sexta-feira, 30 de novembro de 2012

J. Fausto Toloy (“O Livro que Ninguém Lia”... aventuras do livro rejeitado!)


O autor é médico, da Campina da Lagoa/PR.
Este conto participou do FLIP e será adaptado para o teatro.

Era um livro um pouco estranho: capa azul e borda amarela com  letras garrafais em vermelho: “O CAMUNDONGO DE SARONGO”, um título no mínimo esquisito que rimava. Seria prosa ou poesia? Passou despercebido como tantos naquela livraria. Ignorei-o simplesmente. Mas para minha surpresa ouço uma voz:

— Moço, moço… Você mesmo com carinha imberbe, estudante talvez, um mancebo! – Caramba! De onde vinha aquele som? Espanto, olhares de pavor ao derredor – Droga, não tem ninguém aqui!

— Não se assuste ali na frente tem homem que vira barata, mais adiante um rato atrapalhado, uma baratinha cantora, um grilo falante, e até animais que expulsam o dono da granja! Anything goes, baby! Em ficção é claro! Aqui, bem aqui no cantinho, o livrinho de borda amarela, isso, isso agora mais pra direita… sou eu! Parecia mesmo que a voz vinha do livro… Seria possível? Não fumei nada, nem uso droga ou coisa semelhante, às vezes um antidepressivo... vou falar com ele! 

— Está procurando um best-seller tipo “O livreiro de…” ou “O caçador de…” ou ainda “A ira dos …”, “Não verás…O”; que tal “O menino malu…” – Tô aqui esquecido e não sou nada disso, mas… Acho que vou colocar o dedo na borda. Iche! Mexeu, parece querer pular para as minhas mãos, será que gostou? Acaricio delicadamente o livro na ponta dos dedos sem retirá-lo da estante, espremido entre dois tomos volumosos, “Livraria Cultura – São Paulo supercap fevereiro de 2004”.

— Vamos, cara me pegue, me curta, delicie-se comigo só um pouquinho:  ah! O amor, que maravilha esse sentimento; a paixão, que perigosa ilusão! Enfim, use e abuse, mas cuidado me confunda com “Mate Leão” (tempos de criança). Hiii, cara se soubesse da minha história… quer saber? Vou contar: nasci numa graficazinha de fundo de quintal no Engenho Vila Verde, que nome bonito, ecológico… quem me escreveu? Criou os originais? Ah! Quer saber então? Está interessado, vejo nos seus olhos. Fruto de um escritor-mirim, nem posso dizer que foi um parto, o primeiro filho; essas coisas tolas que todo escriba diz, principalmente os medíocres, que nada ou muito pouco têm a dizer… O nome do meu autor é Ângelo Maiakóvski; tá pensando que é em verdade do grande poeta russo, não é Vladimir; o autorzinho é um nerd de computador desde os quatro aninhos, agora com doze. Então fui parar na Rua Humaitá, 444, onde um ilustrador de cartazes de cinema antigo fez o resto e, ainda sob protesto.— Faz anos que num trabalho nisso, como é pro dotor Aristarco vô fazê o melhó que posso. Rato num gosto de rato num é rato – Tequinho, é camundongo! – é tudo a mesma coisa – Meus Deus! E o meu revisor, uma piada; reprovado em português duas vezes e ainda conseguiu formar-se professor de matemática!!! “porque não trouxe a roupa de Maricota pra mim fazer (em vez de para eu fazer) “Se for ao clube e ver a Cidinha…” (em vez de vir) “Porque não pergunta ao Antonio?” (por que na pergunta) páginas 3, 17 e 27 respectivamente. Mas, entre mortos e feridos salvaram-se todos! Mas, pode me tocar, abrir: aventura, emoção, surpresas, risos, enfim, ingredientes de uma boa estória. Livro:  “Vamo lá, cara, ô meu (assim é melhor) me folheie, cheire, ainda tô novo só um pouco cheio de pó, traça num tenho. A cor azul-amarelo da capa ainda não desbotou apesar do sol que tomo na fuça toda manhã quando a Zica num fecha a cortina – deixa esse livreco, filho, vamos  levar um livro do Ziraldo; – pronto, não desencalhei de novo. ninguém prestigia mesmo autor desconhecido. – “Intelectual, ô você mesmo com óculos John Lennon, olhos negros… pode folhear à vontade; acho que vai levar pra se lembrar dos tempos idos da infância quando nem o Monteiro Lobato despertava curiosidade; não, não, larga, larga: nesta mochila molambenta não quero entrar não! Pode ter até… não, acho que não. Quem sabe levar pro filho bastardo? Topo qualquer parada pra sair dessa pasmaceira: livro na estante (de livraria, ainda, é livro morto) seria bom ganhar vida aos olhos de algum leitor, ensinar pelo encanto das palavras, despertar a alma da paixão, emoção, quem sabe descobrir palavras novas, ou apenas uma ideia, modo de ver o mundo ou uma mensagem! Agora na mochila junto com canivete suíço, cigarro (menos aquilo), uma troca de roupa, caneta, chaveiro. Vamos nessa. Tira-me no ônibus e começa a leitura:

