sábado, 13 de outubro de 2012

Amadeu Baptista (Poemas Avulsos)


“A NOITE CAI”

A noite cai e o poeta parte para a cidade.
 O alforge vai cheio de sedimentações, beringelas, 
 leiras de feijão, e um potente holofote,
 para iluminar o tempo.

Recém-chegado da província, cabe-lhe 
 manusear o livro, o alfa, o ómega, ainda que 
 abomine tanto tumulto, tantos carros que 
 passam, tanto grito,

e se creia um centauro nas avenidas novas. Os
 bairros, as áleas rectilíneas, ampliam a 
 indiferença, havendo em tudo um poder

infernal de crateras sobre os muros, destroços
 nas janelas, marchas forçadas, farpas.

(Do livro “Atlas das Circussntâncias” . Ed. “Lua de Marfim”)

SONETO EXPOSTO

(ou uma certa ideia de memória do país)

O desengonçado trânsito cavernícola.
 A eterna crise com os dentes afiados.
 Um país de paisagens marítimas e vinícolas,
 em que uns são filhos e outros enteados.

O recorte da serra na distância.
 Os pardais semoventes sobre as praças.
 Alguns homens sombrios com a ânsia
 de não serem roídos pelas traças.

O redil organizado como um caos.
 Uns quantos menos bons e outros muito maus.
 Uma planície, uma cidade, um chaparral.

E em volta disto o mar, sempre indiferente
 do que queira ou não queira a sua gente.
 E fica no soneto exposto Portugal.

“TEMPLO DE LUXOR”

Sei agora que o gato tem espírito,
 um dom poético, uma expressão
 reveladora, perante o fogo
 é um brilho, sobre a água
 uma forma de ser que subtilmente
 usa os sentidos alerta para falar
 o idioma principal, esse mistério
 de prevalecer na crença
 da invocação egípcia, uma presença
 divina entre o silêncio, a vertigem
 e a intensidade que emerge do espaço
 e avassala as colunas, a impressiva
 modulação dos arcos, os blocos
 inclinados para dentro
 para que a rapidez inclua nos testículos
 uma parte devoradora e outra felina,
 uma parte excessiva e outra ágil
 nas sete mortes
 que antecedem o admirável suicídio.

