quinta-feira, 25 de outubro de 2012

José de Alencar (Ao correr da pena) 29 de outubro: O Passeio Público


(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

Quando estiverdes de bom humor e numa excelente disposição de espírito, aproveitai uma dessas belas tardes de verão como tem feito nos últimos dias, e ide passar algumas horas no Passeio Público, onde ao menos gozareis a sombra das árvores e um ar puro e fresco, e estareis livres da poeira e do incômodo rodar dos ônibus e das carroças.

Talvez que, contemplando aquelas velhas e toscas alamedas com suas grades  quebradas e suas árvores mirradas e carcomidas, e vendo o descuido e a negligência que reina em tudo isto, vos acudam ao espírito as mesmas reflexões que me assaltaram a mim e a um amigo meu, que há cerca de um ano teve a  habilidade de transformar em uma semana uma tarde no Passeio público.

Talvez pensareis como nós que o estrangeiro que procurar nestes lugares, banhados pela viração da tarde, um refrigério à calma abrasadora do clima deve ficar fazendo bem alta idéia, não só do passeio como do público desta corte.

A nossa sociedade é ali dignamente representada por dois tipos curiosos e dignos de uma fisiologia no gênero de Balzac. O primeiro é o estudante de latim, que, ao sair da escola, ainda com os Comentários debaixo do braço e o caderno de significados no bolso, atira-se intrepidamente qual novo César à conquista do ninho dos pobres passarinhos. O segundo é o velho do século passado que, em companhia do indefectível compadre, recorda as tradições dos tempos coloniais, e conta anedotas sobre a Rua das Belas Noites e sobre o excelente governo do sr. Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos.

Assim, pois, não há razão de queixa. O passado e o futuro, a geração que finda e a mocidade esperançosa que desaponta, fazem honra ao nosso Passeio, o qual fecha-se às oito horas muito razoavelmente, para dar tempo ao passado de ir cear, e ao futuro de ir cuidar nos seus significados.

Quanto ao presente, não passeia, é verdade; porém, em compensação, vai ao Cassino, ao Teatro Lírico, toma sorvetes, e tem mil outros divertimentos agradáveis, como o de encher os olhos de poeira, fazer um exercício higiênico de costelas dentro de um carro nas ruas do Catete, e sobretudo o prazer incomparável de dançar, isto é, de andar no meio da sala, como um lápis vestido de casaca, a fazer oito nas contradanças, e a girar na valsa como um pião, ou como um corrupio.

Com tão belos passatempos, que se importa o presente com esse desleixo imperdoável e esse completo abandono de um bem nacional, que sobrecarrega de despesas os cofres do Estado, sem prestar nenhuma das grandes vantagens de que poderiam gozar os habitantes desta corte?

Quando por acaso se lembra de semelhante coisa, é unicamente para servir-lhe de pretexto a um estribilho de todos os tempos e de todos os países, para queixar-se da administração e lançar sobre ela toda a culpa. Ora, eu não pretendo defender o governo, não só porque, tendo tanta coisa a fazer, há de por  força achar-se sempre em falta, como porque ele está para a opinião pública na mesma posição que o menino de escola para o mestre, e que o soldado para o sargento, isto é, tendo a presunção legal contra si.

Contudo parece-me que o estado vergonhoso do nosso Passeio Público não é unicamente devido à falta de zelo da parte do governo, mas também aos nossos usos e costumes, e especialmente a uns certos hábitos caseiros e preguiçosos, que têm a força de fechar-nos em casa dia e noite.

Nós que macaqueamos dos franceses tudo quanto eles t~em de mau, de ridículo e de grotesco, nós que gastamos todo o nosso dinheiro brasileiro para transformar-nos em bonecos e bonecas parisienses, ainda não nos lembramos de imitar uma das melhores coisas que eles têm, uma coisa que eles inventaram, que lhes é peculiar e que não existe em nenhum outro país a menos que não seja uma pálida imitação: a flânerie.

Sabeis o que é a flânerie? É o passeio ao ar livre, feito lenta e vagarosamente, conversando ou cismando, contemplando a beleza natural ou a beleza da arte; variando a cada momento de aspectos e de impressões. O companheiro inseparável do homem quando flana é o charuto; o da senhora é o seu buquê de flores.

O que há de mais encantador e de mais apreciável na flânerie é que ela não produz unicamente o movimento material, mas também o exercício moral. Tudo no homem passeia: o corpo e a alma, os olhos e a imaginação. Tudo se agita; porém é uma agitação doce e calma, que excita o espírito e a fantasia, e provoca deliciosas emoções.

