sexta-feira, 12 de outubro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Primeira Parte: 3 de setembro: Conto de Fada


(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).


O título que leva este artigo me lembra um conto de fada que se passou não há muito tempo, e que desejo contar por muitas razões; porque  acho-o interessante, porque me livra dos embaraços de um começo, e me tira de uma grande dificuldade, dispensando-me da explicação que de qualquer modo seria obrigado a dar. Há de haver muita gente que não acreditará no meu conto fantástico; mas isto  me é indiferente, convencido como estou de que escritos ao correr da pena são para serem lidos ao correr dos olhos.

Um belo dia, não sei de que ano, uma linda fada, que chamareis como quiserdes, a poesia ou a imaginação, tomou-se de amores por um moço de talento, um tanto volúvel como de ordinário o são as fantasias ricas e brilhantes que se deleitam admirando o belo em todas as formas. Ora, dizem que as fadas não podem sofrer a inconstância, no que lhes acho toda a razão; e por isso a fada de meu conto, temendo a rivalidade dos anjinhos cá deste mundo, onde os há tão belos, tomou as formas de uma pena, pena de cisne, linda como os amores, e entregou-se ao seu amante de corpo e alma.

Não serei eu que desvendarei os mistérios desses amores fantásticos, e vos contarei as horas deliciosas que corriam no silêncio do gabinete, mudas e sem palavras. Só vos direi e sito mesmo, é confidência, que, depois de muito sonho e de muita inspiração, a pena se lançava sobre o papel, deslizava docemente, brincava como uma fade que era, bordando as flores mais delicadas, destilando perfumes mais esquisitos que todos os perfumes do Oriente. As folhas se animavam ao seu contato, a poesia corria em ondas de ouro, donde saltavam chispas brilhantes de graça e espírito. 

Por fim, a desoras, quando já não havia mais papel, quando a luz a morrer apenas empalidecia as sombras da noite, a pena trêmula e vacilante caía sobre a mesa sem forças e sem vida, e soltava uns acentos doces, notas estremecidas como as cordas  da harpa ferida pelo vento. Era o último beijo da fada que se despedia, o último canto do cisne moribundo.

Assim se passou muito tempo; mas já não há amores que durem sempre, principalmente em dias como os nossos, nos quais o símbolo de constância é uma borboleta. Acabou o poema fantástico no fim de dois anos; e um dia o herói do meu conto, chamado a estudos mais graves, lembrou-se de um amigo obscuro, e deu-lhe a sua pena de ouro. O outro aceitou-a como um depósito sagrado; sabia o que lhe esperava, mas era um sacrifício que devia à amizade, e por conseguinte prestou-se a carregar aquela pena, que já adivinhava havia de ser para ele como  uma cruz pesada que levasse ao calvário.

Com efeito, a fada tinha sofrido uma mudança completa: quando a lançavam sobre a mesa, só fazia correr. Havia perdido as formas elegantes, os meneios feiticeiros, e deslizava rapidamente sobre o papel sem aquela graça e faceirice de outrora. Já não tinha flores nem perfumes, e nem centelhas de ouro e de poesia: eram letras, e unicamente letras, que nem sequer tinham o mérito de serem de praça, que serviria de consolo ao espírito mais prosaico.Por fim de contas, o outro, depois de riscar muito papel e de rasgar muito original, convenceu-se que, a escrever alguma coisa com aquela fada que o aborrecia, não podia ser de outra maneira senão – Ao correr da pena

De feito, começou a escrever ao correr da pena, e como se trata de conto fantástico, não vos admirareis de certo se vos achardes de repente e sem esperar a ler o que escreveu. Estou persuadido que não gastareis o vosso tempo a censurar o título, que vale tanto como qualquer outro. Quanto ao artigo, correi os olhos, como já vos disse, deixai correr a pena; e posso assegurar-vos que, ainda assim, nem uns nem a outra correrão tão rapidamente como os ministros espanhóis diante das pedradas e do motim revolucionário de Madri.

Já sabeis em que deu toda esta história, e por isso prefiro contar-vos outras notícias trazidas pelos dois últimos paquetes a respeito da questão do Oriente, que , segundo uma observação muito espirituosa, tomou para a Áustria certo caráter medicinal de muita importância. Napier, como velho teimoso, continuava de namoro ferrado com a soberba Cronstadt, que em negócio de amores parece-me ter mais fé nos cossacos do que nos ingleses velhos. Entretanto por prudência o nosso almirante foi-se arranjando com Bommarsund para passar o inverno. Bem mostra que é inglês e teimoso. Jurou que havia de passar, e, como não lhe deixam passar o canal, embirrou que havia de passar o inverno. Queira deus, porém, que não seja o inverno que passe por ele!

Enquanto os ingleses na Finlândia se conservam frios, não por causa dos gelos do norte, mas sim por causa do fogo da Rússia, os ingleses de Londres saíram do sério e deram a mais formidável pateada em Mário, o belo tenor, que cantava Cujus animam  numa noite de representação em Convent-Garden.. A história desses motim teatral, contada pelo folhetim do Constitutionnel, deveria ser bem estudada por grande número dos nossos dilettanti, que se contentam em fazerem um barulho insuportável no teatro, desaprovando pobres artistas sem mérito, e deixando em paz os únicos responsáveis de semelhantes atos.

O povo de Londres é mais positivo; depois de ter desaprovado os cantores, obrigou a vir à cena o empresário, e a todos os seus speechs respondeu um só grito uníssono: money, money. A coisa não prestava, exigiam a restituição do dinheiro, o que era muito justo: até dez horas pagaram-se bilhetes recambiados! O empresário teve de repor dinheiro de sua algibeira, mas no dia seguinte Mário foi aplaudido com três salvas estrepitosas no romance da Favorita.

