações demonstram que a literatura é mais do que o objeto livro e atravessará, sim, séculos e gerações através de gêneros hipertextuais, gêneros multimídia e/ou gêneros interativos. E, talvez, isso seja mesmo motivo de encantamento por parte de quem está descobrindo esse gênero agora.

Marcelo Spalding

Fonte:
Digestivo Cultural – Porto Alegre, 24/8/2012

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