quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Charles Dickens (Manuscrito de um Louco)


“Sim, de um louco! Como essa palavra teria afligido o meu coração muito tempo atrás! Como teria despertado o terror que costumava me assolar algumas vezes, lançando o sangue a zunir e formigar pelas minhas veias, até o suor frio de medo estagnar em grandes gotas sobre a minha pele e os meus joelhos baterem um no outro de pavor! Agora, no entanto eu gosto dela. É uma boa denominação. Apresente-me o monarca cuja carranca zangada foi alguma vez tão temida como o olhar penetrante de um louco – cujo machado e a forca foram quase tão infalíveis quanto as mãos fatais de um louco. Rá! Rá! É uma coisa formidável ser louco! Ser espiado como um leão selvagem através das barras de ferro – ranger os dentes e uivar, por toda a longa e calma noite, ao alegre tilintar de uma corrente pesada – e rolar e se enroscar na palha, transportado por música tão feroz. Viva o hospício. Ah! É um lugar fora do comum.

“Eu me lembro dos dias que eu tinha medo de ser louco; quando eu costumava ter sobressaltos durante o sono, cair de joelhos e rezar para ser poupado da maldição da minha raça; quando eu fugia de uma aparência de felicidade e divertimento para me esconder em algum lugar solitário e passava as horas cansativas observando a febre que consumiria meu cérebro aumentar. Eu sabia que a loucura estava misturada com meu próprio sangue e com o tutano dos meus ossos. Que uma geração havia falecido sem que a peste aparecesse entre eles e eu seria o primeiro na qual ela ressuscitaria. Eu sabia que devia ser assim; sempre tinha sido assim, e quando eu me encolhia em algum canto sombrio de um quarto cheio de gente e via homens sussurrar, apontar e olhar em minha direção, sabia que eles estavam falando sobre o louco condenado. Em resposta, eu me retirava às escondidas para me deprimir na solidão.

“Fiz isso por anos; longos anos foram aqueles. As noites aqui são longas às vezes – muito longas, mas elas não são nada perto daquelas noites inquietas, e sonhos terríveis eu tinha naquela época. Eu me arrepio só de lembra-las. Formas grandes e sombrias com rostos maliciosos e zombeteiros agachavam-se nos cantos do quarto e curvavam-se sobre minha cama à noite, instigando-me a loucura. Elas me contam em sussurros fracos que o cão da velha casa da qual o pai do meu pai morreu fora manchado por seu próprio sangue, derramado por sua própria mão em loucura enfurecida. Pressionei meus ouvidos com os dedos, mas elas gritaram dentro da minha cabeça até o quarto ressoar com isto: que na geração anterior a ele, a loucura estava adormecida, mas que seu avô tinha vivido por anos com as mãos acorrentadas ao solo, para impedi-lo de cortar-se em pedaços. Eu sabia que elas falavam a verdade – eu bem sabia disso. Eu havia descoberto a anos, apesar de tentarem esconder isso de mim. Mas…arrá! Eu era muito esperto para eles, mesmo louco como eles me julgavam ser.

“Finalmente, ela tomou conta de mim e eu me perguntei como pude temê-la. Poderia percorrer o mundo agora e rir e gritar com o melhor deles. Eu sabia que era louco, mas eles nem suspeitavam. Como eu costumava me abraçar com deleite quando pensava na bela peça que estava lhes pregando em razão de outrora ficarem apontando para mim e me olhando de soslaio, quando eu não era louco, mas apenas temia que um dia me tornasse um! E como eu costumava rir de alegria quando estava sozinho e pensava como guardei bem o meu segredo e o quão rápido meus gentis amigos teriam me abandonado se soubessem da verdade. Eu poderia ter gritado com êxtase quando jantei a sós com algum bom camarada barulhento, pensando no quão pálido ele ficaria e veloz ele correria, se soubesse que o amigo querido sentado perto dele afiando uma faca luminosa e brilhante, era um louco com todo o poder, e um tanto de vontade, de cravá-la no seu coração. Ah! Era uma vida divertida.

