sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Mário de Carvalho (O Binóculo Russo)


(Foi mantida a grafia original)

Matilde deixou cair o dossier com estardalhaço no lajedo do patamar. Aquela porta ficara má de abrir, depois de uma reparação caríssima, que sucedera a uma tentativa de assalto. Vinha, como sempre, muito carregada. Teve que equilibrar a pasta entre os joelhos, ajeitar os sacos de plástico nos pulsos, puxar ligeiramente a chave para si, depois de a ter feito deslizar no buraco da fechadura; e aplicar-lhe uma torção lenta, sábia, até convencer a lingueta a saltar. Não havia mãos e joelhos que chegassem para todos os volumes. Estrondeou o dossier no chão, estrondeou a fechadura nas ferragens, estrondearam as latas do supermercado na madeira da porta, e a vizinha do lado logo a aparecer, de braços cruzados e viso furibundo. Não disse nada, porque tudo estava já ralhado, cara a cara, pelo menos de há um ano a esta parte. 

O homem dela fazia turnos de noite, tinha o sono leve e aqueles rumores causavam-lhe uns sobressaltos e um mal-estar que ela designava modernamente por stress, mas que em interpretações mais rigorosas e menos científicas poderia ser traduzido por «vontade de embirrar». Seguir-se-iam remoques e apartes ditos da varanda, para que Matilde os ouvisse bem e, talvez, umas vassouradas na parede para que ela se compenetrasse de que não se incomodava impunemente um capataz a turnos, moído de chatices.
Com alívio, Matilde fechou a porta atrás de si - devagarinho, para não reincidir nos estrondos - e refugiou-se nas suas duas assoalhadas, impecáveis de arrumação. Saltou o gato do sofá e veio cumprimentar, roçando-se-lhe pelas pernas. Interesseiro, o bicho.

Queria comida, a dona era a garante das refeições. Mas Matilde tomou para si os cumprimentos como se fossem afeições de gato.

Só depois de distribuir géneros e vitualhas, pasta e dossiers, pelos sítios destinados, Matilde se aproximou, a medo, da marquise das traseiras. Não podia evitar aquele baque e a tremura nas mãos sempre que, pelo fim da tarde, espreitava pelos vidros. Ele estaria lá? Se estivesse, o baque tornar-se-ia mais forte e sentiria na face aquela tepidez da pele a rosear-lha. Se não estivesse, sobreviria um desalento melancólico. Era, em qualquer dos casos, um padecimento.

De maneira que Matilde se foi chegando à janela devagar, retardando até ao último momento a ocasião de olhar para fora, por detrás do cortinado de cassa, porque não ousava mostrar-se.

A marquise deitava para a negrura dum saguão fundo, ainda mais ensombrado por uma velha nespereira que não parava de crescer e que ninguém se dava ao trabalho de podar. Mais para além, atrás de um muro alto, dormitava um quintalório meio abandonado, com ervas altas e anárquicas a quererem trepar por um pombal em ruínas; do outro lado duma vedação de cedros, a meia altura, resplandecia o pátio dele. Chamar-lhe quintal seria desmerecedor, porque exibia uma espécie de fonte em que um peixe beiçudo deveria verter água para uma tina, se estivesse ligada à canalização, no meio duma relva bem aparada, a rasar um canteiro pintado de branco com uma roseira que preponderava sobre floritas roxas, misteriosas.

Ele estaria? Não estaria? O olhar de Matilde hesitou pelos telhados de prédios altos, nas lonjuras. Depois decidiu-se, fitou o jardim e perscrutou entre as heras do caramanchão, correu a sebe e os muros, admirou uma vez mais a imaculada fonte do peixe, pousou na mesita de plástico branco, esquadrinhou os quatro cantos, subiu pela ferrugenta escada de salvação. Nada. Matilde suspirou e abafou um pigarro brando nas costas da mão. Tomou-a a tal tristeza lassa, desanimada. Na sala, sobre a mesa, o medonho dossier amarelo com prospecções de vendas já clamava por ela.

De súbito, um alvoroço. Um vulto branco por entre as folhas do caramanchão. Um homem avançou, expôs-se ao olhar, cruzou os dedos de ambas as mãos em frente do peito e estendeu os braços. O «claque» seco dos ossos distendidos chegou aos ouvidos de Matilde. Se não chegou, foi como se chegasse. Meu Deus, era ele. O dossier podia esperar! O homem deu uns passos pela relva, sentou-se à mesita e foi folheando um livro que - Matilde não tinha reparado - já lá estava. Matilde cruzou os braços com força e fincou as mãos nos ombros. Distinguia agora nitidamente o perfil do homem, atento, concentrado, segurando o livro aberto com uma mão, enquanto com a outra tamborilava, elegantemente, no tampo da mesa. De vez em quando, aquela mão tamborilante levantava-se, suspendia-se um instante no ar, penetrava no livro e virava mais uma página. E Matilde a ver de longe, com enlevo...

