quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Érico Veríssimo (Clarissa)


 Neste livro de 1933, primeiro romance de Érico Veríssimo, pertencente ao modernismo de segunda fase, o gosto pelo rigor da descrição, pela minúcia da fotografia, manifestasse como característica que o acompanharia sempre. Sua fidelidade à vida tal como ela é em toda a multiplicidade de variados aspectos, inclusive aqueles que se apresentam sórdidos e desagradáveis.

 Trata-se de uma composição realista que assegura a veracidade do cenário retratado e dos seres que nele se movimentam. O romancista não se impõe às personagens; ao contrário, prefere ver o mundo através das personagens; e isso as faz viver como gente de carne e osso.

 O universo de Clarissa, dependendo do ângulo em que observamos, pode ser muito limitado ou infinitamente amplo em sugestões e promessas. Na verdade, está circunscrito no estreito território da pensão da Tia Zina e sua população pequeno-burguesa consumida na luta inglória pelo ganha-pão de cada dia. Entretanto, a presença de Clarissa amplia pouco a pouco a significação desse cenário, porque a narrativa se organiza em torno de seu desdobramento psicológico, e o que de fato interessa é a sua descoberta em relação aos seres e às coisas que a cercam. Imperceptivelmente, o autor se dissimula, quase escondendo-se num segundo plano, e deixa que a revelação do mundo observado se apresente através das surpresas, dúvidas e curiosidades que preenchem a consciência de Clarissa. Assim, fica aberto um caminho que permite a passagem da simples fotografia para o romance psicológico, de maneira que o leitor já não perceba a história como coisa "armada", sentindo-a antes como parte integrante de uma experiência vivida. 

 A "naturalidade" do relato guarda esse atributo indispensável à grande ficção de onde nasce o verdadeiro mundo das personagens: a possibilidade de existir na realidade. Este segredo do romancista é a prova da sua sensibilidade diante do assunto extremamente complexo que escolheu - o mundo banal e opaco de todas as horas, redescoberto através da perspectiva (meio lógica, meio fantástica) da adolescência:

 "...sobre uma coluna de madeira escura, a um canto da sala rebrilha o aquário. Pirolito está agitado. Será que a luz elétrica o assusta? Clarissa se aproxima do vaso de cristal. Agora nota que a água parece toda cheia de rebrilhos. A janela, as lâmpadas elétricas, os móveis da sala, tudo se reflete no aquário."

 Ultrapassando o perigo, Érico Veríssimo preferiu que Clarissa, ela própria, o conduzisse entre coisas que vão aparecendo no fluxo da descoberta. O mundo juvenil, povoado de sonhos e fantasias, possuía uma peculiaridade inconfundível: estava todo ele "refletido no aquário", mudando o desenho a todo momento, metade de cada coisa revelada e a outra metade ainda interrogável na sombra. A realidade teria de ser captada no contorno do aquário, respeitando o mistério do universo de Clarissa que só a ela pertence. Se trata, basicamente, de um problema de linguagem, isto é, encontrar a linguagem que narre a consciência fantasiosa de Clarissa e, ao mesmo tempo, preserve a sua identidade, sem se confundir com a perspectiva adulta e racional do seu criador.

Personagens

Clarissa - adolescente que morava numa fazenda e foi estudar na cidade grande.

Ondina - a infiel, casada com Barata.

Amaro - um musico que cortejava Clarissa.

Tonico - garoto que perdera as duas pernas num acidente, era muito frágil e acaba morrendo.

Vasco - primo de Clarissa que vive em Jacarecanga.