A cidade do Rio de Janeiro, com seu belo céu de  azul e sua natureza tão rica, com a beleza de seus panoramas e de seus graciosos arrabaldes, oferece muitos desses pontos de reunião, onde todas as tardes, quando quebrasse a força do sol, a boa sociedade poderia ir passar alguns instantes numa reunião agradável, num círculo de amigos e conhecidos, sem etiquetas e cerimônias, com toda a liberdade do passeio, e ao mesmo tempo com todo o encanto de uma grande reunião.

Não falando já do Passeio Público, que me parece injustamente votado ao abandono, temos na Praia de Botafogo um magnífico boulevard como talvez não haja um em Paris, pelo que toca à natureza. Quanto à beleza da perspectiva, o adro da pequena igrejinha da Glória é para mim um dos mais lindos passeios do Rio de Janeiro. O lanço d’olhos é soberbo: vê-se toda a cidade à vol d’oiseau, embora não tenha asas para voar a  algum cantinho onde nos leva sem querer o pensamento.

Mas entre nós ninguém dá apreço a isto. Contanto que se vá ao baile do tom, à ópera nova, que se pilhem duas ou três constipações por mês e uma tísica por ano, a boa sociedade se diverte; e do alto de seu cupê aristocrático lança um olhar de soberano desprezo para esses passeios pedestres, que os charlatães dizem ser uma condição da vida e de bem-estar, mas que enfim não têm a agradável emoção dos trancos, e não dão a um homem a figura de um boneco de engonço a fazer caretas e a deslocar os ombros entre as almofadas de uma carruagem.

A boa sociedade não precisa passear;  tem à sua disposição muitos divertimentos, e não deve por conseguinte invejar esse mesquinho passatempo do caixeiro e do estudante. O passeio é a distração do pobre, que não tem saraus e reuniões.

Entretanto, se por acaso encontrardes o diabo Coxo de Lesage, pedi-lhe que vos acompanhe em alguma nova excursão aérea, e que vos destampe os telhados das casas da cidade; e, se for noite em que a Charton esteja doente e o Cassino fechado, vereis que a atmosfera de tédio e monotonia encontrareis nessas habitações, cujos moradores não passeiam nunca, porque se divertem de uma maneira extraordinária.

Felizmente creio que vamos ter breve uma salutar modificação nesta maneira de pensar. As obras para a iluminação a gás do Passeio Público e alguns outros reparos e melhoramentos necessários já começaram e brevemente estarão concluídos.

Autorizando-se então o administrador a admitir o exercício de todas essas pequenas indústrias que se encontram nos passeios de Paris para comodidade dos freqüentadores, e havendo uma banda de música que toque a intervalos, talvez apareça a uma banda de música que toque a intervalos, talvez apareça a concorrência, e o Passeio comece a ser um passatempo agradável.

Já houve a idéia de entregar-se a administração a uma companhia, que, sem nenhuma subvenção do governo, se obrigaria a estabelecer os aformoseamentos necessários, obtendo como indenização um direito muito módico sobre a entrada, e a autorização de dar dois ou três bailes populares durante o ano.

Não achamos inexeqüível semelhante idéia; e, se não há nela algum inconveniente que ignoramos, é natural que o Sr. Ministro do Império já refletido nos meios de leva-la a efeito.

Entretanto o Sr. Ministro que se acautele, e pense maduramente nesses melhoramentos que está promovendo. São úteis, são vantajosos; nós sofremos com a sua falta, e esperamos ansiosamente a sua realização. Mas, se há nisto uma incompetência de jurisdição, nessa caso, perca-se tudo, contanto que salve-se o princípio: Quod Dei Deo, quod Cesaris Cesare.. 

A semana passada já o Sr. Pedreira deu motivo a graves censuras com o seu regulamento do asseio público. E eu que caí em dizer algumas palavras a favor! Não tinha ainda estudado a questão, e por isso julgava que, não dispondo a Câmara Municipal dos recursos necessários para tratar do asseio da cidade, o Sr. Ministro do Império fizera-lhe um favor isentando-a desta obrigação onerosa e impossível, e a nós um benefício, substituindo a realidade do fato à letra morta das posturas.

Engano completo! Segundo novos princípios modernamente descobertos em um jornal velho, a Câmara Municipal não tem obrigação de zelar a limpeza da cidade, tem sim um direito; e por conseguinte dispensa-la de cumprir aquela obrigação é esbulha-la desse seu direito. Embora tenhamos as ruas cheias de lama e as praias imundas, embora a cidade às dez horas ou meia-noite esteja envolta numa atmosfera de miasmas pútridos, embora vejamos nossos irmãos, nossas famílias e nós mesmos vítimas de moléstias provenientes destes focos de infecção! Que importa! La garde meurt, mais ne se rend pas. Morramos, mas respeite-se o elemento municipal; salve-se a sagrada inviolabilidade das posturas!