“Riquezas tornaram-se minhas, uma fortuna aflui sobre mim e eu me deliciava com prazeres intensificados mil vezes mais pela consciência do meu segredo bem guardado. Herdei uma propriedade, a lei – a própria lei de vista aguçada – tinha sido lograda e entregara milhares de libras disputadas por outros nas mãos de um louco. Onde estava o juízo dos homens perspicazes e de mentes sadias? Onde estava a destreza dos advogados, ávidos por descobrir uma falha? A astúcia do louco tinha enganado a todos.

“Eu tinha dinheiro. Como eu era cortejado! Eu gastei com abundância. Como eu era elogiado! Como aqueles três presunçosos e arrogantes irmãos se humilhavam à minha frente! O velho pai de cabeça branca também – tamanha consideração – tamanho respeito – tamanha amizade devotada – ele me idolatrava! O velho tinha uma filha, e os jovens, uma irmã, e todos os cinco eram pobres. Eu era rico, e quando casei com a moça, vi um sorriso de triunfo aparecer de leve nos rostos dos parentes necessitados dela, enquanto eles pensavam no seu esquema bem planejado e no seu belo prêmio. Era eu quem devia estar sorrindo. Sorrir! Dar gargalhadas, arrancar os cabelos e rolar no chão com guinchos de divertimento. Eles nem desconfiavam que a tinham casado com um louco.

“Espere! Se souberem disso, será que eles a teriam salvado? A felicidade de uma irmã contra o ouro de seu marido. A mais leve pluma eu sopro para o ar, em oposição à corrente vistosa que adorna meu corpo. Em uma coisa eu fui enganado, mesmo com toda a minha astúcia. Se eu não tivesse enlouquecido- pois apesar de nós loucos sermos inteligentes o bastante, nós ficamos confusos às vezes – eu deveria saber que a moça preferia ter sido colocada dura e gelada num simples caixão de chumbo, a ser levada como noiva invejada para minha rica e resplandecente casa. Eu deveria saber que o seu coração era do rapaz de olhos escuros, cujo nome uma vez eu a ouvi murmurar em seu sono perturbado, e que ela tinha sido sacrificada para mim, a fim de aliviar a pobreza do velho de cabeça branca e dos irmãos presunçosos.

“Eu não lembro de formas e rostos agora, mas eu sei que a moça era bonita. Eu sei que ela era, porque nas noites claras de luar, quando acordo de modo brusco do meu sono e tudo que está quieto à minha volta, eu vejo, em pé, silencioso e imóvel, em um dos cantos desta cela, um frágil e debilitado vulto, de cabelo preto e comprido que se derrama pelas suas costas e se movimenta mesmo quando não está ventando, e olhos que me encaram e nem piscam, nem fecham. Silencio! O sangue esfria no coração enquanto escrevo – aquela forma é dela; o rosto está muito pálido, e os olhos tem um brilho vítreo, mas eu os conheço bem. Aquele vulto nunca se move, nunca franze a testa, nem mexe os lábios como os outros que ocupam este lugar algumas vezes o fazem; mas ela é muito mais apavorante para mim, até mais do que os espíritos que me provocam há tantos anos- ela me vem fresca do túmulo e é tão cadavérica.

“Por quase um ano, eu vi aquele rosto ficar cada vez mais pálido; por quase um ano, eu vi as lagrimas vertendo, furtivas, pelas bochechas tristes, e nunca soube a causa. Contudo, finalmente descobri. Eles não poderiam me esconder aquilo por muito tempo. Ela nunca tinha gostado de mim, eu nunca pensei que gostasse, ela desprezava minha fortuna e odiava o esplendor em que eu vivia, mas eu não contava com isto: ela amava outro. Isso eu nunca tinha pensado. Estranhos sentimentos tomaram conta de mim, e o pensamento, invadindo-me à força por meu cérebro. Eu não a odiava, apesar de odiar o rapaz por quem ela não parava de chorar. Eu tinha pena – sim, eu tinha pena – da vida deprimente a qual seus parentes frios e egoístas a tinham condenado. Eu sabia que ela não poderia viver por muito tempo, mas o pensamento de que, antes de sua morte, ela poderia dar a luz a algum ser infeliz, destinado a transmitir loucura à sua prole, fez eu me decidir. Resolvi matá-la.

