segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Mia Couto (O Último Voo do Flamingo)

O livro começa com uma carta do “tradutor”, que é o narrador do livro, onde ele conta os motivos que o levaram a narrar essa história. Pouco tempo depois da guerra terminar em Moçambique, alguns soldados da Tropa de paz da ONU que estavam na região começaram a explodir. Para tentar entender o que estava acontecendo, o italiano Massimo Risi é enviado à Tizangara, cidade fictícia onde se passa a narrativa, para investigar os estranhos acontecimentos. Para tanto, o governante local contrata o tradutor para acompanhar Risi em sua investigação.

Há um orgão masculino decepado largado no chão da cidade e resolve-se fazer uma vistoria para tentar descobrir a origem do órgão ali jogado. Como ninguém sabia o que fazer, resolvem chamar Ana Deusqueira, a primeira e única prostituta de Tizangara, para reconhecer. Após olhar com ares de especialista, ela informa que o órgão não é de nenhum morador local. Todos partem e Risi dirige-se à pousada local com seu tradutor.

Lá chegando, o italiano é advertido que se aparecer um louva-deus pelo local, não deve mata-lo. Ao ir para o quarto, Risi se depara com Temporina, uma estranha mulher com belíssimo corpo de jovem, mas rosto de velha. Antes de dormir, o tradutor conta histórias de sua infância e de seu pai, o velho Sulplício, para Risi.

No outro dia, o italiano encontra Temporina no corredor e ela diz estar grávida dele, o que Risi nega, já que apenas havia sonhado com a mulher. O hospedeiro, que ouviu a conversa, entra no quarto e adverte Risi para tomar cuidado com Temporina. No meio da conversa, o hospedeiro repara que tem um louva-deus morto no chão e começou a gritar “Hortênsia! Você matou-lhe!”. Risi, sem nada entender, expulsa o homem do quarto e pede explicações para o tradutor.

Então, ele conta que naquela terra acreditava-se que um louva-deus era um ancestral morto voltando para visitar seus parentes vivos. Aquela seria Hortênsia, tia de Temporina e última neta dos fundadores de Tizangara. O tradutor então chama Temporina e pede para que essa conte sua história. A jovem conta que na realidade não tem nem vinte anos e que havia ficado com a cara cheia de rugas e velha por ter recebido castigo dos deuses, uma vez que quando jovem ela recusara todos os homens e acabou passando o “prazo de sua adolescência”. Ela resolve então conduzir Risi à casa de Hortênsia, que fora usada pelos soldados da ONU e talvez lá ele pudesse descobrir algo.

Hortênsia havia sido uma bela mulher que passava os dias na varanda de sua casa toda bem arrumada, somente para se exibir. Nunca tinha saído com nenhum homem e permaneceu sua vida toda solteira. Ao morrer, deixou tudo para um sobrinho tonto. Dizia-se que mesmo após morrer Hortênsia continuava cuidando dele e toda manhã tinha um prato de comida à mesa.

Enquanto isso, Estêvão Jonas, o governante local, escreve uma carta ao Chefe Provincial para informar o que estava acontecendo em Tizangara. Na carta em tom confessional, Jonas conta que os soldados estão explodindo, mas que ninguém sabe o porquê ainda. Além disso, diz ele que quando sua mulher o toca, suas mãos se esquentam como se fossem carvão aceso, chegando um dia inclusive a pegar fogo. Ele teme um dia explodir também.

Massimo Risi e o tradutor vão ao gabinete de Jonas para ouvir o depoimento de Deusqueira, que havia sido gravado pelo governante. A fita começa a tocar e nela a prostituta conta que os homens realmente explodem e o que causa as explosões são as mulheres. Porém, Jonas para a fita diversas vezes e não se entende exatamente o que ela sabe sobre o assunto. Até que a reunião é interrompida por outra explosão.

Sem mais saber o que fazer, Risi e o tradutor resolvem ficar andando pela cidade para se distraírem, ao que encontram o hospedeiro. Ele estava a procurar o irmão tonto de Temporina, que havia saído de casa dizendo que ia matar o italiano. Num dado momento, Risi tem uma visão de Temporina vindo em sua direção e tem um desmaio. Eles resolvem voltar para a pensão e o hospedeiro conta as histórias das primeiras explosões.