Pelas oito horas, o trivial: uma mulher de bata florida e ar desmazelado veio ao patamar da escada de ferro e chamou, muito autoritária, de mão na anca. «Lá está a vaca da mãe», resignou-se Matilde, «vem chamá-lo para jantar...» O homem fechou o livro, decerto contrariado, porque muito melhor ficaria a ser observado secretamente por Matilde, tamborilou por um momento com os dedos de ambas as mãos na mesa, levantou-se, subiu as escadas e entrou. «Pronto», suspirou Matilde, «agora, jantar em frente do televisor e, vista e apreciada a telenovela, o dossier amarelo...»

«É russo, minha senhora, está a ver?

O oculista, muito peremptório, apontava os caracteres cirílicos gravados a verde no binóculo.

«Pesado...»

«Sólido, minha senhora. Os russos, noutras coisas, não sei; mas, agora, na óptica... Ora experimente lá, se faz favor.»

Matilde, timidamente, focou o binóculo, apontou-o à montra: uma confusão. Girou sobre si e distinguiu a cara enorme, deformada, de Maria Eduarda que a olhava com os olhos esbugalhados:

«Não sei... Acho que serve.» «Faz-me um desconto?» «Pois sim, uma atençãozinha...»

Era a hora de almoço, Matilde e a amiga cumpriam a rotina do percurso até à pastelaria do costume (um croissant com fiambre, um copo de leite e uma bica) quando Matilde desviou caminho para o oculista. Maria Eduarda fez perguntas, interessada pelos desarranjos visuais de Matilde, magnífica matéria de conversação, e ficou muito surpreendida por a colega ter pedido para apreçar binóculos.

Matilde deu uma explicação que deixou a outra intrigada: que era por causa do gato. Andava sempre a vadiar pelos quintais e, assim, podia saber onde é que ele parava...

«Ah...»

À mesa, Eduarda, como de costume, tinha muito que contar: a chefe havia-lhe deixado uma nota a vermelho (a vermelho!) avisando-a de que deveria abrir as páginas do Diário da República, coisa que não era da sua competência: o gabinete estava irrespirável desde que o paquete resolvera fumar uma espécie de tabaco-de-onça, mata-ratos ou lá o que era aquilo; iam montar no serviço uma instalação que registava todas as comunicações telefónicas, a fim de debitarem as chamadas pessoais aos empregados; o Ricardo estava a chegar atrasadíssimo aos encontros e deixava o atendedor de chamadas ligado mesmo quando (era óbvio!) estava em casa, mas o que valia era haver mais Ricardos na terra; podia-se ganhar um dinheirão fazendo comida para festas, para casamentos e coisas assim; apesar dos horrores que se diziam, a Igreja Manánão era tão má como isso, tudo muito limpo; a última telenovela brasileira estava muito bem feita.

Nada de novo, naquela hora de almoço... Eduarda ainda quis saber mais sobre os binóculos, mas Matilde conseguiu ser extremamente vaga, embora não insistisse na necessidade de vigiar o gato. E deu mesmo um par de conselhos a propósito do Ricardo e as cautelas apropriadas quando se trata com homens instáveis.

O binóculo era, de facto, pesado. O ruído que fez, quando, dentro da mala de Matilde, embateu com força na porta, despertou no interior da casa da vizinha um rancoroso «Lá chegou a gaja...», perfeitamente audível. Mas Matilde estava tão impaciente para chegar à marquise que, contra o costume e indiferente às consequências, atirou com a porta violentamente. Desprezou o gato, deixou os sacos de plástico em qualquer lado, o dossier esbarrondado, a trouxe-mouxe, em cima do sofá, e ala, para o seu posto de observação, de binóculos em riste.

Ele já lá estava e lia, à mesa, com aquele desprendimento selecto que tanto a havia impressionado na véspera. Matilde tinha-o agora ao perto, muito nítido, com as cores muito vivas. Podia acompanhar-lhe o perfil, milímetro a milímetro, o azulado da barba na face bem escanhoada, as riscas- da camisa, cuidadosamente arregaçada nos punhos e o livro, manuseado com displicência. Conseguiu ler as letras da capa: Cultive a Sua Vontade de Vencer, por J. D. Rus_ West. Céus, aquilo eram leituras de gestor. Bem se via, de resto, por aquele jardim tão bem cuidado, pelo fontanário, com peixe e tudo. Um gestor, votado ao sucesso, em pleno bairro de Santos, para "além das nespereiras... E captou todos os pormenores, todos os movimentos, até que a mãe (ou, pensando melhor, talvez a criada) veio costumeiramente, muito desmancha-prazeres, chamar o homem para jantar.