Filipe III foi legalmente assassinado, em virtude do rigor das etiquetas da corte espanhola. Não é muito, pois, que nós, os habitantes desta cidade, sejamos legalmente pesteados, em virtude das prerrogativas de um novo regime municipal.

A pouco tempo eu diria que isto era mais do que um contra-senso,  porém hoje, não; reconheço que o Ministro do Império não deve tocar no elemento municipal, embora o elemento municipal esteja na pasta do Ministro do Império, que aprova as posturas e conhece dos recursos de suas decisões.

Respeite-se, portanto, a independência da edilidade, e continuemos a admirar os belos frutos de tão importante instituição, como sejam a reedificação das casas térreas da Rua do Ouvidor, a conservação das biqueiras, o melhoramento das calçadas das Ruas da Ajuda e da Lapa, e a irregularidade da construção das casas, que se regula pela vontade do proprietário e pelo preceito poético de Horácio – Omnis variatio delectat.

Ora, na verdade um elemento municipal, que tem feito tantos serviços, que além de tudo tem poetizado esta bela corte com a aplicação dos preceitos de Horácio, não pode de maneira alguma ser privado do legítimo direito que lhe deu a lei de servir de valet de chambre da cidade.

Pelo mesmo princípio, sendo o pai obrigado a alimentar o filho, sendo cada um obrigado a alimentar-se a si mesmo, qualquer esmola feita pela caridade, qualquer instituição humanitária, como recolhimento de órfãos e de expostos, não pode ser admitido, porque constitui uma ofensa ao direito do terceiro.

E agora que temos chegado às últimas e absurdas conseqüências de um princípio arbitrário, desculpem-nos aqueles a quem contestamos o tom a que trouxemos discussão. Neste mundo, onde não faltam motivos de tristeza, é preciso rir ainda à custa das coisas as mais sérias.

A não ser isto, provaríamos que o Sr. Ministro do Império, tomando as medidas extraordinárias que reclama a situação, respeitou e considerou o elemento municipal, e deixou-lhe plena liberdade de obrar dentro dos limites de sua competência. Se me contestarem semelhante fato, então não terei remédio senão vestir o folhetim de casaca preta e gravata branca, e voltar à discussão com a lei numa mão e a lógica na outra.

Aposto, porém, que a esta hora já o meu respeitável leitor está torcendo a cabeça em forma de ponto de interrogação, para perguntar-me se pretendo escrever uma revista hebdomadária sem dar-lhe nem ao menos uma ou duas notícias curiosas.

Que quer que lhe faça? O paquete de Liverpool chegou domingo, mas a única notícia que nos trouxe foi a do desembarque na Criméia. Ora, parece-me que não é preciso ter o dom  profético para adivinhar os lances de semelhante expedição, que deve ser o segundo tomo da tomada de Bommarsund, já tão bem descrita, todos sabem por quem.

Há três ou quatro vapores soubemos que se preparava a expedição da Criméia; depois disto, as notícias vieram, e continuaram a vir pouco mais ou menos desta maneira. – As forças aliadas embarcaram. – estão em caminho. Devem chegar em tal tempo. – Chegaram. – Desembarcaram. – Reuniu-se o conselho general para resolver o ataque. – O ataque foi definitivamente decidido. – Começou o assalto. – Interrompeu-se o combate para que os pintores ingleses tirem a vista da cidade no meio do assalto. – Continuou o combate. – Fez-se uma brecha. – Nova interrupção para tirar-se a vista da brecha.

Isto, a dois paquetes por mês, dá-nos uma provisão de notícias que pode chegar até para meados do ano que vem. Provavelmente durante este tempo mudar-se-ão os generais, e os pintores da Europa terão objeto para uma nova galeria de retratos, os escritores tema para novas brochuras, e os jornalistas matéria vasta para publicações e artigos de fundo. E todo este movimento literário e artístico promovido por um bárbaro russo, o qual com a ponta do dedo abalou a Europa e tem todo o mundo suspenso! 

É um fenômeno este tão admirável como o que se nota no Teatro Lírico nas noites em que canta a Casaloni. A sua voz extensa e volumosa, e os enormes ramos de flores enchem o salão de tal maneira, que não cabe senão um pequeno número de espectadores; o resto, não achando espaço e não podendo resistir à  força de tal voz, é obrigado a retirar-se. Entretanto os desafetos da cantora dizem que ela não tem entusiastas e adoradores! Tudo porque ainda não compreenderam aquele fenômeno artístico e musical!

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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