Decerto, a causa desta demonstração a favor de Mário não foi unicamente a sua bela voz de tenor e a sua presença agradável, mas também a influência da Favorita, que ainda nos desperta tantas emoções e na qual os parisienses, mais felizes do que nós, vão recordar atrasados ouvindo a Stoltz, que se esperava devia cantar no primeiro meado de agosto na ópera de Paris. Também nós tivemos esta semana nossas recordações bem doces da Stoltz e  da Favorita e lembramo-nos com saudade de Arsace na noite do concerto Malavazi, que esteve brilhante em todos os sentidos. Nada faltou, houve de tudo, e até desgostosos, que sentiam que ainda faltava alguma coisa; o que isto era não sei; é provável que fosse o chá do costume, que, a falar a verdade, não atino com o princípio higiênico por que foi banido dos concertos.

Além destas recordações, tivemos a nossa festa musical na segunda-feira, noite do benefício do Ferranti. O ator simpático cantou como nos seus bons dias, e desempenhou primorosamente a cena dos Prigioni de Edimburgo, que, à custa de esforços seus, foi o mais bem ensaiado possível. Nesta noite as mãos pagaram os prazeres do ouvido, num e noutro sentido, e, depois de muitas salvas de aplausos, consta-nos que o nosso barítono brilhante saiu do teatro mais brilhante do que nunca entrara.

Tão feliz como Ferranti não foram dois inspetores de quarteirão lá das bandas de São Cristóvão, que faziam o seu benefício à nossa custa, sem nem ao menos terem a delicadeza de nos advertirem. A polícia, que nem sempre está ocupada em dar passaportes e prender negros fugidos, assentou que, sendo a semana de benefícios, devia também fazer o nosso, o do público, demitindo-os, isto é, dispensando aqueles honrados cidadãos do grande obséquio que nos faziam em servir-nos de graça.

O excesso em tudo, porém, é prejudicial, e o benefício, quando não é pedido, é incômodo, como essa resolução dos números dos bilhetes de teatro que ontem foi posta em vigor. Tiram-nos os lenços e as marcas, que eram mais pitorescas e mostravam  no público uma delicadeza louvável. Acharam que isto era mau; dessem-nos coisa melhor, e não pusessem em homem grave na dura necessidade de ir ao teatro lírico recordar a tabuada. Além de não se saber que número terão as travessas e mochos, se pertencerão aos inteiros, aos quebrados ou aos décimos, faço idéia em que apertos não se verá um pobre homem que não souber ler ou que for míope, a procurar o tal número constante de um pedacinho de papel microscópio, que precisamente no momento necessário, e como para fazer pirraça, some-se no labirinto de uma carteira ou nas profundezas de um desses bolsos à maneira, de vastas dimensões!

Quando vi pela primeira vez enfileirados pelos recostos das cadeiras aqueles batalhões de números brancos, que sem licença e com a maior sem-cerimônia do mundo se iam retratando a daguerreótipo nas costas das nossas pobres casacas, julguei que aquilo seria uma medida policial, por meio da qual os agentes ocultos poderiam seguir fora do teatro algum indiciado ou suspeito de importância, que fosse reconhecido no salão. Mas nunca pensei que, quisessem ainda numerarem os bancos as casacas dos dilettanti, quisessem ainda numerar-lhes os assentos, e obrigar um homem a comprar por dois mil réis o direito de estar preso numa cadeira e adstrito a um número como um servo da gleba.

Também o que nos faltava era justamente uma nova questão de bancos, embora de espécie diferente, porque a outra, a das sociedades comanditárias, já vai ficando velha e está quase a ir fazer companhia à do Oriente, à dos seiscentos contos e outras, que provavelmente hão de reaparecer daqui a algum tempo, como está sucedendo na Câmara dos Deputados com a das presas da independência.

O crédito proposto pelo Ministério da Marinha tem sido combatido por falta de uma liquidação regular; mas tudo induz a crer que desta vez o negócio ficará decidido. E depois disto, neguem-me que o Brasil seja um gigante! Uma criancinha que só aos trinta anos lhe começam a sair as primeiras presas! A falar a verdade, já era mais que tempo de soltarem-se estas malditas presas, por causa das quais andam presas tantas algibeiras.     

Falemos sério. – A independência de um povo é a primeira página de sua história; é um fato sagrado, uma recordação que se  deve conservar pura e sem mancha, porque é ela que nutre esse alto sentimento de nacionalidade, que faz o país grande e o povo nobre.Cumpre não marear essas reminiscências de glória com exprobrações pouco generosas. Cumpre não falar a linguagem do cálculo e do dinheiro, quando só deve ser ouvida a voz da consciência e da dignidade da nação.

Com essa questão importante tem ocupado a atenção da Câmara a discussão de um projeto do Sr. Wanderley sobre a proibição do transporte de escravos de uma para outra província. Este projeto, que encerra medidas muito previdentes a bem da nossa agricultura, e que tende a prevenir, ou pelo menos atenuar uma crise iminente, é combatido pelo lado da inconstitucionalidade, por envolver uma restrição ao direito de propriedade. Entretanto a própria Constituição autoriza a limitar o exercício da propriedade em favor da utilidade pública, que ninguém contestará achar-se empenhada no futuro da nossa agricultura e da nossa indústria, principal fim do projeto.

Por hoje basta. Vamos acabar a semana no baile da Beneficência Francesa, onde felizmente não há, como em Paria, a quête feita pelas lindas marquesinha, e onde teremos o duplo prazer de beneficiar aos pobres e a nós mesmo divertindo-nos. 

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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