Matilde dormiu muito apressadamente nessa noite. Sonhou que circulava a grande velocidade por uma estrada bordejada de nespereiras descomunais. Um Ferrari vermelho ultrapassou-a. Era o vizinho que o conduzia, de camisa desabotoada no pescoço, deixando entrever, por baixo do colarinho, um lenço de seda de ramagens azuis. Matilde seguia num carrinho de feira, mas, prego a fundo, esforçava-se, não deixava que a distância ao Ferrari aumentasse. Eduarda surgiu de repente a seu lado, de cabelos ao vento, e advertiu: «Olha que o gajo é dos que deixam o atendedor de chamadas ligado e fingem que não estão! Além disso, tu não sabes guiar!»

Matilde fez muita batota no serviço, na manhã seguinte. Deu-lhe a impaciência. Pediu que a deixassem sair por uns instantes para ir à Câmara tratar de uma multa e ao banco esclarecer uns problemas de saldo, já que à hora do almoço tinha que passar por casa, porque o canalizador... A chefe não esteve para averiguar mentira a mentira e nem sequer ouviu a do canalizador. Limitou-se a rosnar, como de costume: «depois você compensa!»

Foi direitinha a uma livraria e olhou demoradamente para a montra, num pasmo que contrastava com a pressa de antes. O livro, claro, não estava em exibição. Só havia álbuns caríssimos, sobre cães, palácios e porcelanas da China. Ainda assim, Matilde contemplou a montra com minúcia. Era-lhe difícil entrar numa livraria, assim sem mais nem menos. Tinha a impressão de que aqueles empregados andavam sempre a vigiá-la, desconfiados, e de que os cidadãos sorumbáticos que cirandavam entre as bancadas eram intelectuais peneirentos que a olhavam, com desprezo, como a uma intrusa. A última vez que entrara numa livraria fora para comprar os livros de Maria Roma e, mesmo assim, acompanhada pela Eduarda e de fugida.

Lá se resolveu, enfim. Encaminhou-se com passo firme para o empregado que lhe pareceu ter melhor cara e perguntou pela Vontade de Vencer. O homem estava entretido com um embrulho e quase nem se dignou a olhá-la:
«Veja ali naquela estante os livros de capa verde.»

A tal estante era um tesouro de volumes maravilhosos, de lombadas vistosas, que ensinavam tudo o que era necessário para a felicidade do género humano: Como Fazer Amigos, O Sucesso sem Contrapartidas, Apodere-Se dos Segredos de Machu-Pichu... Na quarta prateleira, lá resplendiam vários exemplares do Cultive a Vontade de Vencer. Matilde ficou com alguma raiva ao livreiro que insistiu em embrulhar o livro, com um papel vulgar. Estava ansiosa por ler. Ainda mal tinha saído e já arrepanhava o papel.

Regressada ao emprego, ainda antes do almoço, pôde, com o volume disfarçado entre resmas de facturas e a lista dos faxes, comungar da prosa que fortalecia o espírito do seu vizinho. Logo na terceira página, leu, extasiada: «O imperador Júlio César, também conhecido por Octávio Augusto, que viveu largos milhares de anos antes de Jesus Cristo, era muito persistente, como todos os vencedores. Ao atravessar o caudaloso rio Rubicão que separa o Egipto de Itália, ordenou aos soldados que seguissem o seu penacho branco e bradou: "Ai dos Vencidos"! Assim conquistou Pompeia e submeteu dezenas e dezenas de cidades gregas.»
Aquilo era o mundo da erudição. No prefácio, o autor assegurava que havia consultado milhares de volumes de várias línguas, efectuado centenas de entrevistas e frequentado as mais longínquas bibliotecas, sem esquecer a do Mosteiro de Lassa, no Tibete. Matilde, ofegante, sentia-se esmagada por tanto saber. E mais se firmou nela a admiração pelo homem que lia aqueles textos, afincadamente, todas as tardes, antes do jantar.

Não almoçou com Eduarda. Refugiou-se numa pastelaria distante e aprendeu alguma coisa sobre imperadores romanos e lamas do Tibete, na versão muito peculiar do autor americano. À tardinha, de binóculo numa mão e livro na outra, espiou o vizinho, numa ansiedade, procurando adivinhar, em vão, que passagem do livro estaria ele a folhear. O gato miava, ao desamparo, esganiçado de fome. Mas não sobrava atenção a Matilde. Nessa noite o animal só comeu depois da telenovela.

No último sábado de cada mês Matilde fazia as suas compras num supermercado do bairro, de acordo com uma lista sempre invariável. Habitualmente trazia pouco dinheiro, por medo dos assaltos. A empregada conhecia-a, aceitava-lhe os cheques sem grandes formalidades.