“Por muitas semanas, pensei em veneno, e depois em afogamento, e depois em incêndio. Uma bela visão: a casa impotente em chamas e a esposa do louco ardendo lentamente, virando cinzas. Pense também na graça de uma boa recompensa e em algum homem são balançando ao vento por um ato que nunca cometeu, e tudo isso por meio da astúcia de um louco. Eu pensei inúmeras vezes sobre isso, mas por fim, desisti. Ah! O prazer de afiar a navalha dia após dia, sentindo o fio cortante e pensando no talho que a lamina fina e reluzente faria com um só golpe.

“Enfim, os velhos espíritos, que antes estiveram comigo por tantas vezes, sussurraram no meu ouvido que a hora chegara e jogaram a navalha aberta na minha mão, levantei suavemente da cama e me inclinei sobre minha esposa adormecida. Seu rosto estava enterrado nas mãos. Eu as retirei suavemente, e elas caíram indiferentes no peito. Ela estivera chorando, pois os rastros de lagrimas ainda estavam molhados nas bochechas. Seu rosto estava calmo e sereno, e enquanto eu o observava, um sorriso, tranquilo iluminou suas feições pálidas. Eu pousei minha mão suavemente no seu ombro. Ela se sobressaltou – era apenas um sonho passageiro. Eu me inclinei para a frente mais uma vez, ela gritou e acordou.

“Um movimento da minha mão e ela nunca mais emitiria um grito ou som. Mas eu fiquei assustado e recuei. Seus olhos estavam fixos nos meus. Não sei como foi, mas eles me intimidavam e me davam medo, e eu fraquejei sob aquele olhar. Ela levantou da cama, ainda me encarando firme e fixamente. Eu tremi; a navalha estava na minha mão, mas eu não consegui me mexer. Ela foi em direção à porta. Quando chegou perto da porta, ela se virou e desviou o olhar do meu rosto. O feitiço estava quebrado. Eu saltei à frente e a agarrei pelo braço. Emitindo guinchos em cima de guinchos, ela sucumbiu e foi ao chão. Naquele momento, eu poderia tê-la matado sem esforço, mas a casa fora alarmada. Eu ouvi o ruído de passos na escada. Recoloquei a navalha na gaveta de costume, abri a porta e gritei por auxilio.

“Eles vieram e a levantaram, colocando-a na cama. Ela ficou ali, desmaiada por horas, e quanto a vida, o olhar e a fala retornaram, seu juízo a tinha abandonado; e ela delirou, de modo selvagem e furioso. Médicos foram chamados – grandes homens que chegavam a minha porta em carruagens confortáveis, com belos cavalos e vistosos criados. Por semanas, eles ficaram à beira de seu leito. Fizeram uma junta médica e trocaram ideias em voz baixa, muito solenes, em um outro quarto. Um deles, o mais inteligente e o mais célebre do grupo, conversou comigo à parte e pediu-me que me preparasse para o pior e falou ( para mim, o loco ) que minha esposa estava louca. Ele se parou próximo, a mim, junto a uma janela aberta, seu olhar observando a minha expressão, sua mão no meu braço. Com um só empurrão, eu poderia tê-lo arremessado na rua lá em baixo. Teria sido um passatempo raro fazê-lo, mas o meu segredo estava em jogo, eu o deixei ir. Poucos dias depois, eles me falaram que eu devia mantê-la sob algum tipo de contenção: eu deveria providenciar um enfermeiro para ela. Eu! Eu fui para o campo aberto, onde ninguém podia me ouvir, e ri até a atmosfera ressoar com meus gritos.

“Ela morreu no dia seguinte. O velho de cabeça branca juntou-se a ela na morte, e os irmãos arrogantes derramaram uma única lagrima sobre o cadáver insensível da irmã, aquela cujos sofrimentos eles tinham assistido, no decorrer de sua vida, com músculos de ferro. Tudo isso era alimento para a minha secreta alegria, e eu ri, por trás do lenço branco que eu segurava na frente do rosto, na carruagem, enquanto nós íamos para casa, até as lagrimas surgirem nos meus olhos.

