terça-feira, 20 de novembro de 2012

Peregrino (O Louco)


Era tarde, o sol já estava se despedindo depois de mais um dia exaustivo de calor.  Labutando em seu céu esplêndido e vasto. Comecei a refletir sobre o sol. Vendo-o em sua rotação, mas quem estava em rotação era a terra não o sol. Mas da forma como eu via era o sol quem girava, isso basta. Era tarde já trocando de cor para noite. Mas o sol ainda me deixava em estado de reflexão. Meu pai deveria ser um sol. Brilhando em nossa família, alimentando-nos e nos dando o colo quente de um fim de noite, após a janta. Meu pai não poderia ser um sol à noite. Entretanto como no universo era escuro parecendo noite perene, e brilhava o sol na intensidade dos seus 5000 graus, ainda posso concluir que meu pai era um sol, para mim e meus irmãos, mesmo no escuro. Ele nos aquecia e nos alimentava, como o sol aquecia a terra e alimentava as plantas.

Meu pai sendo o sol, minha mãe poderia ser a lua. Sim, a lua. Refletindo a luz dele para nós, pois ela era seu espelho. A lua girando ao redor de nós, na sua rotação rotineira, cotidianamente sem se importar com sua imagem, sempre ali para nós. Ficava ali, eternamente inerte.

Mas voltando ao sol, que é o ponto...esquece o sol.

Vejo-me num plano. São meus olhos castanhos me vendo no material que apresenta um eu que não condiz com o que penso. Esse aqui em frente não sou eu. Essa barba não é minha, essas rugas não são minhas, esses dentes amarelos não são meus. Eu sou jovem. A imagem que vejo é somente um sonho, ou talvez uma mensagem do futuro. Se eu tiver um. Abro a boca, a imagem faz o mesmo. Cerro as sobrancelhas, idem. Olho bem a imagem, fixo os olhos, chego perto, encarando-a.

- Quem é você?

- O tempo.

- Como chegou aqui?

- Cientificamente ou quer uma poesia pra abrandar o choque?

- Não abri a porta pra você.

- Não é necessário. Sempre há lugar para se entrar na vida de alguém. 

- Me recuso a acreditar que você é algo que não comando.

- Se assustaria com as respostas que dou às pessoas.

- Me surpreenda.

- Eu venho como um vento, suave para uns, violento para outros. Passo invisivelmente, sem nem perceberem que estive lá. Como garotinhos perdidos culpam outras coisas. São os problemas pessoais, acidentes, brigas, discussões, felicidade demais, sofrimento em excesso, programas de entretenimento, músicas, filmes, jogos. Posso transpor rapidamente, ou muito lentamente. Depende do que vocês estão fazendo. Esperar numa fila, devagar; numa boate com os amigos, rápido; num bate-papo na internet, rápido; esperando o fim de uma cirurgia, devagar. 

- Então é assim que você trabalha?

- Desde o princípio. Nunca mudei nada. Você também não percebeu, mas estive sempre aqui. Desde o dia que nasceu até agora.

- Mas estou num manicômio, você deve ser uma alucinação.

- Um louco ciente de sua loucura? Interessante. Você somente está mais sensível ao mundo. Vi que pintou as rosas brancas de azul.

- Eu gosto de azul.

- Sua memória está torta e seu raciocínio está ferido. Isso é bom.

- Minha família não acha isso.

- Você não tem família.

- Claro que sim, tenho mulher e um casal de crianças lindo.

- Foi isso que você criou para si. Você veio para cá quando tinha 14 anos.

- Isso é um absurdo. Estou olhando meu reflexo no espelho e vejo um homem de meia-idade.

- Sua mente está criando isso, você hoje tem 22. E cada dia piora.

- Não é possível. Estou melhor. Em poucos dias vou sair. O doutor Almeida disse que eu estava quase recebendo alta.

- Ninguém vem te ver há dias, homem.

- Não entendo. E meu casamento? O nascimento dos meus filhos? Eu vi tudo isso, está aqui guardado. Lembro-me do perfume da minha mulher.

