sábado, 25 de agosto de 2012

Mia Couto (Governados pelos mortos)

(- fala com um descamponês- )

-  Estamos aqui sentados debaixo da árvore sagrada da sua família. Pode-me dizer qual o nome dessa árvore?

- Porquê?

-  Porque gosto de conhecer os nomes das árvores.

- O senhor devia saber era o nome que a árvore lhe dá a si.

-  Depois de tanta guerra: como vos sobreviveu a esperança?

- Mastigámo-la. Foi da fome. Veja os pássaros: foram comidos pela paisagem.

-  E o que aconteceu com as casas?

- As casas foram fumadas pela terra. Falta de tabaco, falta de suruma. Agora só me entristonho de lembrança prematura. A memória do cajueiro me faz crescer cheiros nos olhos.

-  Como interpreta tanta sofrência?

- Maldição. Muita e muito má maldição. Faltava só a cobra ser canhota.

-  E porquê?

-- Não aceitamos a mandança dos mortos. Mas são eles que nos governam.

- E eles se zangaram?

-- Os mortos perderam acesso a Deus. Porque eles mesmos se tornaram deuses. E têm medo de admitir isso. Querem voltar a ser vivos. Só para poderem pedir a alguém.

-  E estes campos, tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?

- Foram. Nós só ficámos com o descampado.

-  E agora?

- Agora somos descamponeses.

-  E bichos, ainda há aqui bichos?

- Agora, aqui só há inorganismos. Só mais lá, no mato, é que ainda abundam.

-  Nós ainda ontem vimos flamingos...

- Esses se inflamam no crepúsculo: são os inflamingos.

-  E outras aves da região. Pode falar delas?

- Antes de haver deserto, a avestruz pousava em árvore, voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Agora, há nomes que eu acho que estão desencostados. . .

-  Por exemplo?

- Caso do beija-flor. É um nome que deveria ser consertado. A flor é que levaria o título de beija-pássaros.

-  Mas outros animais não há?

- A bichagem vai acabando. O mabeco, dito o cão-selvagem, vai sofrendo as humanas selvajarias. Antes de acabar a lição, ele já terá aprendido a não existir.

-  Parece desiludido com os homens.

- O vaticínio da toupeira é que tem razão: um dia, os restantes bichos lhe farão companhia em suas subterraneidades. Eu acredito é na sabedoria do que não existe. Afinal, nem tudo que luz é besouro. É o caso do pirilampo. Pirilampo morre? Ou funde? Suas réstias mortais aumentam o escuro.

-  Tanta certeza na bicharada...

- Você não olhou bem esse mundo de cá. Já viu pássaro canhoto? Camaleão vesgo? Papagaio gago?

-  Acredita em ensinamento de bichos?

- Todo o caranguejo é um engenheiro de buracos. Ele sabe tudo de nada. Há outros, demais. O mais idoso é o escaravelhinho. Mas, de todos, quem anda sempre de janela é o cágado.

-  Você não sofre de um certo isolamento?

- Sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam de bicho-do-mato. Em vez de me diminuir eu me incho com tal distinção. Como antedisse: a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa.

-  Mas a sua mulher não lhe faz companhia?

- Ela é minha patrã. De vez em quando a gente dedilha uma conversa. É uma acompanhia, faz conta uma estação das chuvas. Mas a tradição nos manda: com mulher a gente não pode intimizar. Caso senão acabamos enfeitiçados.

-  Uma última mensagem.

- Não sei. Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

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