Linguagem

 Fiel à estrutura da narrativa psicológica e à natureza da personagem, Érico Veríssimo optou por um estilo pictórico, no qual as descrições valorizam sobremaneira a visualidade. Tudo se oferece mediante uma infinita gama de variações cromáticas, tonalidades e reflexos que buscam estabelecer, na órbita do cenário físico, o espelho das filigramas psicológicas que compõem a imaginação juvenil. Daí a preferência do romancista, neste livro, pelo adjetivo, pelas imagens que realçam a natureza e integram uma visão caleidoscópica, iluminando o espaço circundante. Justamente sob esse aspecto, o autor de Clarissa evidencia sua vinculação com o panorama literário da época. Se a linguagem pictórica, o estilo cromático, tornam-se um recurso inteligente na elaboração da personagem, não é menos verdade que já pertencia a uma longa tradição da literatura sulina, que iria alcançar um de seus pontos altos naqueles dias da publicação de Clarissa. Trata-se da tradição simbolista, na qual germinaram as obras de Eduardo Guimaraens e Alceu Wamosy, cujas raízes profundas se estendem por toda a produção literária do início do século para alcançarem, por volta de 1930, as melhores manifestações do modernismo no Rio Grande do Sul. 

 Na linguagem de Clarissa encontra-se muito dessa herança simbolista presente no ambiente da época, os mais profundos estados de ânimo entregando-se na pura visualidade.

 O trabalho criador de Érico Veríssimo exerceu-se na reelaboração dessa vertente estilística, transferindo uma linguagem até aí mais própria à poesia para a prosa descritiva de Clarissa. A expressão apoiada no adjetivo e na seqüência de imagens visuais garante o clima encantatório da narrativa, aliás o único em que poderia nascer com verossimilhança a história de uma adolescente de quatorze anos ainda mergulhada no deslumbramento do descobrir-se. O próprio Érico viria a considerar, mais tarde, o seu livro como "uma coleção de aquarelas e poemetos em prosa em torno da vida cotidiana".

 No entanto, também o lado obscuro e amargo da vida ganha lugar no contexto de Clarissa. Está refletido na personagem de Amaro, o músico frustrado, já na casa dos quarenta anos, que contempla na vitalidade física e espiritual de Clarissa tudo aquilo que a vida lhe negou: segurança, alegria, imaginação - o sentimento de participar do mundo que se constrói a cada instante. Mas é tarde para voltar atrás; o tecido do tempo passado não se recompõe; e Amaro ama Clarissa à sua maneira, transferindo para ela a imagem da mulher que sempre idealizara e sabe que nunca chegará a possuir. Em certa altura, essa personagem, marcada pelo curso dos dias opacos e inglórios que lhe couberam, expressa a melancolia diante do futuro que não está mais ao seu alcance:

 "O raio de sol é de um outro mundo. Clarissa, se pudesse falar, se tu pudesses entender. Eu te diria que nunca desejasses que o tempo passasse. Eu te pediria que fizesses durar mais e mais este momento milagroso."

 Ao opor entre si as personagens de Clarissa e Amaro, como se tratasse de dois pólos da existência, a luz e a sombra, o passado e o futuro, este romance permite vislumbrar uma preocupação que, alimentada por Érico Veríssimo em livros posteriores, veio a ser um de seus temas recorrentes - o tempo; o comportamento dos seres perante o decurso do tempo, que é vida e morte, descoberta e esquecimento. 

 Outra marca da identidade do romancista é a preferência por personagens femininas. Neste romance, a "parte forte" da vida está representada muito mais nas mulheres (autoritárias como Tia Zina, promessas futuras como Clarissa) do que nos homens, que em geral, são indolentes, frustrados ou insensíveis.

Enredo

Clarissa marca o início de uma atividade criadora no qual Érico Veríssimo elevou o romance sulino ao seu ponto mais alto: recém-chegada do interior, Clarissa vai morar numa pequena pensão em Porto Alegre. Em contato com criaturas frustradas, entregues às pequenas misérias do cotidiano, a garota descobre a vida aos poucos, ora tranqüila ora aos sobressaltos.

 Nesta história, espécie de iniciação à vida adulta, Clarissa se depara com uma realidade que se revela em toda a sua crueza. Seu sonho, porém, é maior do que tudo.

 Retrato lírico de uma adolescente às vésperas de se transformar em mulher, Clarissa é um romance comovente que integra a observação social e o realismo psicológico.

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