- A mente humana é capaz de fabricar até os odores. Ela fabrica o medo, a dor, alegria. 

- Não acredito, isso tudo é somente um sonho.

- Você nem percebe mais onde está. Essa é uma defesa sua para tentar esconder o medo que está chegando.

O Medo chegou perto de mim e disse que não sairia dali do meu lado. Disse que eu o chamei para perto de mim. Agora estávamos eu, o Tempo e o Medo juntos numa reunião particular. Comecei a sentir o Medo me abraçando, o Tempo continuou o seu discurso barato.

- Pois hoje é o dia. Chegou o momento de fechar o ciclo. Assim como quando iniciamos a leitura de um livro, chegamos ao final. O fim do livro não é o esperado pra você, eu sei. Mas final de contos de fadas só nos livros de fantasia. O seu livro tá mais para cotidiano. 

- Queria ter mais tempo.

- Já te dei o bastante. A areia chegou ao fim. Não posso virar a ampulheta novamente. 

- Então me diga uma coisa.

- Sim?

- Pode me contar como foi minha vida de verdade?

- Bem, você nasceu num dia de chuva. Sua mãe morreu no parto. Aos 12 anos você viu seu pai se matar, e sua vida foi um inferno. Você imaginariamente criou uma família feliz e calorosa, terminou os estudos e encontrou uma garota. Apaixonaram-se, casaram-se, tiveram dois filhos e você acha que aqui é uma sessão de psiquiatria, pois crê que está estressado ao extremo. E que quando soar um sino você vai acordar, curado e voltar para sua família feliz. 

- E se isso for verdade?

- Não é. Isso se chama esperança, mas ela está muito longe daqui, não pode ajudá-lo.

- E se eu quiser crer?

- Tente, de nada vai adiantar.

- Esperança, eu te convido a aparecer em nosso meio.

E eis que surge uma mulher [não vou me ater a descrições de aparência ou roupa] dizendo ser Esperança, mas não pode me ajudar fisicamente. Apenas me dar um alento. Mas eu precisava de algo real pra me livrar daquilo. O Tempo disse:

- Mais alguém para a reunião, senhor?

- Eu chamo uma garota.

- Quem?

- Realidade.

O espelho se quebrou. As paredes se desfizeram e comecei a cair. Vi o universo, estrelas, planetas, comecei a ver a terra crescendo, ou era eu caindo nela? Fui caindo, caindo, caindo. Vi que estava caindo em cima de um prédio. Ultrapassei o teto, até que caí num divã. Fechei os olhos. Será que morri? Um sino tocou.

- Acorde, senhor. Acabou a sessão.

- Como assim? Onde estou?

- É natural que o senhor se assuste depois de uma hipnose. Logo passa.

Aquilo era um sonho? Realidade? Não sabia dizer o que era real.

- Já pode sair, senhor, sua família está esperando aí fora.

- Minha família?

- Sua esposa e seus dois filhos.

- O senhor está certo disso?

- Claro. Saia e veja o senhor mesmo.

Minhas pernas tremiam. O que era verdade? Aquilo também me parecia bem real. Abri a porta lentamente, desfazendo o nó da garganta. Havia uma mulher linda folheando uma revista e duas crianças sentadas olhando a secretária digitando rapidamente um texto. A mulher me olhou.

- Oi, amor, como foi?

- Está falando comigo?

- Você sempre fica meio perdido, né?! Crianças, vamos.

As duas crianças vieram e seguraram minhas mãos. Eu acreditei que fosse real. Dirigimo-nos para o elevador. Estava incrédulo ainda. A porta se abriu, entraram primeiro. Eu por último ainda visualizando minha família. Entrei. A porta começou a se fechar, o doutor apareceu no fim do corredor e disse:
- Tenha um bom tempo, senhor.

Fontes:
http://multiversodecontos.blogspot.com.br/2012/04/conto-o-louco.html
Imagem = www.dolcevita.prosaeverso.net 

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