O PINTOR APLAUDIDO PELA INSPIRAÇÃO

sou a inspiração que o pintor procura 
 em lugares desabridos e raramente encontra. 
 ele procura-me onde ninguém suspeita,
 e eu existo e não existo, sem que possa
 revelar a minha presença imperscrutável. 
 às vezes nem uma sombra sou e o pintor 
 não pode mais fazer do que lançar o olhar 
 sobre os desígnios do mundo, 
 a decifrar a amplitude da luz 
 que reiteradamente lhe entrego
 quando o vento e a memória reproduzem 
 os decisivos sinais do desvendamento. 
 ele prepara a tela, estica-a na madeira, cria 
 as condições para que o abismo funcione 
 e, com o olhar, arrisca procurar-me no mistério 
 em que a limpidez esboça uma formulação de vozes 
 e presenças complexas. inspiro-o, inspiro-o, sempre,
 e o seu olhar é dramático e abrupto, a convergir
 num julgamento sumário, uma ameaça
 em que o sangue assume a dimensão de um incêndio,
 uma devastação. onde estou? onde está a linguagem
 que comigo vem? 
 onde estarei antes mesmo de, na sua nuca, 
 me tornar implícita no que quer que pense? 
 onde estarei na cabeça do pintor? 
 onde lhe inflijo o golpe para que tudo desvende
 para nada desvendar, levando-o 
 a uma folha de nogueira e uma marca na carne como adivinhação 
 e indício seguro de um prodigioso esplendor? 
 essa marca lacera-o,
 essa marca impele-o para um exercício 
 de hipóteses entre as escolhas inúmeras 
 e, num momento, o pintor decide-se por uma ideia simples, 
 cabendo-lhe aguardar que o rastilho magnífico se incendeie. 
 o meu rastilho, a inspiração, o confronto inevitável 
 com o clarão que lhe sitia as têmporas e ele sabe existir 
 quando opta entre este e aquele pincel de cerdas muitas espessas,
 ou liberta o óleo na superfície danada que o mata em cadeia
 e lhe coloca no coração insuperável
 a última questão que a pintura levanta. 
 o pintor é bravio, evoca a distância, transpõe a agitação,
 faz coincidir a incoincidência com o tumulto e o uso, 
 semicerrando as mãos, sentindo no pescoço
 as forças avassaladoras e vitais que o entregam
 à tarefa de dar corpo ao corpo da existência.
 sem que me veja, o pintor pressente-me, 
 convoca-me, aceita-me, 
 e as cores soltam-se-lhe das mãos, remontam à inocência.
 o pintor é um eremita a perscrutar
 a pedra, sondando-lhe o interior, a ver
 na escuridão uma seara povoada por infinitas
 legiões de camponeses que mergulham as mãos na luz 
 e, como anjos, 
 vislumbram no horizonte imperfeito um mar de trigo a arder,
 sempre a arder, na distância. 
 o pintor procura-me,
 procura-me em lugares desabridos, procura-me
 do início ao fim da vida, sempre a supor
 que só me encontrará pela possibilidade perpétua
 do desencontro, esta pedra, esta colheita, tudo quanto
 irradia pelo centro nervoso do pintor 
 sempre que a inquietação sobrevem e a cegonha 
 e a garça cortam o ar irrespirável,
 ou um fio de azeite flui na malga nacarada e azul,
 ou o leite fumegante se derramada,
 lentamente se derrama para que a visão prevaleça
 e o latido de um cão negro, mais do que ouvir-se ao longe, possa ver-se. 
 o pintor sabe, ou suspeita, insidiosamente,
 que a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
 e o meu assédio é total, brutal, eficaz. 
 entrego o poder de sonhar ao pintor e ele constrói
 destruindo, e destrói, construindo, 
 sobrepondo as camadas de tinta numa organização 
 envolvente e transgressora, prefigurando no caos 
 a maciez do espanto e o orvalho da força. 
 não havia no mundo esta irrisão, não estava esta mão
 a segurar o encarnado na tela omnisciente,
 não podia esta asa reflectir na treva a indefectível
 aventura, mas, de repente, a alguma coisa 
 qualquer coisa se acrescenta, 
 o lento corrupio emerge da criação, 
 a luz faz-se,
 apartam-se as águas, 
 há o homem, há a mulher.
 e eu a atormentá-lo sempre, a perseguir o artista,
 a zurzir-lhe nos ombros a vara da aflição e do fascínio, 
 a prender-lhe aos cabelos a escuridão das casas 
 e dos lugares em que concebe um traço e outro, 
 um espaço e outro espaço. 
 ali está a árvore dos seus mortos, 
 aqui está a mãe a espevitar o lume, 
 naquele berço os filhos que há-de ter
 e há-de ver crescer, 
 ali está, no exacto lugar em que a luz oscila,
 a figura subtílima que só em sonhos pode ver, 
 o quadro. 
 o quadro, ainda,
 com todas as suas ramificações obscuras 
 e os seus lados brilhantes. 
 inspiro-o, inspiro-o sempre. 
 e o pintor recomeça,
 a obra há-de fazer-se. a boca solta 
 vários sentidos nesse único sentido, a boca 
 regurgita o negro e a alegria.
 de novo o levo a preparar a tela, de novo prende e liga
 as coisas entre si, esta tesoura apara, 
 aquele grampo une, segura
 esta travessa os paus duma jangada que o pintor quer 
 encontrar para rumar ao sul. 
 é agora um jovem e vai-se enamorar.
 no ar incendiado a rapariga passa e o pintor 
 perscruta-a com o coração. 
 a uma janela, penteia-se, a mulher,
 e sente-se o seu perfume a invadir o ar.
 tens nome, rapariga? e o pincel responde com a densa 
 intrepidez de quem está no incêndio para morrer
 e pôr o corpo todo na pincelada breve. 
 eis os cabelos negros, essa camisa branca. 
 e um seio desenha-se. na farta cabeleira 
 alastra a luz perfeita, como se a luz soltasse,
 naquela zona escura, toda a paixão que assiste
 a quem desvenda a terra. 
 tens nome, rapariga? e o pintor procura-a, 
 procura-me o pintor,
 e não sabe se existo ou se não existo,
 e como assim o induzo à maldição de sempre,
 ou lhe segredo ao ouvido o que não quer ouvir. 
 encontram-se no real todos os vestígios 
 com que se armam as cenas, os sinais poderosos 
 que há nos gritos dos homens. 
 os símbolos que utiliza são do chão que lhe chegam,
 anota na vertigem a vertigem dos dias.
 os homens que conhece possuem um vigor
 que a si mesmo ultrapassa. 
 um deles é um amigo, morreu assassinado. 
 morreu por pouca coisa.
 quando matam alguém porque tem fome apenas 
 e é pão que reclama , morre-se sempre 
 por muito pouca coisa. de madrugada o mataram, 
 à queima-roupa o mataram, 
 com um tiro na nuca, porque pedia pão 
 e era pintor também. 
 o pintor interpreta esta morte como se lhe tivessem 
 disparado o revólver na boca, 
 o sangue cai em flocos como se estivesse a nevar
 e a neve em presença fosse uma pintura vermelha,
 extensa, obsessiva, aterradora.
 o pintor amplia a verosimilhança dos temas,
 procura e procura-me, procura
 e encontra-me,
 e eu inspiro-o a que aja.
 havia um animal numa certa casa antiga, 
 tantas vezes o viu que acabou por esquecê-lo. 
 até que, ali onde trabalha, entregue a pensamentos
 que não pode explicar, o viu surgir do nada, a voar
 sobre os quadros. então aconteceu
 que impôs à tela branca o animal acossado
 e o pintou assim, num duplo encantamento
 de o estar a ver ali e onde o vira quando, 
 não mais que um menino, representava a noite
 com pequenas estrelas traçadas a carvão.
 esse animal, sou eu, obviamente,
 que em várias noites venho por montanhas
 e vales a inspirar, 
 a conspirar,
 para despertar no pintor o que em si dorme há séculos
 e em pura fúria persiste sob o eterno interdito
 ou essa lâmpada, 
 a balbuciante lâmpada da tristeza. 
 a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
 e eu instigo o pintor a que me procure
 para que sobre as coisas outra coisa perdure.
 algumas destas figuras são o pintor a sonhar.
 algumas destas figuras são o pintor a sofrer.
 aqui, ali, onde quer que me encontre e te encontre
 o pintor não pode esmorecer. talvez
 seja possível entre a penumbra ver. a inspiração,
 a pintura, são uma revelação incerta,
 sem limites,
 onde os vendavais circulam.
 e não há refúgio para sobreviver.
 nesse clarão, às vezes, os sinais luminosos
 que estão em toda a parte,
 mas permanecem invisíveis porque não sabemos,
 ou porque não podemos, ainda, procurar,
 aparecem, 
 tal como acontece ao espírito do artista,
 visível a olho nu,
 nas obras que executa.

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