“Mas, apesar de ter realizado o meu objetivo e de tê-la matado, eu estava inquieto e transtornado, e senti, que em breve, meu segredo seria revelado. Eu não conseguiria esconder a alegria selvagem e a felicidade que ficavam dentro de mim e que, quando estava sozinho em casa, me fazia dar pulos e bater palmas e dançar e rodopiar e rugir em voz alta. Quando eu saia e via as multidões de pessoas ocupadas, andando apressadas pela rua, ou ia ao teatro e ouvia sons de notas musicais, e observava as pessoas dançando, eu sentia tamanha exultação que poderia ter avançado entre eles; e eu os cortaria em pedaços, desmembrando-os, braço por braço, perna por perna, e eu teria uivado em êxtase. Mas eu rilhava meus dentes e fincava os pés no chão e enterrava minhas unhas afiadas nas palmas das mãos. Eu me controlei, e ninguém sabia, que eu era louco.

“Eu me lembro – apesar de uma das ultimas coisas que consigo lembrar ( por hora confundo a realidade com os meus sonhos e, tento tanto o que fazer, e sendo continuamente apressado aqui fico sem tempo para pensar uma coisa ou outra, porque tem alguma estranha confusão na qual uma e outra ficam envolvidas) – lembro de como eu, enfim, trouxe o assunto à tona. Rá, rá, rá! Acho que eu vejo os seus olhares assustados agora e sinto a desenvoltura com a qual eu os atirei para longe de mim e arremessei o meu punho fechado bem no meio das suas caras brancas e então voei como o vento e os deixei berrando e gritando, lá atrás. A força de um gigante toma conta de mim quando penso nisso. Eis aí – vejam como esta barra de ferro se dobra com a força da minha torção. Eu podia quebrar essa barra de ferro como se fosse um graveto, mas tem corredores compridos aqui, com muitas portas e, mesmo se encontrasse a saída tem um portão de ferro lá embaixo, que eles mantém trancados e travados com barras de ferro. Eles sabem o louco inteligente que eu tenho sido e estão orgulhosos de me manterem aqui, só para se exibirem.

“Deixem-me ver: sim, eu fui descoberto. Era tarde da noite quando cheguei em casa e encontrei o mais orgulhoso dos três irmãos esperando por mim- negócios urgentes, foi o que ele disse, disso eu me recordo bem. Eu odiava aquele homem com todo o ódio de um louco. Muitas e muitas vezes os meus dedos ansiavam por fazê-lo em pedaços. Me avisaram que ele estava me esperando. Corri prontamente para o andar superior. Ele queria conversar comigo. Eu dispensei os criados. Era tarde – e nós ficamos a sós, pela primeira vez.

“Mantive meu olhar cuidadosamente desviado do dele a princípio, pois eu sabia que ele nem se quer desconfiava – eu me sentia envaidecido de saber que ele não sabia – que nos meus olhos cintilava como fogo a voz da loucura. Nos sentamos em silencio por alguns minutos. Enfim, ele falou. Meu recente desregramento e meus estranhos comentários, feitos tão cedo após a morte de sua irmã, eram um insulto a sua memória. Fazendo a associação entre muitas circunstâncias que, a princípio, haviam escapado de suas observação, ele concluiu que eu não havia a tratado bem. Ele desejava saber se estava certo em inferir que eu pretendia manchar a memória de sua irmã e desrespeitar a família. Era esperto dele, em razão do uniforme que vestia, exigia essa explicação.

“Esse homem tinha um cargo no exército – um cargo comprado com o meu dinheiro e com o sofrimento de sua irmão! Era o homem que tinha sido elemento-chave no plano de me enganar e se apoderar de minha fortuna. Esse era o homem que tinha sido o principal instrumento em forçar sua irmã a se casar comigo, sabendo muito bem que o coração dela pertencia aquele rapaz choramingão. Esperava uma explicação em razão do seu uniforme! A libré de degradação! Eu virei o olhar na direção dele, não pude evitar, mas não disse uma palavra.