Conta ele que quando teve a primeira explosão, as pessoas acharam que ainda era a guerra e se esconderam na floresta. Lá, ele encontrou sua mãe, que lhe contou uma velha história sobre o flamingo. Num tempo em que não havia noite, era sempre dia, um flamingo disse que faria seu último voo e que iria para outra terra, a terra das estrelas. Quando o flamingo partiu, o bater das asas fundiu-se com o horizonte; até que o flamingo se extinguiu e a noite nasceu naquela terra.

No outro dia, prendem o padre Muhando, que dizia ter sido quem causou as explosões. Quando conseguiram conversar com ele, Risi e o tradutor ouvem sua história incerta e não lhe dão confiança. Eles percebem que Muhando, que vivia a xingar Deus pelas ruas, realmente enlouquecera e não sabia direito o que estava falando.

No dia seguinte, o tradutor resolve visitar seu pai e Risi pede para acompanha-lo por temer ficar sozinho. O velho Sulplício não os recebe bem e se recusa a falar com o estrangeiro. Por fim, ele acaba fazendo uma série de críticas à presença estrangeira no país, à colonização e aos dirigentes locais, que se dizem salvadores, mas também fizeram muita coisa ruim. O tradutor conta logo depois que Estêvão Jonas assumiu o comando, Sulplício, na época policial, prendeu o sobrinho de Jonas. Dona Ermelinda ficou furiosa e em um instante o moço estava solto e Sulplício é que ficou preso com as mãos amarradas. Ermelinda ainda tacou sal nas feridas e ordenou que só o soltassem no dia seguinte. Após essas histórias ouve-se uma nova explosão e Sulplício diz que essa não era uma explosão de estrangeiros, mas sim uma das explosões reais, de gente ali da terra mesmo.

Quem havia explodido era o sobrinho tonto de Hortênsia, irmão de Temporina. Risi e o tradutor foram para a cidade tentar entender o acontecido e encontraram o padre Muhando, já liberto, a praguejar contra Deus por ter deixado o moço morrer. Em seguida, encontraram o maior feiticeiro da cidade, Zeca Andorinho, que contou a eles que havia feito sobre encomenda dois feitiços para Risi. Um deles era um likaho de sapo, que faria ele inchar e explodir. O outro, um likaho de cágado, que o protegeria.

Então, Zeca Andorinho diz que fez o likaho de sapo para os homens que explodiram e começa a contar sobre eles, mas sua fala é incerta e não se sabe exatamente o que ele quer dizer com aquilo. Porém, deixa Risi avisado que, apesar de Zeca ter feito o likaho de cágado para protege-lo, o italiano deveria tomar cuidado onde pisava.

Um dia, o tradutor entra no quarto de Risi e o descobre arrumando suas malas para partir. Sem mais saber o que fazer, perdido em um labirinto, ele resolvera ir embora. Então, ele mostra uma gravação que fez de Deusqueira onde ela conta como foi quando o zambiano explodiu.

No dia seguinte o italiano sai com Temporina para ir se despedir do padre Mujando e o tradutor resolve ir à casa de Estêvão Jonas para informa-lo da partida de Risi. Chegando lá, estava uma grande confusão, pois ele gritava e xingava Ana Deusqueira dizendo que ela que havia causado as explosões. Ela, por sua vez, diz que ele é que era o culpado, pois ele desviava o dinheiro destinado para remoção das minas e plantava mais ainda para conseguir mais dinheiro. Dona Ermelinda chega e, para o espanto de todos, acode Deusqueira e expulsa Estêvão de casa.

O tradutor vai informar aos outros o que havia acontecido e Temporina decide ir se juntar à Deusqueira. Um tempo depois, ela volta dizendo que Estêvão e seu capanga, Chupanga, decidiram fugir para outro país e que iriam explodir a barreira para que a cidade toda fossem inundada e não sobrassem provas das minas. O tradutor e outros resolvem ir atrás para impedir, mas Risi deveria ficar ali, pois o negócio deveria ser resolvido por gente ali da terra. Apanharam Chupanga no meio da estrada e o levaram à Tizangara na presença de Zeca Andorinho e do velho Sulplício. Decidem não matar Chupanga, mas ele deve ir embora e levar Ermelinda junto.

