domingo, 14 de outubro de 2012

Marilda Confortin (Poemas Avulsos)


GOTA A GOTA

Nasci. 
Era um poço raso, vazio; 
com cinco filtros perfeitos 
e um sexto, 
que às vezes fazia sentido.

Através deles, 
como um dreno ao viés,
a vida me foi preenchendo: gota a gota.

Primeiro, assentou pedras, as mais pesadas,
depositadas bem no fundo da infância.
Serviram para controlar a umidade da alma
e fixar meus pés no chão.

(Nasci tão leve e líquida. Não fosse esse peso,
eu seria um pássaro ou um peixe.)

Depois, a vida pregou-me outras peças.
Encaixou-as umas sobre as outras, 
deixando raros intervalos entre elas.
Por esses vãos,
circularam rios de sentimentos. 

E assim,  foi fazendo seu trabalho.
Construindo-me. 
Habitou-me de amigos, amores, filhos. 
Ergueu paredes, dividiu-me. 
Plantou jardins, porões, sótãos, teias. 
Quando percebi, estava cheia. 

Comecei a escavar-me.
Estou quase no  fim.
Purgando: gota a gota
Abrindo espaços dentro de mim.

APURANDO OS SENTIDOS - EM ITAPUà

Manhãs têm gosto de orvalho.
Pequenos Quixotes lutam contra ondas de espuma. 
Crianças: adultos ensaiando tsunamis. 

A tarde tem cor de sol.
Garotos pedalando na orla curvilínea. 
Adolescentes: homens ensaiando amor com suas magrelas.

A noite tem cheiro de vento.
Enamorados ensaiam pecados nos muros. 
A noite ilumina plânctons no mar. 
O amor fluoresce no escuro.

BIENAL 

Muita gente falando ao mesmo tempo 
e as palavras - mudas 
presas nos livros. 

CARTA À AMIGA 
Falando em cartas... essa escrevi há muito tempo, a uma amiga portuguesa

Estio

Perdoe a falta de assunto,
de acento
e os erros de Portugal. 

Talvez eu esteja assim
por ser outono ou nada, 
por não ser uma coisa
nem ostra,
apenas um hoje qualquer,
sem promessa de amanhã. 

Talvez só me faltem humos, 
humor, rumos, amor.

Ou quiçá essa falta de assunto
seja o estio que antecede
outra safra de cios,
Sinto tanto frio... 

FAÍSCA DE VIDA 

Fazia tempo que eu não via a lua,
não saia à rua,
não entrava na tua.

É que com o tempo,
o tempo fechou.
a neve caiu
e eu fiquei assim...
só 
a ver navios.

Não fosse o relâmpago dos teus olhos
eu nem lembraria
que um dia existiu céu.

CLARÃO DA LUA

O teu clarão entra pela janela
Invade as profundezas do meu coração
Que bate forte, feito bateria
Num concerto ao vivo, cheio de emoção

Me faz lembrar o tempo em que a vida
Era curar feridas feitas pelo amor
Em que habitavas todas as esquinas
Como lamparina a me fazer cantor

Mas que saudades da viola linda
Que te faz infinda como o céu e o mar
Das madrugadas, todas encharcadas
Com beijos de fadas, sempre a me amar

Das caminhadas pela noite adentro
Com tua presença a me acompanhar
Balet mais lindo, vinhas me seguindo
Um passo atrás do outro até quase alcançar

Estou sentindo aquela nostalgia
Parece magia, que me faz sair
Viola em punho, o sangue fervendo
Coração batendo, querendo explodir

Vem minha musa, sou teu seresteiro,
Vem, me toma inteiro, me faz recordar
Mais que amantes, éramos errantes
Sempre que o dia vinha nos matar

Mas que saudades, da viola linda
Que te faz infinda como o céu e o mar
Das madrugadas todas encharcadas
Com beijos de fadas, sempre a me amar

Minhas lembranças vão me absorvendo
E eu quase cedendo, acho que vou chorar
Não sei se vale, mas tô com vontade
De matar saudades de você, luar. 

AH MEU FILHO 

Ah... meu filho...
Quando é que você vai crescer?
Quando vai aprender
a descascar cebolas 
sem chorar por elas?

Protege esse peito do frio,
calce sapatos,
cuidado pra não se ferir
nos próprios cacos.

Quando é que você parar
de amar tanto,
deixar de ser santo
aprender a ser mau
igual àqueles que partiram,
que feriram seu coração?

Ah... Meu coração....

Quando é que vou aceitar
que você já cresceu
e não tem medo
de se machucar
feito eu? 

VOLÚVEL 

Tem hora, sou da paz.
Quero casa, casar,
morar num harém,
ser oásis, caça, 
presa, amélia, amém.

Às vezes, creio em buraco negro,
camada de ozônio, câncer no seio,
falta de hormônio, aids, escorbuto, 
mundo corrupto, degelo, desgraça,
apocalipse... Vixe!

Noutras, acho graça
do que disse. 
Quero viver mais cem anos
curtir a velhice, 
fazer planos,
artes plásticas,
ginástica,
poesia, música,
teatro, cinema,
amor...

Ontem te amei.
Hoje, não sei. 
  
SEM MEDIDAS

Quem mediu o dia
não nos conhecia,
nem sabia nada
sobre nosso amor.

Se soubesse,
não se atreveria
a findar o dia
ao amanhecer.

Hoje
vai ter tantas horas
que, quem sabe, agora
já seja amanhã.
No entanto, 
para nós,
é tão cedo ainda;
é ainda ontem;
ainda é dia,
nem anoiteceu.

Nosso amor ninguém mensura.
Dura enquanto o tempo para.
Para enquanto lua.
Lua enquanto há mar. 

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