“Percebi uma mudança súbita na sua postura sob meu olhar fixo. Ele era um homem corajoso, mas empalideceu e foi para trás da cadeira. Arrastei a minha mais para perto dele e, enquanto ria, eu estava muito feliz naquela hora-, eu o vi estremecer. Senti a loucura crescendo dentro de mim. Ele estava com medo de mim.

“- Você gostava muito de sua irmã quando ela era viva. – eu disse. – Muito!

“Ele olhou preocupado ao seu redor, e eu vi sua mão agarrando o encosto da cadeira, mas ele não disse nada.

“- Seu canalha – eu disse – eu desmascarei você, eu descobri seus planos diabólicos contra mim, eu sei que o coração dela estava ligado a outro antes de vocês obriga-la a se casar comigo. Eu sei! Eu sei!

“Ele pulou de repente da sua cadeira, sacudindo-a no ar, e me pediu que recuasse; porque eu tinha tratado de me aproximar dele cada vez mais enquanto ia falando.

“Eu mais gritava do que falava, pois sentia emoções tumultuadas passando em turbilhão pelas minhas veias, e os velhos espíritos sussurrando e me incitando a arrancar o coração dele fora.

“- Dane-se você – eu disse, me levantando e avançando sobre ele – eu matei sua irmã. Eu sou louco. Eu vou acabar com você. Sangue! Sangue! Quero sangue!

“De um golpe só, atirei para o lado da cadeira que ele jogou em mim, movido pelo terror, e me atraquei nele, e com um encontrão violento, rolamos os dois no chão.Foi uma bela luta aquela, pois ele era um homem alto e forte, brigando por sua vida, e eu, um louco poderoso, sedento por destruí-lo. Eu sabia que nenhuma força poderia se comparar a minha e eu estava certo. Certo de novo, apesar de ser louco! Os golpes dele foram enfraquecendo. Eu me ajoelhei sobre seu peito e apertei firme seu pescoço musculoso com as duas mãos. Seu rosto ficou roxo, seus olhos estavam saltando da cabeça, e com a língua de fora, ele parecia estar zombando de mim. Apertei mais forte. De repente a porta se abriu com um tremendo barulho, e uma multidão entrou correndo, gritando uns para os outros para que segurassem o louco.

“Meu segredo estava exposto, e minha única luta agora era para que me deixassem livre. Consegui ficar de pé antes que pusessem as mãos em mim, me atirei entre meus agressores e abri caminho com meu berro forte, como se estivesse empunhando uma machadinha, e derrubei-os diante de mim. Consegui alcançar a porta, escorreguei corrimão abaixo, e num instante estava na rua.

“Reto e rápido eu corri, e ninguém se atreveu a me deter. Ouvi o barulho de passos atrás de mim e redobrei a velocidade. O barulho foi se desvanecendo na distancia, e por fim , evaporou por completo. Mas eu continuei correndo e saltando, por pântano e riacho, sobre cercas e muros, com uma gritaria selvagem que era imitada por estranhas criaturas que foram se juntando em bando ao meu redor, intensificando a barulheira até que ela perfurasse o próprio ar. Alcei voo nos braços de demônios que se deixavam levar pelo vento e pelo caminho iam devastando cercas vivas e taludes e que me faziam girar e gritar com um zunido e com uma velocidade que fez minha cabeça flutuar, até que por fim, arremessaram-me para longe com um golpe violento e eu desabei pesadamente na terra. Quando acordei, estava aqui – aqui nesta cela cinzenta, onde a luz do dia raramente aparece, e a lua, furtiva, penetra em raios que apenas servem para mostrar as sombras escuras que cercar aquele vulto silencioso no seu canto de sempre. Quando eu me deito e não consigo dormir, às vezes escuto estranhos guinchos e gritos de partes distantes deste vasto lugar. O que são, eu não sei, mas eles não vem daquela figura pálida, nem ela se importa com eles. Porque, desde as primeiras sombras do crepúsculo até a primeira luz da manhã, ela fica parada, imóvel, sempre no mesmo lugar, escutando a música da minha corrente de ferro e assistindo às minhas cambalhotas na minha cama de palha.

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