Voltam Risi, o tradutor e Sulplício para casa. À noite, o tradutor vê seu pai tirar os ossos para dormir, coisa que o velho sempre disse que fazia, mas ele nunca tinha acreditado nessas histórias do pai. Dormem os três ali fora sob a árvore e, ao despertarem no meio da noite, descobrem que não há mais país. Tudo tinha sido engolido por um grande abismo. Chega, então, um barco carregando os ossos de Sulplício, que os coloca de volta ao lugar e chama Risi para ir ver onde os explodidos se encontravam. O italiano nega e Sulplício entra no barco e vai embora. Risi então escreve seu último relatório dizendo que o país havia sumido. Ele faz um avião com o papel e joga em direção ao abismo. Os dois se sentam e ficam esperando um novo barco chegar, esperando um outro voo do flamingo.

Lista de personagens

Massimo Risi: italiano encarregado pela ONU de investigar as estranhas explosões em Tizangara.
Tradutor: homem designado pelo governante locar para acompanhar Risi e servir de tradutor.
Sulplício: pai do tradutor.
Temporina: mulher com esbelto corpo de jovem e rosto de velha.
Dona Ermelinda: primeira-dama local, esposa de Estêvão Jonas.
Estêvão Jonas: governante local.
Ana Deusqueira: primeira e única prostituta de Tizangara.
Padre Muhando: padre que enlouquecera e vivia pela rua gritando injúrias a Deus.
Zeca Andorinho: maior feiticeiro de Tizangara.
Chupanga: capanga de Estêvão Jonas.
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ANÁLISE DA OBRA

Contexto histórico


No início do século XVI, Portugal iniciou a ocupação do território onde hoje é Moçambique, mas em 1885, com a Conferência de Berlim (que partilhou a África conforme os interesses das superpotências), Moçambique se tornou uma ocupação militar. No início do século XX, o país havia se tornado uma ocupação colonial portuguesa.

Em 1964 teve início a Guerra de Independência de Moçambique entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e as Forças Armadas de Portugal. Esta guerra durou dez anos e assolou o país, que conseguiu sua independência em 25 de junho de 1975. Porém, os novos estados independentes não tinham como manter a infraestrutura do país e houve uma grande crise econômica.

Durante todo o conflito, a FRELIMO, que tinha ligações políticas com países comunistas (URSS e outros), foi criando em Moçambique "zonas libertadas", que eram administradas pelas forças de libertação. Com a conquista da independência, a FRELIMO tentou implantar no país uma série de melhorias na educação, agricultura, saúde e outras áreas. Porém, com a crise econômica, os planos não surtiram efeito e acabaram por agravar a crise.

Nesse cenário de instabilidade económica e sócio-política, dá-se início à Guerra Civil Moçambicana em 1976, entre o exército de Moçambique e o exército rebelde da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). Após 16 anos de guerra, em 4 de outubro de 1992, a FRELIMO e a RENAMO assinam um Acordo Geral de Paz, em Roma. O governo de Moçambique solicita, então, o apoio da ONU para o desarmamento das tropas restantes. A tropa das Nações Unidas em Moçambique, a ONUMOZ, apoiou esse trabalhado durante cerca de dois anos e, em 1994, ouve a formação de um exército unificado e a organização das primeiras eleições gerais multipartidárias.

Um país em pedaços

A ação de "O último voo do flamingo" se dá nos primeiros anos após a guerra de Independência e os anos de guerrilha. Nas palavras do próprio Mia Couto quando da obtenção do Prêmio Mário António em 2001, este romance fala sobre a "perversa fabricação de ausência - a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos". Dessa forma, "O último voo do flamingo" nasce como fruto de uma nação profundamente agredida pelos anos de ocupação, pelas guerras e pela ganância dos poderosos, uma terra que não suporta mais essa situação.

As explosões que ocorrem em Tizangara, terra fictícia onde se passa a narrativa, são tanto de estrangeiros quanto de moçambicanos. Os anos de conflito em Moçambique deixaram para trás tanto minas terrestres reaisquanto minas metafóricas, que seriam os conflitos sócio-políticos e outras mazelas da população local. Assim, poderíamos dizer que Moçambique se tornou uma "nação-mina", pronta para explodir a qualquer momento.