Mas naquela manhã, de caneta na mão, entre sacos de plástico vazios e talões abandonados, Matilde mostrava-se singularmente perturbada. Atrás dela, na bicha, acompanhado por um sujeito risonho que trazia um capacete de motociclista no braço, tomava garbosamente posição o seu vizinho, supostamente «gestor». Vinha vestido com um fato de treino e balanceava nas mãos, com nervosismo, uma lata de ervilhas. Matilde bem que conhecia aquelas mãos. Dobrada sobre a caixa registadora, a preencher o cheque, sem ousar uma olhadela para o lado, sentia a presença dele muito perto. Querendo, podia mesmo tocar-lhe. Enrubesceu. Os dedos tremiam-lhe. Enganou-se. Teve de rasgar o cheque e procurar outro, atabalhoadamente.

«Há pessoas que não têm respeito nenhum pelos outros, palavra de honra!»

Matilde estremeceu e atreveu-se a olhar para o homem, abismada. De cabeça à banda, ele não se calava:

«Vêm pràqui armar ó pingarelho c'a porcaria dos cheques e só sabem é empatar ou o caraças!!»

«Ela nem sequer sabe preencher a merda do cheque!», respondeu o do capacete de mota, às casquinadas.

«É pra mostrar que tem conta no banco! É finaça, a duquesa!»

Matilde balbuciou qualquer coisa na direcção da empregada. Depois, aterrorizada, ousou encarar o vizinho:

«Mas...»

«Mas, o quê? E não esteja a olhar pra mim qu' eu não sou mostruário.»

E o outro:

«Despache-se lá, senhora! Não vê que nos está a fazer perder tempo? Oh, sorte!»

Rebentou uma grande altercação em volta da caixa registadora. A empregada, como lhe tivesse chegado a mostarda ao nariz, tomou o partido de Matilde, com uma gritaria colorida, adequada à situação. Outros fregueses se interpuseram. Parece que a questão até meteu a segurança. Mas Matilde já não ouvia nada. Muito encolhida, de sacos na mão, olhos no soalho,foi-se encostando à parede e, muito lentamente, com passinhos trôpegos, saiu do supermercado.

No percurso até casa não cumprimentou ninguém nem ouviu ninguém. Ia uma zoada confusa, naquela cabeça. Tumultuosamente, misturavam-se imagens quebradas, pensamentos incompletos e sensações desordenadas. 

Imperativamente, de permeio, com um rebate de urgência, ocorriam-lhe pequenas tarefas que planeara há muito e que, por uma razão ou outra, nunca tinha levado a cabo: encerar o soalho, limpar os bicos do fogão, coser a bainha do cortinado, arrumar a despensa, pôr em ordem alfabética os números telefónicos do bloco-notas...

Ao chegar a casa, completamente indiferente às reacções dos vizinhos, nem reparou se a porta tinha batido ou não. O telefone tocou, não atendeu. Durante todo aquele sábado Matilde girou pelo apartamento, numa actividade frenética de limpar e arrumar objectos. Nem almoçou. Desconfiado do feitio e da movimentação, o gato escondeu-se sob uma estante e optou por passar despercebido.

Ao fim da tarde, enfim, Matilde deixou-se cair no sofá, contemplou a sua obra e suspirou, já tranquila. Não! Faltava ainda um pormenor: o livro da Vontade de Vencer, ali a rebrilhar em cima da mesa, voou descompassadamente para o caixote do lixo. Depois, Matilde tomou um banho de imersão, cantarolou, jantou enquanto via a telenovela e arranjou demoradamente as unhas. Dormiu até muito tarde.

Passaram-se uns dias, antes que Matilde se acercasse da marquise. Foi por tentativas, devagar, pé ante pé, forçando-se muito. Com um papel adesivo, translúcido, forrou o vidro até meio, de maneira a não ser surpreendida, sem querer, pela vista do jardim relvado e do seu possuidor.

Mas havia mais mundos, acima do papel translúcido. Numa certa varanda, lá ao longe, todos os dias, à mesma hora, um senhor calvo, de pijama, vinha tranquilamente regar as flores. De vez em quando, voltava-se para dentro e falava com alguém. Aquela distância parecia a Matilde que o homem estava triste e abatido. Não podia ser má pessoa quem gostasse tanto de
flores. Falava com a mulher, uma megera tirânica, decerto, que passava a vida a atenazá-lo com recriminações e pequenas maldades, que um amante de plantas estava longe de merecer. O ar carinhoso com que o homem acariciava as flores... Falava-lhes?

Matilde trepou a um banco, vasculhou num armário alto e tirou de lá o binóculo.

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

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