— Mas, que droga, aquela vendedorazinha pivete acha que me engana, falou que tinha uma inspiração kafkiana – é livro infantil! Arremessado pela janela (defenestrado eu?) ufa: Vou pro meio da rua todo desfolhado, aberto no meio da avenida, logo sou atropelado por outro carro e escarafunchado perto do bueiro, nããããão! Uma mão salvadora me agarra antes do desastre: um colegial. – Oba, um livro, achei um livro, oba! Livro: que molequinho mais sem CPF, gostou do presente, e é isso que importa: cavalo dado não se olha os dentes”. Todo mundo quer ser apreciado e  amado, não é mesmo? Talvez seja esse o segredo? Incontinenti o menino inicia a leitura e vou deliciando-me com o desenrolar de tudo, da minha história, claro! O que mais poderia ser, sou só um livro que não queria ficar na estante tomando sol, pó, um dia quem sabe ser roído pelas traças. Que aventura viver, viver livre, enfim… UOFFF! Ledo engano, não é que o pivete não gostou da história e resolveu dar-me de presente ao pai presidiário. Hiche: Comida de preso, Mauser, tudo embrulhado vou para penitenciária”. Na estrada o guarda nem olha a encomenda. “Passa, passa, logo é pro Mekinho boca mole, vai, vai logo moleque”.[a]

— Que droga é essa, Palito, um livro?!

— É, pai, achei na rua, pode ser legal e fazer companhia nessa solidão. Joga-me num canto fétido onde, é claro, fico. Um evangélico começa a ler algumas páginas:— Tudo colonização do Tio Sam, imperialismo, volto pra minha Bíblia, o senhor é meu pastor e nada me faltará. Livro: “Virgem Maria, não precisava humilhar: comparar com o livro sagrado: ou tá alienado demais, ou tá brincando!” – Ah! Já sei vou presentear meu sobrinho internado na FEBEM, ele vai gostar. Dali o menino muda de ideia no caminho e leva para o Hospital Lua Nova, onde está internado o Meldes, vítima de esquizofrenia. Na chegada vive uma briga estranha, porquanto o Meldes disputa o livro com o Tito:

— O livro é meu, Mel, ele trouxe pra mim; a dra. falou que vou ganhar presente!

— Não, Tito, é outro presente, e é de Natal. – Na refrega sou partido em dois e uma metade vai pra cada um dos doidinhos.

— Pater dominus, pace! – entra o missionário e une as duas partes ficando eu livro outra vez – o que Deus uniu o homem não separa – ainda bem!

— O rato roeu a roupa do rei de Roma! – cruz credo, demônio, rato nããão! “De onde estava sou (defenestrado II) e caio no jardim”. Socorram-me subi no ônibus em Marrocos” Jesus é palíndromo! Lido ao contrário é igual— Acho melhor mesmo levar o livro pro seu destino. Colocado num envelope e postado vou pra instituição supracitada.

— Tio Onofre, que legal lembrar-se da gente esquecido aqui nessa antessala do inferno. Noutro dia mesmo me deram tanta pancada que quase acabei no hospital. Puxa um livro, que bacana: chega de TV, futebol (bola murcha), uma pedrinha pra variar… Depois de algum tempo: uau! Que rato esperto, vou fazer assim e logo saio daqui, mas… pensando bem por quê buraco? Um camundongo é pelo menos cem vezes menor que eu, mas, enfim não custa sonhar; ora, mas que bobagem sair… pra onde? Tenho comida, roupa, futebol, TV, sol… pensando bem não vou não! Viu livrinho bobo vou continuar capacho do idiota do “Roberto Carlos” que imagina cantar como o rei… tá vendo? Não serviu pra nada!!! – dar para o bestalhão então não… não sabe dar  valor no que leu… perdedor!  – Dar para o índio Emanuel, tio do Peralta… ele vai amar o presente, além do mais tá aprendendo português… ler também é uma aula da língua, não é?  Pronto seu destino tá traçado: índio pataxó! – Guarde com carinho, cacique, uma lição de português, presente do meu tio Melquisedeque, vulgo Mekinho, mas, olha é de coração, hem? – Cacique Jonas insere o livrinho no bolso da jaqueta de couro, presente do Morel por amansar o cavalo Terenzo, caminha alguns passos e saem para a avenida. O pobre cacique atravessa o farol e, diante do ponto de ônibus da Avenida República dos Inválidos, é atacado por skin-heads… defende-se como pode machucando alguns jovens com golpes de uma luta estranha, mas acaba imobilizado e incendiado pelos bárbaros jovens. Uma poetisa que mora nas vizinhanças e um malabares do farol de trânsito socorrem o silvícola civilizado. O livro cai da jaqueta e arde em chamas na calçada… dos borbotões brotam pequenos vagalumes que se afastam e iluminam a misteriosa noite de abril.

— Que lindo! Que lindo! – Raquel, a poeta, balbucia deslumbrada.

No final da história deste personagem rejeitado, de alguma forma o sacrifício do livro-herói não foi em vão.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Um comentário:

José Fausto Toloy disse...

Que bela história e além do mais traz cultura ao jovem, Maiakovski, que grande high-brow e humanista.
Parabéns ao autor
Rodrigo Pessoa