No livro de Mia Couto, os soldados da ONU explodem sem deixar nenhum rastro, exceto seu boné azul e o orgão. Essas estranhas explosões que acontecem aos estrangeiros são explicações dadas pelo povo local, que busca em sua própria cultura uma forma de entender o que acontece a seu redor. Dessa forma, a explosão de um estrangeiro de forma sobrenatural seria como uma vingança da própria terra, fato que encontra eco nas palavras do feiticeiro Zeca Andorinho e do velho Sulplício.

Como as explicações para os estranhos acontecimentos só se dão através do mito local, o italiano Massimo Risi não consegue entender o que está se passando mesmo falando português. Para ele o problema não é a língua, mas entender aquele mundo. Assim, é buscando nas raízes e na memória local é que se consegue reconquistar e preservar a identidade africana. E, através disso, consegue-se "explodir" toda forma de domínio.

Esse domínio, porém, às vezes nem é só estrangeiro. Em "O último voo do flamingo" vemos o domínio totalitário dos próprios governantes locais, que se esqueceram para o que lutaram nos anos de guerra e passaram somente a pensar na própria ganância. Nessa obra, o ataque não se dá somente à presença opressora de povos estrangeiros, que da África parecem nada entender, mas também àqueles poderosos que, movidos pela ganância, se esquecem de sua própria terra.

O país arrasado pelos problemas sociais, económicos e políticos, dividido quanto a sua própria identidade, é simbolizado ao final do livro pela própria terra que explode. As duas personagens centrais, Massimo Risi e o tradutor, restam sozinhos nesse abismo que sobrou da terra onde antes existira todo um país a espera do que virá a acontecer. Ao final, o estrangeiro continua sem entender o país e a própria África, que continua um mistério. Só resta aos dois esperar que um outro voo do flamingo faça o sol voltar a brilhar depois de tanta escuridão.

Comentário do professor Deco Duarte, do Colégio Gregor Mendel:

"O último voo do flamingo", do moçambicano Mia Couto - um dos autores lusófonos mais influentes da contemporaneidade -, desloca nosso olhar para o continente africano, em especial para a vila fictícia de Tizangara, no interior de Moçambique, local onde um acontecimento incomum chama a atenção da comunidade internacional: os soldados da ONU, enviados para vigiar o processo de paz após anos de guerra civil, começam a explodir sem uma razão aparente, restando deles apenas o órgão genital. Para investigar o fato, é enviado à região o italiano Massimo Risi, inspetor da ONU. Logo à sua chegada, Estevão Jonas - o administrador local -, em uma demonstração do progesso do lugarejo, oferece ao estrangeiro um tradutor, apesar da fluência dele na língua local. Será esse tradutor, que também é o narrador da história, um dos responsáveis pela mudança gradativa da visão de mundo do italiano. De um ceticismo inicial em relação aos valores locais, Massimo terá de se adequar a um modo novo de ver as coisas, despindo-se de seus valores eurocêntricos, os quais parecem de pouca valia naquele universo mágico. "O último voo do flamingo" é uma narrativa de formação, na qual ocorre um processo de africanização do europeu, numa espécie de colonização às avessas. Ao apaixonar-se pela estranha Temporina - mulher jovem com o rosto de velha -, o italiano será capaz de compreender as coisas da terra e despir-se da racionalidade ocidental.

Mia Couto é um autor muito atento às questões políticas de seu país, e o episódio serve de pretexto para o desfile de um sem número de temas que dizem respeito à constituição atual de Moçambique e que podem pegar o leitor brasileiro mais desinformado de surpresa. A obra trabalha com questões como o respeito às tradições locais, a ingerência estrangeira em assuntos internos de uma nação, a corrupção política, a riqueza da cultura oral, dentre outros. Assim, muitos dos personagens espelham esses temas em sua constituição: Estevão Jonas, o administrador local, encarna a corrupção e o desrespeito pelas tradições locais; Sulplício, o pai do tradutor, simboliza, por sua vez, a ancestralidade e o saber da experiência muitas vezes renegado em prol da novidade e da modernização. Vale ainda dizer que toda a narrativa se passa dentro de um clima que se assemelha àquilo que se convencionou chamar de "Realismo mágico" na literatura, apesar das negativas do autor em aceitar esse rótulo. Uma viagem profunda dentro de uma cultura que guarda muito de nossas raízes.

Fontes:
Guia do Estudante (Resumo)
Guia do Estudante (Análise)

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